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A persistente problemática do Fisco na condição de credor extraconcursal e o devedor em recuperação judicial

Se as constrições não comprometerem, ou até qual limite as constrições podem acontecer, então, que sejam mantidas.

24/8/2023

Abordar em um artigo assuntos recentes sempre é um desafio, pois discorrer sobre um tema relativo à matéria que ainda será muito discutida e, posteriormente, pacificada – espera-se que com brevidade - imprimindo opinião, traz ao autor uma missão de apontar sua a melhor definição, esperando que quando houver a definição, esteja em consonância ou ao menos, próximo da linha de raciocínio construída no artigo. E essa é a missão existente na elaboração deste artigo, já que discorreremos sobre a substituição pelo juízo da recuperação judicial atos de constrição proferidos em execuções fiscais, sem, obviamente, esgotar o tema.

Como parte da introdução, importante já considerar o quanto previsto no decreto lei 4.657/42, lei de introdução às normas do direito brasileiro e destacar que os arts. 4º e 5º, originalmente inseridos na lei e não alterados por qualquer outra lei até hoje, expressam, respectivamente, que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito” e que “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”

A previsão do princípio constante dos arts. 6º e 69º do Código de Processo Civil, da cooperação judicial, também é de relevante destaque neste artigo, em vista de um objetivo maior, previsto no art. 47 da lei 11.101/05, que é a preservação de uma empresa em recuperação judicial.

O cerne da discussão se dá então, em torno do §7º-B do art. 6º da lei 11.101/05, que assim prevê:

§ 7º-B. O disposto nos incisos I, II e III do capítulo deste artigo não se aplica às execuções fiscais, admitida, todavia, a competência do juízo da recuperação judicial para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada mediante a cooperação jurisdicional, na forma do art. 69 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), observado o disposto no art. 805 do referido Código.

A previsão legal conferindo ao juízo da recuperação judicial, a competência para determinar a substituição dos atos de constrição sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial, é complementada com o art. 69 do Código de Processo Civil e com o art. 805 do mesmo diploma, os quais transcrevemos abaixo:

Art. 69. O pedido de cooperação jurisdicional deve ser prontamente atendido, prescinde de forma específica e pode ser executado como:

I - auxílio direto;

II - reunião ou apensamento de processos;

III - prestação de informações;

IV - atos concertados entre os juízes cooperantes.

§ 1º As cartas de ordem, precatória e arbitral seguirão o regime previsto neste Código.

§ 2º Os atos concertados entre os juízes cooperantes poderão consistir, além de outros, no estabelecimento de procedimento para:

I - a prática de citação, intimação ou notificação de ato;

II - a obtenção e apresentação de provas e a coleta de depoimentos;

III - a efetivação de tutela provisória;

IV - a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas;

V - a facilitação de habilitação de créditos na falência e na recuperação judicial;

VI - a centralização de processos repetitivos;

VII - a execução de decisão jurisdicional.

§ 3º O pedido de cooperação judiciária pode ser realizado entre órgãos jurisdicionais de diferentes ramos do Poder Judiciário.

Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado.

Latente na conjugação de todos os artigos acima mencionados, que a busca do bom senso nas decisões é o que deve prevalecer acima de tudo.

Porém, o que tem sido visto em recentes decisões é o contrário, inclusive em decisões conflitantes entre as câmaras de direito público e as câmaras de direito empresarial do TJ/SP. Porém, mais surpreendente ainda, são as câmaras de direito público decidirem favoravelmente à empresa em recuperação judicial, e as câmaras de direito empresarial, decidirem favoravelmente ao fisco, sem qualquer preocupação com o princípio da preservação da empresa

No caso concreto, conforme se depreende dos autos da recuperação judicial ajuizada sob o nº: 1012944-08.2023.8.26.0100, em trâmite perante a 3ª vara de Falências e Recuperações Judiciais, as empresas recuperandas sofreram determinação de penhora de 10% de seus créditos antes mesmo do ajuizamento de sua recuperação judicial, oriunda de execução fiscal.

Quando aforada a demanda recuperacional, foi pleiteado junto ao respectivo juízo, tutela antecipada para substituir a penhora de 10% dos recebíveis das recuperandas por um ativo intangível, qual seja a marca das recuperandas avaliada em valor suficiente a garantir o débito fiscal.

