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Uma análise crítica do julgamento da ADIn 5492 / DF no tocante à constitucionalidade dos arts. 9º e 311 do CPC

É possível harmonizar o princípio do contraditório com os princípios da razoável duração do processo e da efetividade, não havendo, em nossa visão, colidência entre esses princípios, a despeito do que decidiu a Suprema Corte.

14/8/2023

Nos dias de hoje não há nenhuma dúvida sobre a constitucionalidade da antecipação da tutela sem contraditório prévio com o fito de se evitar lesão ou ameaça a direito. Muito embora o contraditório seja um pilar fundamental da Constituição Federal, por vezes é necessário mitigá-lo quando confrontado com o direito à tutela adequada dos direitos, o que autoriza o diferimento da oitiva da contraparte em hipóteses de urgência. 

Isso não diminui a importância do contraditório. Aliás, o CPC/15 primou pela valorização desse princípio constitucional ao dispor no art. 10, por exemplo, que o juiz não poderá decidira respeito de matéria sem que tenha dado às partes oportunidade de se manifestar sobre ela, ainda que possa decidir de ofício. Esse novo conceito de contraditório reforça o modelo cooperativo do processo em detrimento do sistema adversarial já superado, bem como passa a compreender, além das partes, também o juiz como integrante ativo da dinâmica do exercício do contraditório ao longo do processo. 

A regra geral, portanto, é o contraditório prévio, porém o art. 9º do CPC excepcionou algumas hipóteses, entre elas a tutela de urgência já mencionada anteriormente, assim como a tutela da evidência prevista nos incisos II e III do art. 311 do CPC, ou seja, nos casos em que as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante, assim como em hipótese de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito. Essa disposição legal também foi reforçada no parágrafo único do art. 311 do CPC. 

Dessa forma, mesmo sem a presença da urgência, a lei processual admitiu que a tutela jurisdicional possa ser antecipada inaudita altera parte. 

A constitucionalidade dessa previsão foi posta em debate perante o STF, na ADIn 5.492, por meio da qual se pretendeu a  declaração de inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 311 e também do inciso II do art. 9º, ambos do CPC. 

Quem defendia a inconstitucionalidade desses dispositivos legais sustentava que não há razão para a postergação do contraditório se não há urgência. Em outras palavras, por não haver dicotomia entre a efetividade da tutela jurisdicional e o direito a o contraditório, seria o caso de preservar o direito do jurisdicionado de ser previamente ouvido antes da prolação de decisão judicial que possa lhe atingir. 

Nessa linha, Marinoni1 sustenta que o direito evidente apenas poderá ser assim considerado depois do contraditório, pois é somente após a oitiva do réu que emergem as condições de se constatar a seriedade ou não de sua defesa. A título de exemplo, ao analisar o inciso III do art. 311 do CPC, o processualista afirma que bastaria que o réu apontasse a falsidade do contrato de depósito apresentado pelo autor para fazer cessar a evidência do direito postulado. 

Na mesma toada, Alexandre Câmara2, ao referir-se ao inciso II do art. 311, aponta que o réu poderá demonstrar a distinção (distinguishing) ou superação (overruling) do precedente trazido pelo autor para requerer a tutela da evidência com fulcro no inciso II, ou até mesmo demonstrar a prescrição ou decadência do direito em discussão, razão pela qual a concessão da tutela da evidência liminarmente não se justificaria. 

1 “É que obviamente não se pode aferir evidência do direito antes de o réu ter sido citado e apresentado defesa. Note-se, por exemplo, que a alegação de falsidade é suficiente para descaracterizar a evidência das ‘alegações de fato’ e da ‘prova documental’ do contrato de depósito. Isso para não falar que a tutela da evidência sempre depende da análise da consistência da defesa de mérito, direta ou indireta. Os incisos II e III, conforme demonstrado, dizem respeito a situações em que o réu apresenta defesa de mérito indireta infundada que requer instrução dilatória. De modo que é absolutamente impossível aferir os pressupostos para a tutela da evidência liminarmente” (MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela de urgência e tutela de evidência: soluções processuais diante do tempo da Justiça. São Paulo: Revistados Tribunais, 2020. [Livro eletrônico]). 

2 “Basta pensar na hipótese prevista no inciso II do art. 311 para perceber que a evidência não pode ser confundida com certeza acerca da existência do direito, o que legitima a exigência de que, ao menos como regra geral, o contraditório prévio tenha de ser observado. É que o demandado pode apresentar uma série de defesas possíveis – e sérias – capazes de levar à conclusão de que o demandante não tem razão e, portanto, seu pedido deve ser julgado improcedente. Imagine-se, por exemplo, que o réu demonstre ter se operado prescrição ou decadência, ou que demonstre ele ser caso de distinguishing (mecanismo de distinção entre o caso concreto e o que deu origem ao precedente) ou de overruling (superação do precedente). Raciocínio análogo pode ser desenvolvido na hipótese prevista no inciso III do art. 311, em que oréu poderá, atravésda sua atuação no processo, demonstrar que o contrato celebrado não era de depósito, ou que após a celebração do contratoalgum fato superveniente ocorreu que tenha sido capaz de afastar a existência do direito do demandante à restituição do bem (como, por exemplo, uma doação superveniente), ou que existe direito de retenção (art. 644 do CC)” (CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 6. ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2020. p. 167).

