INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo a análise técnica e comentários ao acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.351.352/RJ, de relatoria do ministro Humberto Martins, sob o ponto de vista do Direito Internacional Privado.
Colhe-se do referido julgado, um fato transnacional envolvendo o sequestro internacional de um menor, de nacionalidade brasileira e italiana que, embora residente na Itália, com a família, veio para o Brasil acompanhado dos pais, porém, após divergências entre ambos, houve a permanência do infante nesse país sem a autorização de um dos genitores.
Em decorrência da matéria tratada no acórdão, a Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças foi também debatida na presente dissertação.
DESENVOLVIMENTO DO TEMA
Conforme relata o acórdão sob estudo, as partes, uma cidadã brasileira e um cidadão italiano, residiam de forma habitual em Palermo, na Itália, e compartilhavam a guarda do filho menor.
Todavia, após viagem de férias ao Brasil, a genitora comunicou ao companheiro que não mais retornaria à Itália e permaneceria no Brasil com o filho do casal, tendo o companheiro discordado, de forma que a permanência do infante em território brasileiro restou desautorizada a partir de então.
O caso foi levado a juízo, sendo que a genitora propôs inicialmente pedido de guarda na Vara da Família de Nova Friburgo, Estado do Rio de Janeiro, juízo esse declarado incompetente para julgar o feito.
O genitor, por sua vez, se valeu de procedimento administrativo junto à Autoridade Central Federal Brasileira1 e, posteriormente, a União, na qualidade de agente de cooperação jurídica internacional, propôs ação de busca, apreensão e restituição na Justiça Federal, com o objetivo de que a criança fosse entregue a um representante italiano e retornasse à Itália.
Foram proferidas decisões desfavoráveis aos interesses da sequestradora, tanto em primeiro quanto em segundo grau de jurisdição, razão pela qual, essa interpôs recurso especial em face de acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região visando sua reforma pelo Superior Tribunal de Justiça, a que culminou no acórdão proferido no Recurso Especial 1.351.325 – RJ, objeto do presente estudo.
Nas razões do recurso especial, a genitora, alegou ofensa ao artigo 12 da Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças2 e divergência jurisprudencial, a qual seria no sentido de manter o menor no Brasil em caso de boa integração ao novo meio, configurando uma das exceções previstas no artigo. Argumentou então, que o menor sequestrado estava bem adaptado à sua família materna no Brasil e juntou laudo técnico emitido pelo Serviço Social da Defensoria Pública da União - DPU, o qual não foi impugnado pelo genitor.
Mencionou a condição peculiar da criança em desenvolvimento, sob os contornos constitucionais e acresceu que os direitos do menor deveriam se sobrepor a qualquer outro interesse juridicamente tutelado, como também que a referida Convenção prioriza o princípio do melhor interesse da criança.
Narra o acórdão que a genitora pleiteou a produção de prova pericial por assistente social e psicólogo, no entanto, tal pleito foi indeferido pelo magistrado de instância inferior, por entender que não havia transcorrido mais de um ano entre o sequestro perpetrado e o pedido administrativo feito pelo genitor.
O voto prolatado pelo relator, foi no sentido de afastar a violação ao art. 12 da Convenção sob alguns fundamentos, sendo o primeiro o de respeitar os objetivos da convenção, trazidos pelo artigo 1º, ao buscar impedir as consequências trazidas pelo abdutor, restabelecendo o status quo ante da criança.
Nesse sentido, segundo André de Carvalho Ramos (2023) a celeridade na retirada da criança evita que o abdutor forje novos vínculos que poderiam alterar a lei aplicável ao fato transnacional, alterando assim o Foro competente para discutir o mérito da guarda.
Outro fundamento trazido pelo relator foi a configuração da ilícita retenção transfronteiriça da criança conforme o art. 3º da Convenção e não comprovação das exceções previstas no art. 13, uma vez que, trata-se de retenção nova, não sendo cabível perícia (estudo psicossocial) e ainda pelo fato de que a repatriação seria a regra, conforme o diploma, cujo escopo não é definir a guarda, sendo o juízo competente para essa demanda o da residência habitual da criança.
A relação jurídica discutida no julgado envolve dois Estados, Brasil e Itália. Portanto, trata-se de relação jurídica plurilocalizada.
Segundo André de Carvalho Ramos (2023) a ocorrência de fato transnacional, com a influência de mais de um ordenamento jurídico gera, no Direito Internacional Privado, o fenômeno da concorrência ou conflito de jurisdições.
E ainda sob a visão do autor supracitado, é comum que os Estados definam a jurisdição por meio dos seguintes vínculos: nacionalidade, domicílio ou residência de uma das partes (autor ou réu), obrigação constituída ou executada e ainda pela celebração de atos relevantes aos respectivos Estados, como por exemplo, casamento e divórcio.