A decisão proferida deferindo tal pleito determinou então que fosse substituído o bem objeto da penhora da execução fiscal. Ou seja, os recebíveis das recuperandas pelo ativo intangível (marca de uma das empresas em recuperação judicial), até o limite do débito exequendo, deferindo posteriormente tal determinação para as demais execuções fiscais que estavam tramitando em face das empresas em recuperação judicial.

A Fazenda do Estado de São Paulo interpôs agravo de instrumento sob o nº: 2037380-23.2023.8.26.0000 contra a decisão que determinava a substituição da penhora dos recebíveis pela marca das recuperandas. O recurso foi julgado pela 1ª câmara reservada de Direito Empresarial do TJ/SP, e o acórdão foi pelo provimento e teve o seguinte teor, conforme a ementa abaixo colacionada:

“AGRAVO DE INSTRUMENTO RECUPERAÇÃO JUDICIAL Decisão que acolheu pedido de antecipação de tutela para substituir, em execução fiscal, a penhora dos recebíveis das recuperandas com seus maiores clientes pela marca “RAIOLA”, até o limite do débito executado Insurgência da Fazenda Estadual Cabimento Crédito extraconcursal – Avaliação unilateral da marca Pedido de substituição contrário ao disposto no art. 6º, §7º-B, da Lei nº 11.101/05 Dinheiro que não pode ser considerado como bem de capital essencial - Substituição de constrição que deve ser sempre realizada por meio mais eficaz Art. 805, p.u., do Código de Processo Civil Hipótese em que a marca da empresa é absolutamente essencial à continuidade de suas atividades, tornando sua constrição mera blindagem patrimonial ao Fisco - Devedora que não adimple impostos estaduais desde 2017 - Mecanismos de renegociação do débito à disposição da recorrida, com possibilidade de longo parcelamento da dívida - Decisão reformada - Recurso provido.”

Ou seja, provido o agravo de Instrumento da Fazenda do Estado de São Paulo para manter a penhora sobre os créditos da empresa em recuperação judicial.

Já nos autos da execução fiscal, quando as empresas em recuperação judicial procederam com a juntada da decisão do juízo recuperacional, de substituição da penhora pela marca, a qual foi cumprida pelo juízo da execução fiscal, novamente, a Fazenda do Estado se insurgiu por intermédio de Agravo de Instrumento sob o nº: 3002997-02.2023.8.26.0000, que agora, por conta da matéria, foi remetido à 5ª câmara de Direito Público do TJ/SP e, quando do julgamento, o acórdão foi pelo não provimento e teve o seguinte teor, conforme a ementa abaixo colacionada:

RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO EXECUÇÃO FISCAL DIREITO TRIBUTÁRIO IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES RELATIVAS À CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SOBRE PRESTAÇÕES DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE INTERESTADUAL E INTERMUNICIPAL E DE COMUNICAÇÃO ICMS PESSOA JURÍDICA EXECUTADA SUBMETIDA AO REGIME DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL LIBERAÇÃO DE VALORES BLOQUEADOS EM CONTAS CORRENTES BANCÁRIAS DE TITULARIDADE DA PARTE EXECUTADA EM PRIMEIRO GRAU DE JURISDIÇÃO PRETENSÃO RECURSAL À MANUTENÇÃO DA REFERIDA CONSTRIÇÃO IMPOSSIBILIDADE. 1. Cancelamento do Tema nº 987, do C. STJ, em razão da vigência da Lei Federal nº 14.112/20, que alterou a Lei Federal nº 11.101/05. 2. Determinação do C. STJ, no sentido da suspensão de todos os processos de execução fiscal, envolvendo a prática de atos constritivos, contra a pessoa jurídica executada, submetida à Recuperação Judicial, até o julgamento do REsp nº 1.694.261/SP (Tema nº 987), superada. 3. Possibilidade de prosseguimento regular do processo, mediante a observância da nova disciplina das execuções fiscais ajuizadas contra as pessoas jurídicas submetidas ao regime da Recuperação Judicial. 4. Viabilidade de realização de penhora nos próprios autos da execução fiscal, sobrevindo, entretanto, o posterior controle de legalidade pelo D. Juízo da Recuperação Judicial. 5. Inteligência do artigo 6º, § 7º-B, da Lei Federal nº 11.101/05. 6. Precedentes da jurisprudência deste E. Tribunal de Justiça. 7. Liberação de valores bloqueados em contas correntes bancárias de titularidade da parte executada, em Primeiro Grau de Jurisdição. 8. Decisão, recorrida, ratificada. 9. Recurso de agravo de instrumento, apresentado pela parte exequente, desprovido.