De outra banda, havia também aqueles que se posicionavam pela constitucionalidade dos dispositivos legais em comento, pois sustentavam que não há a supressão do contraditório, mas apenas o seu diferimento. Assim, se cumpridos os requisitos previstos em lei, o contraditório prévio poderia ceder espaço em homenagem aos princípios da razoável duração do processo e da efetividade, tal como aponta Rogéria Dotti.3 

Em outras palavras, quando houver intensa probabilidade da existência do direito demonstrada de forma documentada pela parte, a tutela da evidência poderá ser deferida liminarmente pelo juiz após análise criteriosa do magistrado. Cândido Rangel Dinamarco4 admite essa possibilidade de forma excepcional justamente quando o direito se mostrar inabalavelmente evidente. 

No julgamento da ADI 5.492 pelo STF prevaleceu a corrente defensora da constitucionalidade dos dispositivos legais em comento, conforme acórdão recém publicado no dia 9/8/23. 

3 “(...) não se vê vedação constitucional à liminar de evidência quando a prova já produzida pelo autor for forte o suficiente para gerar a convicção do magistrado. Entram em cena aqui outros direitos fundamentais de igual relevância (razoável duração do processo, acesso adequado à jurisdição e efetividade). Em síntese, entende-se que a permissão de concessão liminar não é inconstitucional e não chega a desnaturar a alma dialógica da tutela da evidência. Esta constitui a essência dessa técnica de antecipação, presente em sua própria origem (référé do direito francês). Mas o diálogo continuará existindo, ainda que em um momento subsequente. Afinal, o contraditório só será postecipado” (DOTTI, Rogéria Fagundes. Tutela da evidência: probabilidade, defesa frágil e o dever de antecipar a tempo. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. [Livro eletrônico]). 

4 “Apesar desses sólidos argumentos lançados contra a admissibilidade da concessão dessas liminares, não é prudente fechar inteiramente e de modo absoluto as portas à sua admissibilidade em casos de uma excepcionalmente intensa probabilidade da existência do direito do autor. Ao deparar com um direito manifesta e inabalavelmente evidente, a antecipação da tutela jurisdicional pela via do disposto no art. 311 do Código de Processo Civil poderá contar com o respaldo da própria garantia de acesso à justiça e da promessa constitucional de oferta da tutela jurisdicional em tempo razoável (Const., art. 5º, inc. LXXVIII). Mas, na realidade, só em casos extraordinários de uma estratosférica excepcionalidade isso poderá acontecer. Mesmo nesses casos extremos, todavia, o juiz deverá estar atento à proibição de impor medidas antecipatórias capazes de criar situações irreversíveis (art. 300, § 3º – supra, n. 1.491)” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2017. v. III, p. 886-887). 

Em suma, decidiu a Suprema Corte que: “desde que haja justificativa razoável e proporcional para o diferimento do contraditório e desde que se abra a possibilidade de a parte afetada se manifestar posteriormente acerca da decisão que a afetou, ou sobre o ato do qual não participou, não há que se falar em inconstitucionalidade por ofensa ao princípio do contraditório”. 

Como se vê, o princípio do contraditório cedeu espaço para o princípio da razoável duração do processo. 

Mas será mesmo que havia essa colidência de princípios constitucionais? 

Com todo respeito ao julgamento do STF, não havia razão para a relativização do contraditório sem a presença de urgência, notadamente por se tratar de um valor constitucional de alta estatura. 

A caracterização do direito do autor como evidente passa necessariamente pela análise da resposta do réu, tendo em vista que a regra geral da tutelada evidência exige não somente a alta probabilidade do direito de uma parte, mas também a apresentação de defesa não séria pela outra parte. 

Os que sustentam a constitucionalidade das disposições legais em questão com fundamento nos princípios da razoável duração do processo e da efetividade, talvez devam voltar suas atenções para o que se costuma chamar de etapas mortas do processo, isto é, o tempo em que o processo aguarda providências de cartório ou decisões judiciais para avançar. 

Havendo meios adequados para a citação do réu de forma célere, não haveria a necessidade de concessão da tutela da evidência liminarmente, pois, nesse caso, a razoável duração do processo não estaria em risco. 

Quem experimenta o cotidiano forense sabe que ainda há muita morosidade na tramitação dos processos, porém, o CPC/15 oferece boas ferramentas para a superação desse obstáculo. 

