Migalhas de Peso

O caso Rolex e as conseqüências administrativas e criminais

Comete crime de peculato-apropriação o funcionário público que, em razão do cargo que ocupa, inverte o título da posse, agindo como se fosse dono do objeto material.

22/8/2023

A imprensa brasileira noticiou que em viagem oficial a Doha, em outubro de 2019, um ex-presidente da República teria comercializado indevidamente um relógio da marca Rolex recebido de presente na qualidade de chefe de Estado.

Importante destacar que, em 31/08/2016, o Tribunal de Contas da União, através da TC 011.591/2016-1 determinou que os presentes recebidos em missões oficiais pelos presidentes da República pertencem ao patrimônio da União, conforme item 9.2.1 do Acórdão 2255/201/Plenário:

“9.2.1 incorporem, com fulcro no art. 3º, parágrafo único, inciso II, do Decreto 4.344/2002, ao patrimônio da União todos os documentos bibliográficos e museológicos recebidos pelos presidentes da República, nas denominadas cerimônias de troca de presentes, bem assim todos os presentes recebidos, nas audiências com chefes de Estado e de Governo, por ocasião das visitas oficiais ou viagens de estado ao exterior, ou das visitas oficiais ou viagens de estado de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil, excluídos apenas os itens de natureza personalíssima ou de consumo direto pelo Presidente da República”

Portanto, desde 2016, conforme determinação do TCU, os presentes recebidos por ex-presidentes da República, em missões oficiais, não podem ser incorporados aos seus patrimônios pessoais. Sendo assim, a desobediência ao comando do Tribunal de Contas da União pode gerar conseqüências nas esferas administrativa e criminal.

Com efeito, a apropriação ou o desvio de um bem que pertence ao ente público pode ser enquadrado como crime de peculato previsto no artigo 312 do Código Penal:

 “Art. 312 - Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito próprio ou alheio:

        Pena - reclusão, de dois a doze anos, e multa.

        § 1º - Aplica-se a mesma pena, se o funcionário público, embora não tendo a posse do dinheiro, valor ou bem, o subtrai, ou concorre para que seja subtraído, em proveito próprio ou alheio, valendo-se de facilidade que lhe proporciona a qualidade de funcionário.

No caso do Rolex, como o relógio foi recebido em razão do cargo de chefe de Estado e no nome do Estado Brasileiro, de acordo com o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, a melhor qualificação criminal é de peculato-apropriação:

“O crime de peculato-apropriação exige que o funcionário público receba o bem, valor ou dinheiro público em razão do cargo e no nome da Administração.

(APn n. 702/AP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 3/8/2020, DJe de 14/8/2020.)

Trata-se de infração penal que não exige resultado naturalístico, ou seja, se consuma no momento em que funcionário público, em razão do cargo que ocupa, inverte o título da posse, agindo como se fosse dono do objeto material:

“I. O delito de peculato-apropriação consuma-se no momento em que o funcionário público, em razão do cargo que ocupa, inverte o título da posse, agindo como se fosse dono do objeto material, retendo-o, alienando-o, etc, não sendo exigível que o agente ou terceiro obtenha vantagem com a prática do delito.

II. A expressão posse, utilizada no tipo penal do art. 312, caput, do Código Penal, não deve ser analisada de forma restrita, e sim, tomada como um conceito em sentido amplo, que abrange, também, a detenção. Dessa forma, o texto da lei aplica-se à posse indireta, qual seja, a disponibilidade jurídica do bem, sem apreensão material.

(RHC n. 10.845/SP, relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 13/3/2001, DJ de 23/4/2001, p. 166.)”

