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ICMS-DIFAL: novos desdobramentos de uma discussão que não parece ter fim

Discussão poderá prosseguir no STF, mas sob um novo viés, agora sob o enfoque do princípio da legalidade tributária.

5/9/2023

Reconhecimento da repercussão geral do Tema 1266 pelo STF gera nova insegurança para os contribuintes que têm a expectativa de que a cobrança do imposto seja permitida apenas a partir de 2023

Não é de hoje que se discute a cobrança do ICMS-DIFAL nas operações interestaduais destinadas a consumidores finais não contribuintes do ICMS e a sua hipótese de incidência. Desde a promulgação da Emenda Constitucional 87 (“EC 87/15”), que inseriu essa nova relação jurídico-tributária no texto constitucional, por meio da alteração da redação do §2º, do artigo 155 (incisos VII e VIII), diversos embates surgiram entre os Estados e os contribuintes.

Mais especificamente, a EC 87/15 estabeleceu que na operação interestadual com consumidor final não contribuinte do imposto, o remetente das mercadorias será o responsável pelo (i) pagamento do ICMS, de acordo com a alíquota interestadual, ao Estado de origem; e (ii) pelo pagamento do ICMS ao Estado de destino, correspondente à diferença entre as alíquotas interestaduais e a interna do ente de destino.

Inicialmente, referida EC 87/15 foi objeto de regulamentação via Convênio ICMS 93, de 17 de setembro de 2015 (“Convênio 93/15”), celebrado no âmbito do CONFAZ, o qual dispôs sobre os procedimentos a serem observados nas operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor final não contribuinte do ICMS, localizado em outra unidade federada.

Nesse momento, surgiu a primeira discussão envolvendo a cobrança do ICMS-DIFAL, vinculada à alteração promovida pela EC 87/15, que ensejou o ajuizamento de ações judiciais pelos sujeitos passivos. Isso porque, a despeito de os artigos 146, I, II e 155, XII, alíneas “a”, “d” e “i” da CF/88 estabelecerem a necessidade de edição de Lei Complementar para regulamentação de normas gerais em matéria de legislação tributária, os Estados passaram a exigir o recolhimento do ICMS-DIFAL, com fundamento nas disposições do Convênio 93/15.

E, foi em razão da existência de diversas ações judiciais discutindo a inconstitucionalidade e a ilegalidade do Convênio 93/15, ajuizadas pelos contribuintes, que o STF reconheceu, em 19/6/20, a repercussão geral do tema por meio do Recurso Extraordinário 1.287.019 (Tema 1093 – “Necessidade de edição de lei complementar visando a cobrança da Diferença de Alíquotas do ICMS – DIFAL nas operações interestaduais envolvendo consumidores finais não contribuintes do imposto, nos termos da Emenda Constitucional nº 87/15”). 

Posteriormente, em 24/2/21, o referido Tema 1093 foi julgado pelo Tribunal Pleno do STF de forma favorável aos contribuintes, tendo sido fixada a seguinte tese de repercussão geral: “A cobrança do diferencial de alíquota alusivo ao ICMS, conforme introduzido pela Emenda Constitucional 87/15, pressupõe edição de lei complementar veiculando normas gerais”. Na mesma oportunidade, e como medida para salvaguardar os próprios interesses dos Estados e do Distrito Federal, foram modulados os efeitos da referida decisão, para que o ICMS DIFAL fosse considerado constitucional até 31/12/21, ficando resguardados da modulação os contribuintes que ajuizaram ações judiciais.

O entendimento que prevaleceu no STF foi que a EC 87/15 instituiu uma nova relação jurídico-tributária entre o remetente do bem e o Estado de destino, na medida em que houve substancial alteração na sujeição ativa da obrigação tributária nas operações com consumidor final não contribuinte do imposto. Assim, por constituir uma nova relação jurídica, ela somente poderia ser regulamentada via lei complementar, que é o veículo constitucionalmente previsto para tratar sobre normas gerais em matéria tributária, inclusive as relacionadas ao ICMS.

Com o julgamento do tema pelo STF, a expectativa era de que a referida discussão quanto ao ICMS-DIFAL finalmente se encerraria. Contudo, não foi o que ocorreu.

Com o objetivo de suprir a inconstitucionalidade apontada pelo STF, em 05/1/22, foi publicada a Lei Complementar 190/22 (“LC 190/22”) que trouxe relevantes alterações na Lei Complementar nº 87/96, introduzindo novas regras relativas ao ICMS-DIFAL, relacionadas às vendas interestaduais de mercadorias aos consumidores finais não contribuintes do imposto (regulamentando, portanto, as alterações inseridas anteriormente pela EC 87/15, conforme definido no julgamento do Tema 1093 pelo STF).

Além disso, referida norma complementar previu em seu art. 3º, que deveria ser observado apenas o princípio da anterioridade nonagesimal (ou seja, produção de efeitos 90 dias após a sua publicação) para a cobrança do ICMS-DIFAL pelos Estados e pelo Distrito Federal, não tendo feito qualquer menção à anterioridade anual, em que pese se estar diante de nova instituição de tributo (nos termos do entendimento manifestado pelo STF quando do julgamento do Tema 1093).

Por essa razão, o resultado da edição da LC 190/22 foi o advento de uma nova discussão em relação à exigência do ICMS-DIFAL, qual seja, a necessidade ou não de observância do princípio da anterioridade anual, previsto no artigo 150, inciso III, alínea “b”, da CF/88. Isso porque, de acordo com os contribuintes, nos termos do próprio julgamento do Tema 1093, a instituição de nova relação jurídico-tributária entre o remetente do bem e o Estado de destino (promovida pela EC 87/15), atrai a necessidade de observância não só do princípio da anterioridade nonagesimal, como também o próprio princípio da anterioridade anual, sendo vedado aos Estados e ao Distrito Federal exigirem o ICMS-DIFAL no mesmo exercício em que foi instituído, isto é, no exercício de 2022.

