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Desnecessidade de reexame de provas em mandado de segurança tributário e o afastamento da súmula 279 do STF

O que é necessário é que os Tribunais Superiores façam uma avaliação casuística para que consigam apurar o que de fato está sendo requerido no recurso, para que não se confunda reexame de provas com interpretação sobre normas jurídicas.

25/8/2023

Comumente, os recursos manejados para o STJ e para o STF esbarram em enunciados de súmulas que preveem a impossibilidade de conhecimento dos recursos, tendo em vista o suposto reexame de provas e fatos.

Todavia, muitos desses recursos são interpostos contra acórdãos cuja interpretação da Constituição ou legislação infraconstitucional não foi adequada. Nestes casos, não há que se falar em reexame de provas, pois, do ponto de vista fático, não há o que reexaminar.

No âmbito tributário, isso acontece com frequência, o que, do ponto de vista processual, é até incoerente, já que, normalmente, a ação utilizada nesta área é o mandado de segurança, e, como se sabe, possui rito próprio e sem fase de instrução, o que acarreta, na maior parte das vezes, uma discussão iminentemente de direito, com o impetrante nem instruindo a petição inicial com prova alguma.

Ainda assim, nesses casos, os tribunais superiores costumam alegar a impossibilidade de se conhecer o recurso, tendo em vista a necessidade de reexame de fatos e de provas.

O óbice da Súmula n° 279/STF não deve ser aplicado automaticamente, como vem sendo feito pelas instâncias superiores, e sim, casuisticamente. Isto porque, em algumas oportunidades, o que há é a má interpretação do ordenamento jurídico pelo acórdão recorrido no segundo grau.

Nesses casos, o afastamento da aplicação da Súmula n° 279/STF é medida que se impõe, conforme a explicação abaixo.

Michele Taruffo (2015, p. 224), “ao tratar distinção da questão de fato e questão de direito para fins de cabimento do recurso extraordinário, se referiu como um problema de caráter semântico inerente à possibilidade de tradução das assertivas de fato, tais como enunciadas em linguagem comum, em assertivas correspondentes formuladas segundo a linguagem do direito posto; de maneira que, procedendo-se de modo defeituoso este raciocínio de transformação / tradução, tudo mais que se lhe seguir será inexoravelmente ilegal.”¹

Conforme ensina Teresa Wambier, se a função do recurso é genuinamente a de corrigir inconstitucionalidades e ilegalidades, ainda que tais vícios sejam em decorrência das interpretações equivocadas sobre a constituição ou legislação infraconstitucional, o que é a única interpretação possível para que haja a coexistência dos Tribunais Superiores, das súmulas que vedam o reexame de fatos e provas e o direito de acesso ao Poder Judiciário, bem como o devido processo legal e os recursos a ele inerentes, todas as decisões em que “os fatos foram qualificados erradamente, tendo-se lhes aplicado norma diferente daquela que, na verdade, deveria ser aplicada”², ou atribuído uma interpretação equivocada à Constituição ou a legislação infraconstitucional, nasce a competência do STF ou STJ, que deverá uniformizar e estabilizar a jurisprudência, além de dar interpretação correta, em conformidade com a Constituição ou a legislação infraconstitucional.

É necessário ter bem clara a distinção entre conteúdo de fato e conteúdo de direito. “Quando o recurso busca reformar uma decisão que contenha má apreciação da matéria de fato, estar-se-á diante de uma necessidade de reexame de fatos”. Isto é óbvio, já que a análise dos fatos influi no convencimento do juiz. Havendo algum equívoco na análise das provas, estas devem ser reexaminadas, para que seja corrigido o vício na interpretação dos fatos.

Teresa Wambier define questão predominantemente fática como: “sustenta-se que a questão será predominantemente fática, do ponto de vista técnico, se, para que se redecida a matéria, houver necessidade de se reexaminarem provas, ou seja, de se reavaliar como os fatos teriam ocorrido, em função da análise do material probatório produzido.”

Quando a questão controversa, e que o recurso busca reformar, trata da interpretação ou má interpretação de lei perante um caso concreto, trata-se de questão exclusivamente de direito, pois basta que haja a manifestação, pelo Tribunal Superior, da interpretação adequada da norma jurídica, para que haja a reforma ou a anulação do acórdão recorrido.

