Vivemos atualmente uma problemática no Direito da Saúde: a expulsão (ou tentativa) clara das operadoras de saúde de expulsarem os idosos dos planos de saúde, em virtude da elevação do risco e custos que representam. E essa prática tem se dado, principalmente, pelo aumento abusivo das mensalidades dos planos de saúde. Não à toa, as ações revisionais (ou de reajuste) vem aumentando significativamente no Judiciário.
Como muitos sabem, a operação de planos de saúde no Brasil é (ou deveria ser) orientada pelo chamado princípio da solidariedade intergeracional. Trata-se de um princípio aplicado também à previdência social que, em apertada síntese, estabelece que os mais jovens devem ajudar a custear as despesas de saúde cobertas para os mais idosos, de forma equilibrada, para não inviabilizar a entrada de pessoas mais jovens nos planos, nem a permanência dos mais idosos neles.
O raciocínio é simples: se um idoso precisa custear sozinho todas as suas despesas com saúde, é provável que sua permanência no sistema se torne rapidamente insustentável – considerando que como regra estará em uma fase de sua vida com redução ou impossibilidade de aumento de renda e, ainda, considerando que sabidamente com o aumento da idade, existe um aumento da demanda por assistência à saúde, com consequente aumento de despesa.
Por outro lado, para os mais jovens, é preciso que essa divisão de riscos seja equilibrada, tendo em vista que a baixa utilização (natural entre os mais jovens) não justificaria uma mensalidade muito elevada. Assim, poucas pessoas aceitariam pagar muito caro por um plano de saúde que pouco utilizam, unicamente em razão da necessidade de custear parte das despesas daqueles com mais idade e risco aumentado.
Ocorre que o que vemos diariamente é a completa deturpação desse sistema de solidariedade pelas operadoras de planos de saúde. Isto, porque ao invés de distribuir de forma equilibrada os custos entre as faixas etárias, as operadoras acabam por “carregar” na última faixa (que, atualmente, é de 59 anos para planos contratados a partir de janeiro de 2004).
Assim, a prática mais comum já há alguns anos é driblar as regras fixadas pela Lei de Planos de Saúde (Lei 9.656/98) e pela Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS (especificamente por meio da RN 63/03, que estabelece os parâmetros de fixação e de cálculo dos limites de reajuste aceitáveis a título de faixa etária nos planos de saúde).
Por meio dessa prática, as operadoras de planos de saúde fixam para as primeiras faixas etárias percentuais mais baixos – em alguns casos, iguais a zero – e elevam demasiadamente o percentual de reajuste nas últimas faixas etárias (principalmente de 59 anos), tudo seguindo, em tese, a fórmula de cálculo “correta”, mas de modo que o valor da mensalidade do idoso se torna impagável, não deixando opção que não a saída do plano com o qual acreditava que poderia contar em sua “velhice”.
Isso, sem falar em planos contratados antes de janeiro de 1999 (quando teve início a vigência da Lei nº. 9.656/98), que em sua maioria sequer indicam os percentuais de reajuste que o segurado/usuário receberá e, ainda, preveem reajustes anuais a partir de determinada faixa etária: geralmente de 5% ao ano, a partir dos 66 (sessenta e seis) ou 70 (setenta) anos.
Obviamente, se trata de prática abusiva, em completa contrariedade ao que ficou estabelecido pelo Egrégio Superior Tribunal de Justiça no Tema 952 do STJ, dado o caráter verdadeiramente expulsório desses reajustes:
O reajuste de mensalidade de plano de saúde individual ou familiar fundado na mudança de faixa etária do beneficiário é válido desde que (i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso.
Essa prática abusiva precisa ser fortemente combatida pelo Judiciário. Não obstante o STJ tenha fixado, no Tema 1016, o entendimento de validade formal da cláusula de reajuste de faixa etária quando observada a regra de cálculo aritmético da RN 63/03 da ANS, é necessário se analisar os reajustes tendo em consideração a essencialidade dos planos de saúde – especialmente para os idosos – e a vedação de reajustes de caráter discriminatório e expulsivo dos idosos.