Tais vínculos se transformam nos chamados elementos de conexão, os quais apontarão para o direito a ser aplicado ao caso.
No caso em tela, o sub-ramo envolvido está, sem dúvidas, repousado no direito de família, o qual guarda relação com o artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, instituída pelo Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942.
O referido artigo traz como elemento de conexão o domicílio: Art. 7º - “A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família”. (BRASIL, 1942)
Ao observar a ementa e o inteiro teor do julgado em estudo, nota-se que para resolução do caso foi levada em consideração a residência habitual do infante, na Itália.
Isso se deu não só pela norma supracitada, mas também pelo fato do Brasil ter ratificado a já citada Convenção sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças, a qual foi criada com o objetivo de proteger a criança dos danos que possam ser causados pela mudança de domicílio ou retenção ilícita, e garantir meios para que ocorra o seu regresso ao Estado de sua residência habitual3, estabelecendo um sistema de cooperação entre os países signatários.
O relator, em seu voto, trouxe ainda uma observação importante, citando o doutrinador Jacob Dolinger4 no sentido de que existe uma aparente contradição entre o preâmbulo e o art. 1º da Convenção, visto que o preâmbulo visa proteger internacionalmente o melhor interesse da criança e o art. 1º enfatiza a repatriação imediata, o que nem sempre atenderá o melhor interesse do menor e neste ponto é que se encontraria o poder discricionário do juiz da causa.
Importante fazer-se menção a uma das exceções do retorno imediato, previstas no artigo 13 da Convenção, o grave risco, que afeta diretamente a criança e justifica o seu não retorno, tema já enfrentado pela Corte Europeia de Direitos Humanos. Porém, não configura grave risco apenas a separação do genitor responsável pela retenção ou transferência ilegais, não sendo motivo, por si só, para entrar na exceção do referido artigo. Nem mesmo a tenra idade e a dependência do genitor abdutor justificam a permanência no local onde se encontra, assim decidiu a mencionada Corte no caso Ilker Ensar Uyanik vs. Turquia5.
O sequestro internacional de crianças é, portanto, uma questão que demanda uma análise cuidadosa dos aspectos jurídicos do direito internacional. Nesse contexto, a referida convenção desempenha um papel fundamental na busca por soluções eficazes e justas, sendo um dos principais mecanismos o processo de restituição, dentro do qual o país para onde a criança foi levada deve tomar as medidas necessárias para restituí-la ao país de residência habitual, a fim de garantir o cumprimento dos direitos de guarda e o bem-estar da criança.
Para agilizar o processo de restituição, a convenção estabelece uma Autoridade Central em cada país signatário, a qual é responsável pela comunicação e cooperação direta com os países envolvidos, desempenhando papel crucial na troca de informações, na localização da criança e na facilitação do processo de restituição.
Além disso, a convenção estabelece diretrizes para a determinação da competência jurisdicional, visando evitar que pais insatisfeitos com uma decisão judicial em um país, tentem contornar a situação levando a criança para outro país, o que faz para garantir que as decisões sobre a guarda da criança sejam tomadas pelo tribunal competente, de acordo com a legislação do país de residência habitual da criança.
É importante ressaltar que a convenção prioriza o interesse superior da criança em todas as suas disposições. Esse princípio fundamental visa proteger a criança e garantir que suas necessidades físicas, emocionais e de desenvolvimento sejam atendidas da melhor forma possível. Assim, o retorno da criança ao seu país de residência habitual é considerado fundamental para preservar sua estabilidade e bem-estar.
CONCLUSÃO
Do ponto de vista técnico, o acórdão proferido no Recurso Especial 1.351.325 – RJ, objeto do presente estudo seguiu o que dispõe literalmente a Convenção da Haia e o artigo 7º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, determinando o regresso da criança ao Estado no qual essa possuía residência habitual, sendo esse o elemento de conexão aplicado ao caso.
No entanto, no caso específico em apreço, vimos como um ponto de fragilidade muito grande o não deferimento do estudo psicossocial, uma vez que o infante tinha, à época, apenas dois anos de idade, o que poderia demandar uma necessidade maior de estar com a genitora.
Nesse aspecto, embora a Convenção da Haia seja um instrumento jurídico importante na luta contra o sequestro internacional de crianças, é necessário reconhecer que sua aplicação enfrenta desafios em alguns casos. Diversas questões como a determinação do país de residência habitual, a verificação dos direitos de guarda, a avaliação das condições de vida no país de origem, diferenças culturais, sistemas jurídicos complexos e a falta de recursos adequados podem dificultar a resolução eficaz desses conflitos.
É fundamental a existência de um sistema judiciário competente, bem como de profissionais especializados em direito internacional da família. A atuação desses profissionais, incluindo advogados, mediadores, assistentes sociais e psicólogos, é essencial para orientar as partes envolvidas, buscar soluções amigáveis e garantir o cumprimento das disposições da convenção.
