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O Papa e o Direito Canônico

Em pouco mais de duas décadas o Brasil foi distinguido com quatro visitas do representante máximo da Igreja, desta vez o Papa Bento XVI, a demonstrar a importância do País no contexto de uma América Latina de formação histórica umbilicalmente ligada à religião católica.

17/5/2007


O Papa e o Direito Canônico

Recebemos o representante espiritual de Deus mas também a autoridade jurídica dos princípios do Direito Natural

Fernando Albino*

Em pouco mais de duas décadas o Brasil foi distinguido com quatro visitas do representante máximo da Igreja, desta vez o Papa Bento XVI, a demonstrar a importância do País no contexto de uma América Latina de formação histórica umbilicalmente ligada à religião católica.

Nessas oportunidades sempre prevaleceram para a população os aspectos espirituais, em especial as missas e as palavras do Sumo Pontífice aos seus fiéis. Existem, todavia, os aspectos laicos, ligados ao relacionamento entre o Estado do Vaticano e o Brasil, que desta feita envolveram as discussões sobre a obrigatoriedade do ensino religioso e a legislação sobre o aborto, ora em processo de revisão.

Desde a sua criação até os dias atuais a Igreja Católica convive com a realidade espiritual, que a explica e justifica, mas também com os eventos formadores da história política do mundo ocidental, da qual ela é parte inseparável. Nesses mais de vinte séculos a Igreja já viveu, em algumas épocas, em completo amálgama com o poder político e, em outras, foi por ele afastada e implacavelmente perseguida.

A convivência entre o espírito e a matéria está espelhada nos princípios do Direito Canônico, cuja evolução demonstra de maneira instigante essa dualidade entre as regras dirigidas ao mundo interior dos fiéis, cujas sanções são de natureza espiritual, e as regras aplicáveis aos fiéis enquanto partícipes da sociedade, cujas sanções dependem da força política da Igreja na ocasião. O exemplo mais flagrante das normas do primeiro tipo é a penitência a ser feita pelo fiel que pecou, segundo as regras religiosas. O exemplo mais didático das normas do segundo tipo é a Inquisição, que queimou os “pecadores” que insistiam em negar as “verdades” da Igreja, com a ajuda dos poderes políticos de então.

Até a Idade Média confundiam-se os preceitos puramente religiosos e os mandamentos que desdobravam para o mundo exterior. Coube ao Papa Gregório VII, no século XI, iniciar a sistematização de um ordenamento jurídico da Igreja, modelando-a como uma entidade soberana e organizada, antecipando o que seriam mais tarde os estados nacionais.

Esse movimento termina no século XIV, quando fracassam as tentativas de submissão de qualquer criatura humana às regras do papado, com a prevalência de uma solução dualista, com a separação do poder dos papas sobre a Igreja, de um lado, e o reconhecimento da autonomia dos poderes políticos, de outro.

Data dessa época o surgimento do Direito Canônico, com a edição do Decretum de Graciano, em 1140, quando surge um verdadeiro ordenamento, como sistema jurídico autônomo e completo, baseado no Direito Romano. Essa estruturação seguiu dois grandes princípios informadores: a hierarquia das normas e o pressuposto de um direito natural, emanação dos ensinamentos cristãos. Assim, no ápice da pirâmide se encontra o Direito Natural-divino de que o Papa é o sumo intérprete; em seguida, as normas editadas pelas autoridades da Igreja, como tais reconhecidas pelo próprio Direito Canônico, o que seria um direito positivo da Igreja; por fim, as regras e práticas de corpos eclesiásticos, como os franciscanos, beneditinos e outros. Todas essas regras devem respeitar um núcleo material de princípios que constituem o Direito Natural, compilação das bases do pensamento cristão.

Os sistemas jurídicos seculares que se formaram com os estados nacionais, ao cabo dessa evolução, por volta do mesmo século XIV, guardam incrível similaridade com os princípios do Direito Canônico, a demonstrar a importância deste e da sistematização iniciada com Graciano. À mesma pirâmide se observa, com os princípios fundamentais advindos de uma constituição, o direito positivo defluindo de corpos legislativos competentes para editar leis e os usos e costumes e regulamentos, como normas de hierarquia inferior, na base dessa estrutura piramidal.

A grande diferença é que a constituição não contempla um conjunto de princípios de Direito Natural, mas o contrato social a que aludia Rousseau, fruto de uma vontade geral manifestada por eleição de toda a sociedade. Nesse ponto houve uma ruptura histórica entre Estado e Igreja. Para a Igreja só vale a regra emanada do direito natural. Já para a sociedade política o que importa é a escolha feita pelos seus cidadãos, sem necessariamente o compromisso com os princípios eclesiásticos.

A discussão sobre a legalidade do aborto bem esclarece essa diferença fundamental. Para a Igreja qualquer regra jurídica que reconheça como legítimo o aborto contraria os princípios do direito natural à vida, que ninguém pode usurpar, seja qual for a circunstância, por decorrer do Direito Natural-divino. Para a sociedade, a legitimidade ou não do aborto tem a ver com uma série de considerações, em que entram preocupações de saúde pública, de cuidado com a vida das mães e dos fetos, com a realidade social de abortos clandestinos, com a evolução do conhecimento científico e outras.

A visita do Papa, pois, não se resume a um evento religioso. Com ele está presente o Estado do Vaticano e todo o seu sistema jurídico corporificado no Direito Canônico. Recebemos de um lado o representante espiritual de Deus na terra, mas, de outro, a autoridade jurídica máxima de um corpo de leis, intérprete, em última instância, dos princípios do Direito Natural.

João Paulo II, por estilo, temperamento e missão, encarnava a busca de uma junção entre o direito divino e o direito laico. Bento XVI, ao contrário, faz questão de apartar as regras de Direito Canônico daquelas do Direito Secular, advogando o que no século XIV se perdeu, ou seja, a submissão de todo ser humano à autoridade do papado e, sobretudo, aos princípios do Direito Natural.

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*Advogado do escritório Albino Advogados Associados










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