Nesse sentido, a jurisprudência de diversos tribunais do país, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, tem adotado outros critérios, como a média de mercado, para verificação de abusividade no percentual de reajuste aplicado pela operadora de plano de saúde:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. CPC/2015. PLANO DE SAÚDE COLETIVO POR ADESÃO. REAJUSTE POR FAIXA ETÁRIA.NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. ALEGAÇÃO GENÉRICA. ÓBICE DA SÚMULA 284/STF. REAJUSTE REDUZIDO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. PRETENSÃO DE NOVA REVISÃO NO ÂMBITO DESTA CORTE SUPERIOR. COTEJO DO PERCENTUAL REVISADO COM A MÉDIA DO MERCADO E O DESVIO PADRÃO DIVULGADOS PELA ANS. AUSÊNCIA DE ABUSIVIDADE NO CASO CONCRETO. REVISÃO DOS CÁLCULOS ATUARIAIS. DESNECESSIDADE. DISTINÇÃO ENTRE INIDONEIDADE DA BASE ATUARIAL E ABUSIVIDADE DA DISTRIBUIÇÃO DE ÍNDICES. 1. Controvérsia pertinente à revisão de reajuste por faixa etária em plano de saúde coletivo por adesão, na hipótese em que pactuados reajustes de 27,16%, 1,89% e 89,07% para as três últimas faixas etárias, tendo o Tribunal de origem reduzido o índice da última faixa para 72,085%.
2. Inviabilidade de se conhecer da alegação de negativa de prestação jurisdicional, porque deduzida em termos genéricos, sem particularização dos alegados vícios de fundamentação do acórdão recorrido. Óbice da Súmula 284/STF.
3. Nos termos dos Temas 1016/STJ c/c 952/STJ, o reajuste por faixa etária é válido desde que: "(i) haja previsão contratual, (ii) sejam observadas as normas expedidas pelos órgãos governamentais reguladores e (iii) não sejam aplicados percentuais desarrazoados ou aleatórios que, concretamente e sem base atuarial idônea, onerem excessivamente o consumidor ou discriminem o idoso".
4. Caso concreto em que a existência de previsão contratual é inconteste nos autos, tendo-se observado o sentido matemático da expressão "variação acumulada" da RN ANS 63/2003, estando assim atendidos os requisitos i e "ii" do referido Tema.
5. Utilização da média de mercado e do desvio padrão como parâmetro para se aferir a razoabilidade do reajuste (item 'iii'), uma vez que esses dados (divulgados pela ANS) são extraídos do próprio mercado fornecedor de planos de saúde.
6. Caso concreto em que o Tribunal de origem revisou o índice de reajuste, de 89% para 72%, percentual se situa dentro da margem de uma vez e meia o desvio padrão, margem adotada como parâmetro de razoabilidade, não se vislumbrando, portanto, abusividade no caso concreto.
7. Desnecessidade de revisão da base atuarial da precificação, pois, em virtude da solidariedade intergeracional, as proporções matemáticas da RN ANS 63/2003 são mais vantajosas aos consumidores idosos do que as projeções atuariais.
8. Distinção entre a abusividade resultante da inidoneidade da base atuarial da precificação, e a abusividade resultante da manipulação de índices de reajuste visando desestimular a permanência do idoso no plano de saúde.
9. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
(STJ - REsp: 1721776 SP 2018/0023265-0, Data de Julgamento: 04/10/2022, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/10/2022)
Para que a discussão ganhe força, é necessário que ela seja ampliada e ganhe relevo, tanto extrajudicialmente, quanto em ações judiciais, nas quais deveram as operadoras demonstrar de forma cabal que o percentual aplicado encontra justificativa atuarial no aumento de risco correspondente à faixa etária, sob pena de ter o índice revisado e reduzido pelo Judiciário.
Desta forma, cabe aos usuários buscarem os órgãos competentes, especialmente a ANS e o Poder Judiciário, quando verificarem que o percentual de reajuste aplicado a título de faixa etária inviabiliza sua permanência no plano de saúde, estando muito acima da média praticada no mercado.