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A tríade de contratualistas clássicos e uma racionalidade em busca do bem-viver

Apresentar-se-á as ideias de três pensadores que influenciaram profundamente as teorias políticas modernas, buscando equilíbrio entre o poder governamental e as liberdades individuais, em prol de uma sociedade justa e harmoniosa.

15/8/2023

O Estado, independentemente dos inúmeros tipos oferecidos pela história, talvez seja o invento mais sofisticado de convivência e organização entre os seres humanos. E quando se fala sobre o Estado, nos deparamos com grandes pensadores. Aqui, dá-se destaque a três contratualistas: os ingleses Thomas Hobbes e John Locke e o suíço Jean-Jacques Rousseau. Esses autores partiram do pressuposto de que a humanidade teria passado por um período conhecido como estado de natureza, que possui como características a desorganização e a ausência do poder controlador. A convergência no pensamento dessa tríade de autores clássicos da política está centrada no fato de que eles estabeleciam que o Estado, baseado no contrato social, é oposto ao estado de natureza.

O primeiro deles, Thomas Hobbes, vai apresentar a oposição conceitual “estado de natureza/estado civil” em sua obra intitulada De Cive, desconstruindo a visão clássica que considera a capacidade humana de cooperar como algo natural e necessário, ao afirmar que a ordem civil não é um fato natural, mas uma formação histórica de autopreservação desejada de forma racional.

O filósofo Norberto Bobbio, que foi um dos mais vigorosos pensadores políticos da Itália, recordava Hobbes ao tratar do Estado como reino da razão:

O Estado é elevado a ente de razão, o único no qual o homem realiza plenamente sua própria natureza como ser racional. Se é verdade que, para o homem, como criatura divina, extra ecclesiam nulla salus [fora da igreja não há salvação], também o é que, para o homem, como ser natural, extra rem publicam nulla sallus [fora da república não há salvação]. Com a lucidez de sempre, Hobbes expõe o conceito em um célebre fragmento de Cive […]:

Fora do Estado é domínio das paixões, a guerra, o medo, a pobreza, o abandono, o isolamento, a barbárie, a bestialidade. Dentro do Estado é o domínio da razão, a paz, a segurança, a riqueza, a decadência, a sociabilidade, o refinamento, a ciência, a benevolência (BOBBIO, 2003, p. 83, grifo nosso).

Ou seja, em Hobbes, não se pode afastar da ideia de que só o Estado permite ao homem realizar a suprema lei da razão, que está atrelada à própria conservação, pois se quiser sobreviver, deve comportar-se racionalmente. O propósito fundamental de se congregar está na vontade e no desejo de conservar a própria existência enquanto humanos. Sendo esse o objetivo comum que faz surgir racionalmente o Estado, é em razão desse mesmo objetivo que a sociedade civil se constitui e passa a criar mecanismos para que a vontade do bem-viver possa ser alcançada por meio do Estado, pois é a reciprocidade do medo que une as pessoas. E assim Hobbes (2006, p. 20) afirmou:

[…] se fosse afastado o medo, a tendência da natureza humana seria muito mais ávida pelo domínio do que pela construção de uma sociedade. Devemos concluir então, que a origem de todas as sociedades, grandes e duradouras, não é a boa vontade mútua que os homens têm entre si, mas, sim, o medo mútuo que nutriam uns pelos.

No estado de natureza hobbesiano, predominam a violência e a insegurança, sendo necessário que alguém regule as relações a fim de evitar a autodestruição humana. Assim, o homem cria o Estado, o Deus artificial e moral, denominado Leviatã, estabelecendo um sem-número de regras para melhor (sobre)viver em sociedade. Em seu Leviatã, disse Hobbes:

[…] para que as palavras ‘justo’ e ‘injusto’ possam ter lugar, é necessária alguma espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao cumprimento dos seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja superior ao benefício que esperam tirar do rompimento do pacto […] (HOBBES, 2003, p. 124).

Percebe-se da leitura de Hobbes que, diante da insegurança por não poder obedecer aos comandos da lex natutalis, o homem racionalmente cria o Estado na busca de bem-viver, passando a sustentar as relações e o convívio por meio das leis civis. Assim, o homem passa a se sujeitar só ao Estado e “ninguém pode fazer leis a não ser o Estado” (HOBBES, 2003, p. 226).

Na obra Leviatã, Hobbes posiciona-se pela importância do contrato social, baseado na criação e no funcionamento de um governo liderado por um soberano, ou seja, um poder centralizador. Através desse pacto social, não se pode admitir o levante dos homens contra o Estado em razão da soberania que lhe é atribuída, surgindo, portanto, a ideia de estado absolutista, no qual os homens abdicam de sua liberdade em prol do bem comum, pois caberá ao soberano evitar a guerra de todos contra todos.

E John Locke possui uma estrutura de pensamento muito semelhante à de Hobbes, pois também trabalha um “estado de natureza”, que é contrastado com a “sociedade civil”, da qual difere pela falta de um juiz como autoridade, mas o estado de natureza de Locke não é como aquele descrito por Hobbes como sendo um estado em essência de guerra. Entretanto, isso não quer dizer que Locke via no estado de natureza uma espécie de paraíso, e chega a supor que a guerra até poderia prevalecer. Mas a questão de Locke, ao tratar o estado de natureza, está atrelada ao direito natural à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Todavia, vai trabalhar a liberdade como o primeiro dos bens civis do cidadão.