Aliás, de acordo com o artigo 29 do Código Penal é possível que terceiros que não tenham participado diretamente do delito possam responder, criminalmente, na medida de sua culpabilidade. Exemplo: o funcionário público se apropria indevidamente do bem que pertence à União, e o terceiro – que não é funcionário público – atua, conscientemente, na comercialização do produto do crime: 

“Art. 29 - Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

Sendo assim, ainda que o produto do crime seja devolvido ou reintroduzido ao patrimônio público, como o peculato-apropriação independe de resultado naturalístico, de acordo com o artigo 16 do Código Penal, se o ressarcimento do prejuízo ocorrer até o recebimento da denúncia, o infrator poderá ter a pena reduzida de um a dois terços:

“Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)”

Confira o entendimento jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça:

“No peculato doloso, embora não seja possível a extinção da punibilidade, o ressarcimento do dano pode configurar o arrependimento posterior, se verificada a presença de seus requisitos. Porém, tratando-se de causa de diminuição de pena, deve ser analisada no momento oportuno, pelo juiz da causa, sob pena de supressão de instância.

(RHC n. 120.906/BA, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 16/6/2020, DJe de 23/6/2020.)”

A propósito, no julgamento do REsp n. 122.760/SP, relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 7/12/1999, DJ de 21/2/2000, p. 148, foi decidido que a reparação do dano para fins de incidência do artigo 16 do Código Penal não se restringe à esfera pessoal do infrator, ou seja, qualquer pessoa pode reparar o dano:

“A reparação do dano não se restringe à esfera pessoal de quem a realiza, desde que a faça voluntariamente, sendo, portanto, nestas condições, circunstância objetiva, estendendo-se, assim, aos co-autores e partícipes. Precedente (HC 4147/SP).”

Nesse sentido, se as apurações constatarem que os valores obtidos com a comercialização do Rolex foram convertidos em dinheiro em espécie e ingressaram no patrimônio pessoal dos investigados, por meio de “laranjas” e sem utilizar o sistema bancário formal, com o objetivo de ocultar a origem, localização e propriedade dos valores, os infratores poderão responder pelo crime de lavagem de dinheiro, conforme disposto no artigo 1º da Lei nº. 9.613, de 3 de março de 1998:

“Art. 1º  Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.                     (Redação dada pela Lei nº 12.683, de 2012)”

Conseqüentemente, como as esferas administrativa e criminal são independentes, ou seja, as punições são autônomas, de acordo com o artigo 9º da Lei 8.492, de 2 de junho de 1992, a comercialização indevida do Rolex poderá ser enquadrada, também, como ato de improbidade administrativa:

“Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:         (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

XI - incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1° desta lei.”

Por derradeiro, o ressarcimento ou a restituição dos bens à Administração Pública por ato daquele que praticou a suposto conduta desonesta não tem o condão de desqualificar a improbidade. Confira o seguinte julgado:

 “O ressarcimento ou restituição dos bens à Administração Pública por ato daquele que praticou a conduta ímproba ou por ato de terceiro, como no caso, pode devolver o estado anterior das coisas para fins de aferição da responsabilidade pela reparação integral do prejuízo, todavia não faz desaparecer o ato de improbidade que gerou inicialmente o dano ao erário.

REsp n. 1.579.678/PE, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator para acórdão Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 25/4/2019, DJe de 4/6/2019”

Portanto, ainda que não exista uma legislação específica sobre a possibilidade de se comercializar um bem de alto valor recebido pelo Chefe da Nação Brasileira, em viagem oficial, age com dolo eventual aquele que desrespeita, conscientemente, a determinação do Tribunal de Contas da União para, ao consectário da oportunidade e da conveniência, vender um patrimônio que, na melhor das hipóteses, gerava dúvidas sobre o real proprietário.

______________

Decreto Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940.

Lei nº. 8.394, de 30 de dezembro de 1991.

Decreto nº. 4.344, de 26 de agosto de 2002.

Acórdão 2255/201/Plenário, TC 011.591/2016 - Código eletrônico para localização na página do TCU na Internet: AC-2255-34/16-P.

APn n. 702/AP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Corte Especial, julgado em 3/8/2020, DJe de 14/8/2020.

RHC n. 10.845/SP, relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 13/3/2001, DJ de 23/4/2001, p. 166.

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024