A lei 14.195/21, por exemplo, modificou os procedimentos de citação justamente no intuito de otimizar a realização desse ato processual. Nos termos da nova redação do art. 2465 do CPC, a citação será realizada preferencialmente por meio eletrônico e não mais por intimação postal ou de oficial de justiça. O art. 238 foi acrescido de parágrafo único6 determinando que a citação seja realizada no prazo máximo de até 45 dias contados da propositura da ação. O caput7 do art. 247 teve a redação modificada para reforçar que a citação será realizada por meio eletrônico. 

Tais alterações legislativas ainda carecem de regulamentação, contudo, uma coisa é certa, desde que observadas as garantias do modelo constitucional do direito processual civil, qualquer iniciativa que reduza o tempo patológico do processo e suas etapas mortas deve ser louvada.  

5 “Art. 246. A citação será feita preferencialmente por meio eletrônico, no prazo de até 2 (dois) dias úteis, contado da decisão que a determinar, por meio dos endereços eletrônicos indicados pelo citando no banco de dados do Poder Judiciário, conforme regulamento do Conselho Nacional de Justiça. I – (revogado); II – (revogado); III – (revogado); IV – (revogado); V – (revogado).§ 1º As empresas públicas e privadas são obrigadas a manter cadastro nos sistemas de processo em autos eletrônicos, para efeito de recebimento de citações e intimações, as quais serão efetuadas preferencialmente por esse meio. § 1º-A. A ausência de confirmação, em até 3 (três) dias úteis, contados do recebimento da citação eletrônica, implicará a realização da citação: I – pelo correio; II – por oficial de justiça; III – pelo escrivão ou chefe de secretaria, se o citando comparecer em cartório; IV – por edital. § 1º-B. Na primeira oportunidade de falar nos autos, o réu citado nas formas previstas nos incisos I, II, III e IV do § 1º-A deste artigo deverá apresentar justa causa para a ausência de confirmação do recebimento da citação enviada eletronicamente. 

§ 1º-C. Considera-se ato atentatório à dignidade da justiça, passível de multa de até 5% (cinco por cento)do valor da causa, deixar de confirmar no prazo legal, sem justa causa, o recebimento da citação recebida por meio eletrônico. § 2º O disposto no § 1º aplica-se à União, aos Estados, ao Distrito Federal, aos Municípios e às entidades da administração indireta. § 3º Na ação de usucapião de imóvel, os confinantes serão citados pessoalmente, exceto quando tiver por objeto unidade autônoma de prédio em condomínio, caso em que tal citação é dispensada. § 4º As citações por correio eletrônico serão acompanhadas das orientações para realização da confirmação de recebimento e de código identificador que permitirá a sua identificação na página eletrônica do órgão judicial citante. § 5º As microempresas e as pequenas empresas somente se sujeitam ao disposto no § 1º deste artigo quando não possuírem endereço eletrônico cadastrado no sistema integrado da Rede Nacional para a Simplificação do Registro e da Legalização de Empresas e Negócios (Redesim). § 6º Para os fins do § 5º deste artigo, deverá haver compartilhamento de cadastro com o órgão do Poder Judiciário, incluído o endereço eletrônico constante do sistema integrado da Redesim, nos termos da legislação aplicável ao sigilo fiscal e ao tratamento de dados pessoais.” 

6 “Art. 238. Citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual. Parágrafo único. A citação será efetivada em até 45 (quarenta e cinco) dias a partir da propositura da ação.” 

7 “Art. 247. A citação será feita por meio eletrônico ou pelo correio para qualquer comarca do País, exceto: (...).” 

A utilização da tecnologia em prol da efetividade do processo é tendência inexorável para o futuro, notadamente diante do avanço galopante das comunicações e documentos eletrônicos em detrimento dos físicos, o que certamente guiará a lei processual sobre a matéria e conferirá maior agilidade ao processo. 

Além disso, relembre-se que o juiz tem o poder de alterar regras de procedimento para mais bem adequá-lo ao caso concreto. Nesse sentido, parece-nos que não haveria óbice, por exemplo, para que o magistrado concedesse um prazo mais exíguo ao réu para se manifestar apenas sobre o pedido de tutela da evidência, sem prejuízo da manutenção do prazo legal de 15 dias úteis para apresentar contestação. Isso, aliás, já se observa na prática, notadamente em pedidos de tutela de urgência em sede de juizados especiais em que o juiz concede o prazo de 48 horas, por exemplo, para que o réu se manifeste sobre determinadas alegações do autor que sustentaram o pedido de tutela antecipada. 

Enfim, desde que haja cooperação, lealdade e boa-fé entre as partes, é possível harmonizar o princípio do contraditório com os princípios da razoável duração do processo e da efetividade, não havendo, em nossa visão, colidência entre esses princípios, a despeito do que decidiu a Suprema Corte. 

Renato Armoni
Diplomado pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas -FGV; Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP; Mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP.

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