O estado de natureza em Locke deve ser considerado como o direito que todos têm à propriedade e à lei natural, pois a liberdade deve ser exercida pelos homens no estado de natureza para que todos tenham “perfeita liberdade para regular as suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgar acertado dentro dos limites da lei da natureza” (LOCKE, 2005, p. 381-382). Assim, Locke inaugura uma liberdade política em que as relações passam a ser operadas nos limites da lei civil:

A liberdade do homem em sociedade consiste em não estar submetido a nenhum outro poder legislativo senão àquele estabelecido no corpo político mediante consentimento, nem sob o domínio de qualquer vontade ou sob a restrição de qualquer lei afora as que promulgarem o legislativo, segundo o encargo a este confiado. A liberdade, portanto, não corresponde ao que nos diz sir R. F., ou seja, uma liberdade para cada um fazer o que lhe aprouver, viver como lhe agradar e não estar submetido a lei alguma. Mas a liberdade dos homens sob um governo consiste em viver segundo uma regra permanente, comum a todos nessa sociedade e elaborada pelo poder legislativo nela erigido: liberdade de seguir minha própria vontade em tudo quanto escapa à prescrição da regra e de não estar sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem. Assim como a liberdade da natureza consiste em não estar sujeito à restrição alguma senão à da lei da natureza (LOCKE, 2005, p. 401-402, grifo nosso).

Conforme se observa na obra de Locke, o homem é livre para fazer ou deixar de fazer, estando restrito apenas ao cumprimento das leis estabelecidas pelo legislativo, segundo o encargo a esse confiado. Ou seja, o Estado pactua socialmente com os indivíduos o exercício coletivo de um poder coercitivo, com vistas a proporcionar a todos os homens o bem comum.

Portanto, percebe-se que os ingleses Thomas Hobbes e John Locke se utilizam do contrato social como uma espécie de instrumento de mediação entre a passagem do estado de natureza para o Estado civil, muito embora divirjam no que concerne à essência do estado de natureza. Para Hobbes, esse período é marcado pela guerra constante, ao tempo que na visão de Locke imperaria a liberdade e a igualdade, sendo o estado de natureza de paz e mútua preservação.

O último pensador a compor a tríade dos referidos contratualistas é o suíço Jean-Jacques Rousseau, que, assim como fez Hobbes e Locke, também parte do estado de natureza para o desenvolvimento de seus estudos. Observa-se que a passagem desse estado para o Estado civil produziu no homem uma significativa mudança:

A passagem do estado de natureza ao estado civil produziu no homem uma mudança significativa, substituindo, em sua conduta, o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhe faltava. É somente então que a voz do dever, sucedendo ao impulso físico, e o Direito ao apetite, o homem, que até então só havia considerado a si mesmo, vê-se forçado a agir segundo outros princípios e a consultar a razão antes de escutar suas inclinações (ROUSSEAU, 2014, p. 33).

Assim, o homem, para Rousseau, passa a enxergar o outro, na mesma linha de Locke, ele trabalha a ideia de vontade geral como elemento primordial do Estado:

Enfim, cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não há um associado sobre o qual não se adquira o mesmo Direito que lhe concedem sobre cada um, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e mais força para conservar o que se tem. Portanto, se afastarmos do pacto o que não é de sua essência, veremos que ele se reduz aos seguintes termos. Cada um de nós põe em comum sai pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo (ROUSSEAU, 2014, p. 34, grifo do autor).

A noção de “vontade geral” representa a contribuição mais original do pensamento de Rousseau e fornece a base da moralidade republicana no Contrato Social:

Quando vários homens reunidos consideram-se como um só corpo, eles têm uma única vontade, relacionada à preservação comum e ao bem-estar geral. Então, todos os meios do Estado são vigorosos e simples, suas máximas são claras e luminosas, não há interesses confusos, contraditórios, o bem comum mostra-se em toda parte com evidência e requer apenas bom senso para ser percebido. A paz, a união e a igualdade são inimigas das sutilezas políticas (ROUSSEAU, 2014, p. 115).

Assim, a partir dos contratualistas, falar sobre o Estado é falar de uma racionalidade da busca do bem-viver, que é viabilizada através da vontade geral que pactua a intenção de convivência organizada, constituindo uma sociedade legitimada para tomar decisões.

Conclui-se, portanto, que o Estado é uma criação humana, racionalmente pensado como estrutura de Poder, em específico do poder político, com vistas à realização do convívio saudável entre os homens por meio do contrato, ou seja, o homem sai do seu estado de natureza e, por meio da razão, delega ao Estado o Poder para criar mecanismos jurídicos de controle que viabilizem as expectativas da sociedade, sendo, talvez, a expectativa mais inata a da (sobre)vivência da espécie humana.

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BOBBIO, N. O filósofo e a política. Rio de Janeiro: Abril, 2003.

HOBBES, T. Do cidadão. São Paulo: Martin Claret, 2006.

HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

LOCKE, J. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

ROUSSEAU, J. J. O contrato social. Porto Alegre: L&PM, 2014.

José Aymay
Advogado, mestre em Direito Público pela Unisinos, sócio do escritório Aymay Advocacia.

Monique dos Santos Aymay
Bacharelanda em Direito pela Uniritter.

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