Percebe-se, então, um dissenso entre os julgados do Tribunal Bandeirante diante destes incomuns e inusitados entendimentos das câmaras correspondentes às matérias abordadas, através dos quais a câmara de Direito Público pondera a conjugação de todos os preceitos constantes dos artigos trazidos no início da matéria, enquanto a câmara Reservada de Direito Empresarial proferiu acórdão de prudência relativizada e que atribui risco à atividade das empresas.

Sobre a competência do juízo recuperacional, a doutrina traz importantes aclaramentos quanto a substituição de atos de constrição sobre bens de capital essenciais à atividade da empresa:

“O prosseguimento das execuções fiscais, entretanto, não significa absoluta liberdade para a realização de medidas de constrição. Ainda que não houvesse norma legal até então, a jurisprudência assentou a universalidade do Juízo da recuperação judicial para assegurar maior utilidade ao instituto da recuperação. Pela jurisprudência, o Juízo universal da recuperação cumpriria autorizar todas as medidas constritivas promovidas por credores não sujeitos à recuperação judicial como forma de se garantir o melhor cumprimento do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores.”

(...)

“A não sujeição de alguns créditos aos efeitos da recuperação judicial, como os créditos fiscais, foi opção legal para privilegiar sua satisfação. Nesse sentido, a atribuição ao Juízo da recuperação da competência para autorizar os atos de constrição permitir-lhe-ia realizar um juízo de menor onerosidade em relação aos bens a serem constritos e como forma de atenuar o comprometimento do cumprimento do plano de recuperação judicial. Não poderia o Juízo, todavia, impedir que os credores que foram privilegiados pela Lei pudessem ser satisfeitos com os bens do devedor sob a alegação de que a constrição comprometeria o princípio da preservação da empresa (art. 47).”

“Ao Juízo da recuperação caberia simplesmente a análise da menor onerosidade para indicar quais dos bens poderiam ser constritos. Caso não haja bens dispensáveis ou que não estejam diretamente vinculados ao plano de recuperação judicial, os atos de constrição não poderiam ser impedidos.” (Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, 4ª Edição, Editora Saraiva, 2023, Sacramone, Marcelo Barbosa, págs. 59/60).

No caso concreto, houve bem indicado à substituição que poderia ser constrito, ativo intangível a marca das empresas recuperandas de considerável valor.

Diante disso, importante dispormos aqui também, de recente entendimento que o STJ forneceu conquanto a hipótese de conflito de competência relativo à constrição, substituição e competência entre juízos de execuções fiscais e de recuperações judiciais.

Estando efetivamente caracterizado o conflito de competência suscitado, a Segunda Seção do STJ no julgamento do CC 187.255 – GO (2022/0096955-3), de relatoria do E. Ministro Raul Araújo, datado de 20/12/22, assentou que “o juízo da Recuperação Judicial, ao deixar de substituir o bem constrito ou de propor forma alternativa de satisfação da execução fiscal, opta por requerer o levantamento da penhora, sem cogitar de medida substitutiva, desbordando dos contornos legais de sua competência” restando declarada a competência do juízo da execução fiscal.

CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL EM RECLAMAÇÃO TRABALHISTA. SOCIEDADE EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA EXECUÇÃO FISCAL: ADOÇÃO DE ATOS CONSTRITIVOS DE BENS DE CAPITAL DA RECUPERANDA, SEM ALIENAÇÃO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL: SUBSTITUIÇÃO DO OBJETO DA CONSTRIÇÃO OU DA FORMA SATISFATIVA. DEVER DE COOPERAÇÃO (CPC, ART. 67). CONFLITO DE COMPETÊNCIA CONHECIDO.

1. À luz da Lei 11.101/2005, art. 6º, § 7º-B, do CPC, arts. 67 a 69, e da jurisprudência desta Corte (CC 181.190/AC, Relator Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE), compete: 1.1) ao Juízo da Execução Fiscal, determinar os atos de constrição judicial sobre bens e direitos de sociedade empresária em recuperação judicial, sem proceder à alienação ou levantamento de quantia penhorada, comunicando aquela medida ao juízo da recuperação, como dever de cooperação; e 1.2) ao Juízo da Recuperação Judicial, tomando ciência daquela constrição, exercer juízo de controle e deliberar sobre a substituição do ato constritivo que recaia sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento do procedimento de soerguimento, podendo formular proposta alternativa de satisfação do crédito, em procedimento de cooperação recíproca.