Para ilustrar, imagine-se que um contribuinte seja obrigado a recolher o ICMS decorrente das saídas de mercadorias em transferência para estabelecimento do mesmo titular, como até pouco tempo havia diversas autuações. Irresignado, o contribuinte impetra um mandado de segurança preventivo, para que seja reconhecido o seu direito líquido e certo de não ser compelido de recolher esta exação. Todavia, o juízo analisa a questão sobre uma perspectiva distinta e não concede a segurança pleiteada, que, frise-se, é exclusivamente para que o impetrante não seja compelido a recolher o ICMS decorrente das transferências para estabelecimentos do mesmo titular. Neste caso, a questão é eminentemente de direito, pois, embora o impetrante narre a situação fática, ele busca o reconhecimento de um direito reconhecido pelo STJ e pelo STF. Portanto, ao interpor recurso para as instâncias superiores, não haverá necessidade de exame ou reexame de fatos, pois a questão é exclusivamente de direito.

Atente-se para o fato de que, embora haja uma situação concreta, que são as saídas de mercadorias para estabelecimentos do mesmo titular, a lide no mandado de segurança é exclusivamente de direito, pois o contribuinte quer se ver assegurado de uma situação futura, que é inconstitucional e ilegal.

Nesses casos, conforme exposto anteriormente, basta que haja a manifestação do STF ou STJ de que não incide ICMS nas saídas para estabelecimentos do mesmo titular, para que o mérito do recurso seja conhecido.

O STJ já decidiu que caberá recurso especial quando a questão for eminentemente de direito. O que deve ser aplicado analogamente ao recurso extraordinário. Veja-se: 

“AGRAVO  REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL.  AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO CARACTERIZAÇÃO.    TESE   RECURSAL   QUE   PARTE   DE   PRESSUPOSTOS INCOMPATÍVEIS  COM  AS PREMISSAS FÁTICAS ASSENTADAS PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS.  ENUNCIADO  N.  7  DA  SÚMULA  DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.

1.  O  órgão  jurisdicional  não  tem o dever de se manifestar sobre todos os argumentos suscitados pelas partes, incumbindo-lhe resolver fundamentadamente as questões relevantes ao julgamento da causa.

(...)

4.  Somente  se  poderá  dizer  que a pretensão recursal se limita à revaloração  da  prova  quando o inconformismo veicular alegações de contrariedade  ou  negativa  de  vigência  às normas legais fderais atinentes ao direito probatório. Precedente.

5.  Aplica-se  a  Súmula  n.  7  do  STJ  aos casos em que o recurso especial  veicula  alegações  acerca  dos  fatos  da causa que foram refutadas  pelo  acórdão  recorrido  ou que são incompatíveis com as premissas fáticas assentadas pelo Tribunal a quo.

6. O entendimento expresso no enunciado n. 7 da Súmula do STJ apenas pode  ser  afastado  nas hipóteses em que o recurso especial veicula questões  eminentemente  jurídicas,  sem  impugnar  o  quadro fático delineado pelas instâncias ordinárias no acórdão recorrido.

7.  A reforma do valor dos honorários advocatícios de sucumbência em recurso  especial  apenas é possível excepcionalmente, quando houver inobservância  do  postulado  da proporcionalidade, isto é, quando a quantia se revelar exorbitante ou irrisória. Precedentes.

8. Agravo regimental a que se nega provimento.

(AgRg no AREsp 723.035/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/11/2015, DJe 27/11/2015)”(no original não consta destaque)

 O que o enunciado da Súmula n° 279 do STF – Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário - visa impedir é a formulação de nova convicção acerca dos fatos, a partir das provas, ou seja, atribuir um novo convencimento sobre as provas. Por isso, esse entendimento sumulado apenas pode ser afastado nas hipóteses em que o recurso veicula questões eminentemente de direito e não sobre questões probatórias.

O que é necessário é que os Tribunais Superiores façam uma avaliação casuística para que consigam apurar o que de fato está sendo requerido no recurso, para que não se confunda reexame de provas com interpretação sobre normas jurídicas.

André Freitas
Sócio Administrador no escritório Martins Freitas Advogados Associados.

Gustavo Leite
Advogado no escritório Martins Freitas Advogados Associados.

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