Ante à nova discussão, foram ajuizadas as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (“ADIns”) nºs 7.066, 7.070 e 7.078. A primeira foi ajuizada pela Associação Brasileira de Indústria de Máquinas (“Abimaq”), objetivando a suspensão imediata da exigência no ano de 2022. Já nas ADIns 7070 e 7078, ajuizadas pelos Estados de Alagoas e do Ceará, foi pleiteado o reconhecimento da possibilidade de exigência do imposto ainda em janeiro de 2022.

Em vista disso, o julgamento conjunto das ADIns 7066, 7070 e 7078 foi iniciado no próprio ano de 2022, especificamente, em dezembro. Na oportunidade, 5 (cinco) dos 11 (onze) Ministros do Plenário já tinham votado pela necessidade de observância da anterioridade de exercício e nonagesimal pela LC 190/22¹, com produção de efeitos apenas em 2023, faltando, portanto, apenas um voto para formação de maioria absoluta necessária em favor da tese dos contribuintes.

Contudo, considerando a própria pressão feita pelos Estados, que apontavam a perda de arrecadação de bilhões de reais no caso de a cobrança ser considerada como válida apenas a partir de 2023, a Ministra Rosa Weber, Presidente do STF, pediu destaque do julgamento das ADIns 7066, 7070 e 7078. Ao assim fazer, o julgamento não só foi interrompido como o placar de votos também foi zerado – trazendo uma enorme insegurança aos contribuintes, que poderiam ter tido a discussão encerrada já naquela oportunidade.

Não fosse suficiente, passados mais de oito meses desde a paralisação do julgamento e a ausência de inclusão das ADIs em nova pauta do Plenário, no último dia 22/8/23, o STF reconheceu a repercussão geral da questão constitucional suscitada no leading case RE 1.426.271, qual seja, a discussão quanto à incidência ou não das regras da anterioridade anual e nonagesimal na cobrança do ICMS-DIFAL decorrente de operações interestaduais envolvendo consumidores finais não contribuintes do imposto, após a entrada em vigor da LC 190/22 (Tema 1266 – STF).

Esse desdobramento trouxe nova insegurança aos contribuintes que já esperavam e torciam por um desfecho favorável da tese nas ADIns 7066, 7070 e 7078, considerando que, mesmo diante da suspensão do julgamento em razão do pedido de destaque, o que se aguardava era que, com a sua inclusão em pauta e retomada do julgamento, os Ministros seguiriam os votos já manifestados em prol da necessidade de observância do princípio da anterioridade anual (ainda que diante de nova composição por conta da aposentadoria do Ministro Ricardo Lewandowski e, em outubro de 2023, da Ministra Rosa Weber).

Contudo, com o reconhecimento da repercussão geral do Tema 1266, a preocupação é de que a discussão tenha um novo desfecho de forma desfavorável aos contribuintes, considerando a composição atualizada do Plenário do STF, e, ainda, a possível perda de objeto das ADIns, caso o RE 1.426.271 venha a ser julgado de forma prévia. Ainda, existe a preocupação de os Ministros que já se manifestaram de forma favorável aos contribuintes se sintam confortáveis para revisitarem os seus votos quando do julgamento do referido recurso extraordinário.

Vale destacar que o desfecho desfavorável aos contribuintes, certamente, causará um impacto considerável na economia do país, considerando que tal discussão afeta principalmente as empresas de varejo on-line, as quais possuem, inclusive, decisões judiciais favoráveis autorizando o não recolhimento do ICMS-DIFAL no ano de 2022.

Dessa maneira, considerando a relevância do tema sob o aspecto econômico, político e social, o que se que espera é que o STF decida o quanto antes a questão do ICMS-DIFAL que já vem se estendendo desde o ano de 2015, quando editado o Convênio ICMS 93/15, mantendo a congruência e coerência de sua jurisprudência, nos termos do posicionamento manifestado no Tema 1093. De toda forma, fato é que, independentemente do desfecho, uma das pontas da discussão (sejam os contribuintes e os próprios consumidores, sejam os Estados) poderá sentir imediatamente os impactos da decisão a ser proferida pelo STF, a qual, muito provavelmente, deverá ter os seus efeitos modulados².

Ainda, é relevante mencionar que, além da própria discussão quanto à observância das anterioridades, os contribuintes também têm apresentado outros argumentos com relação à própria impossibilidade de cobrança do ICMS-DIFAL a partir do ano de 2023, caso os Estados não editem legislações estaduais internalizando as alterações da LC 190/22.

Assim, a discussão poderá prosseguir no STF, mas sob um novo viés, agora sob o enfoque do princípio da legalidade tributária (art. 150, I, da CF/88).

O tema do ICMS-DIFAL e a sua cobrança, portanto, parecem não ter fim.

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1 Ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandoski, Cámen Lúcia, Rosa Weber e André Mendonça.

2 Conforme vem sendo observado em diversos temas em matéria tributária. A despeito de as hipóteses de modulação contemplarem situações específicas elencadas no art. 27, da lei 9.868/99, quais sejam, razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, o que se tem notado é a admissão da modulação pelo STF para minimizar eventuais impactos na arrecadação tributária do país.

Bruna Dias Miguel
Advogada em São Paulo. Atuação em Direito Tributário. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP. Mestra em Direito pela PUC/SP.

Gabriela Salvático Andrade Lima
Advogada do contencioso tributário judicial e administrativo do Machado Meyer Advogados. Bacharel em Direito pela PUC/SP. Pós-Graduada em Direito Tributário pela FGV/SP.

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