A Convenção da Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças estabelece diretrizes claras e princípios fundamentais, No entanto, é necessário o comprometimento e a cooperação entre os países envolvidos, para garantir uma resolução efetiva e justa desses casos complexos. A implementação adequada da convenção contribui para a promoção de um ambiente seguro e estável para as crianças, no qual seus direitos e bem-estar são preservados.
______________
1 Autoridade Central é o órgão interno responsável pela condução da cooperação jurídica de um Estado, e sua constituição decorre da assinatura, adesão ou ratificação de um tratado internacional que determine seu estabelecimento. A Autoridade Central detém a atribuição de coordenar a execução da cooperação jurídica, podendo, quando necessário, propor e fomentar melhorias no sistema de cooperação e de efetivação de um tratado internacional.
A principal atividade de uma Autoridade Central é prestar cooperação internacional de maneira célere e efetiva como decorrência da diminuição de etapas no processamento de demandas judiciais tramitadas entre países distintos, podendo-se, a depender do conteúdo do tratado que lhe incumbe implementar, inclusive dispensando o uso de outros mecanismos de cooperação jurídica internacional, como a homologação de sentenças estrangeiras ou o uso da carta rogatória. Nesse sentido, cabe à Autoridade Central evitar falhas na comunicação internacional e no seguimento de pedidos, permitindo que as etapas processuais ocorram em concordância com os pressupostos processuais gerais e específicos aplicáveis ao caso, bem como evitar a adoção de mecanismos de cooperação inadequados à situação específica. Portanto, compete à Autoridade Central receber e transmitir os pedidos de cooperação jurídica internacional envolvendo seu país, após análise de seus requisitos de admissibilidade. Informação disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/sua-protecao/cooperacao-internacional/acaf. Acesso em 10/05/2023.
2 O Brasil ratificou a referida convenção por meio do Decreto nº 3.413, de 14 de abril de 2000. O Artigo 12 prevê: “Quando uma criança tenha sido ilicitamente transferida ou retida nos termos do Artigo 3.º e tiver decorrido um período de menos de 1 ano entre a data da deslocação ou da retenção indevidas e a data do início do processo perante a autoridade judicial ou administrativa do Estado contratante onde a criança se encontrar, a autoridade respectiva deverá ordenar o regresso imediato da criança.
A autoridade judicial ou administrativa respectiva, mesmo após a expiração do período de 1 ano referido no parágrafo anterior, deve ordenar também o regresso da criança, salvo se for provado que a criança já se encontra integrada no seu novo ambiente.
Quando a autoridade judicial ou administrativa do Estado requerido tiver razões para crer que a criança tenha sido levada para um outro Estado, pode então suspender o processo ou rejeitar o pedido para o regresso da criança”.
3 Cf. Hague Conference on Private International Law-HCCH. 28: Convenção de 25 de outubro de 1980 sobre os Aspectos Civis do Rapto Internacional de Crianças, 1-XII-1983 Disponível em: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=24. Acesso em:13 de maio de 2023.
4 O relator citou a obra Direito internacional privado - a criança no direito internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
5 Corte Europeia de Direitos Humanos, Strasbourg, maio de 2012. Disponível em: ILKER ENSAR UYANIK c. TURQUIE (coe.int) . Acesso em: 16 de maio de 2023.
______________
- Convenção de Haia sobre os Aspectos Civis do Sequestro Internacional de Crianças. Disponível em: https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=24. Acesso em: 15 de maio de 2023.
- EJCHEL, Maurício. Sequestro Internacional de Crianças. Jusbrasil. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-sequestro-internacional-decriancas/674452650. Acesso em 15 de maio de 2023.
- SILVA, Artenira. Et al. O sequestro internacional de crianças e a proteção aos interesses do menor. Revista Brasileira de Direito Internacional. Ie-SSN: 2526-0219. Curitiba, v. 2, n. 2. p. 39 – 60. Disponível em: https://iusgentium.ufsc.br/wp content/uploads/2018/02/Artigo-leitura-obrigat%C3%B3ria.pdf. Acesso em: 15 de maio de 2023.
- Comentários sobre a convenção de Haia do STF. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/convencaoHaiaConteudoTextual/anexo/textoConvencao.pdf. Acesso em: 15 de maio de 2023.
- Manual de aplicação da convenção de Haia do CNJ. Disponível em: https://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/outras-publicacoes/manual-haia. Acesso em: 15 de maio de 2023.
- Promulgação da convenção de Haia no ordenamento jurídico brasileiro. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3413.htm. Acesso em 15 de maio de 2023.
- RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direito Internacional Privado. 3ª ed. São Paulo. SaraivaJur, 2023. E-book.