2. A caracterização do conflito de competência depende da inobservância do dever de recíproca cooperação (CPC, arts. 67 a 69), com a divergência ou oposição entre os Juízos acerca do objeto da constrição ou sobre a forma de satisfação do crédito tributário.

3. Na espécie, está caracterizada a ocorrência de conflito de competência, porquanto o Juízo da Recuperação Judicial, ao deixar de substituir o bem constrito ou de propor forma alternativa de satisfação da execução fiscal, opta por requerer o levantamento da penhora, sem cogitar de medida substitutiva, desbordando dos contornos legais de sua competência.

4. Conflito de competência conhecido, para declarar a competência do Juízo da Execução Fiscal.

Importante esclarecer que, com o advento da lei 14.112/20, que alterou a lei 11.101/05, notadamente quanto a inclusão do §7º-B do art. 6º, é pacificado o entendimento que somente se caracteriza o conflito de competência quando há inobservância do juízo da recuperação judicial em relação à referido artigo, ou se o juízo da execução fiscal deixa de atender às diligências determinadas pelo juízo recuperacional.

No caso concreto, não se instaurou hipótese de conflito de competência, contudo, o Fisco, ao buscar a reversão das decisões na Instância Superior sobre ambas as decisões, da execução fiscal e da recuperação judicial, ocasionou nítido dissídio jurisprudencial sobre a mesma matéria, porém, com entendimentos cruzados, se assim podemos dizer, cuja solução deverá ser proveniente da Corte Superior.

Sem adentrar no mérito inclusive, da discussão existente sobre o entendimento relativo a bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial, tampouco sobre a condição de proteção à qual a empresa estaria submetida, pois, ainda estaria em vigor, denominada “stay period”, fato é que os juízos de origem atuaram em conformidade ao que a lei recuperacional prevê, porém os acórdãos proferidos tanto pela câmara de Direito Público, quanto pela câmara reservada de Direito Empresarial, trouxeram entendimentos conflitantes.

Tendo sido provido o agravo de instrumento da Fazenda do Estado de São Paulo interposto perante as câmaras reservadas de direito empresarial,para manter a penhora sobre os créditos da empresa em recuperação judicial e, tendo sido improvido o agravo de instrumento da Fazenda do Estado de São Paulo interposto perante as câmaras de Direito Público, que por consequência mantém a decisão de origem para substituição dos atos de constrição pelo bem indicado (ativo intangível – marca da empresa), estaremos diante de verdadeiras decisões totalmente conflitantes e incompatíveis entre elas, atingindo a empresa em recuperação judicial com total insegurança jurídica.

Além do mais, o acórdão proferido pela câmara de Direito Público estaria em consonância à lei recuperacional, enquanto o acórdão proferido pela câmara reservada de Direito Empresarial, estaria em desarmonia à respectiva lei, o que se esperava não ter ocorrido.

O deslinde desse imbróglio, ou deverá ser proveniente do juízo recuperacional, ou deverá ser proveniente do STJ, o que se espera com brevidade e de forma definitiva. Concluindo, a opinião deste autor, é de que haja efetiva cooperação judicial em vista do princípio previsto no art. 47 da lei 11.101/05, que é a preservação da empresa, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Para isso, é fundamental e primordial que sejam analisadas minuciosamente as condições de preservação e sobrevivência da empresa. Se as constrições comprometerem seu soerguimento, é necessário que sejam afastadas, mantendo a decisão originária que substitui a constrição pela marca da empresa.

Se as constrições não comprometerem, ou até qual limite as constrições podem acontecer, então, que sejam mantidas.

Por fim, desde que haja a escorreita ponderação baseada, inclusive, nos princípios apontados neste artigo, que a devida medida jurídica seja proferida, sempre na convicção da necessidade e objetivo de sobrevivência da empresa.

Henrique Marcelo Galhato
Membro da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB/SBC, presidida pelo Dr Odair de Moraes Jr, sócio do escritório Moraes Jr Advogados.

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