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Chacina do Guarujá: a naturalização do extermínio dos “indesejáveis” em nome da segurança pública

Os fatos recentes no caso do Guarujá apontam para execuções sumárias, violência desproporcional e ação movida por vingança.

2/8/2023

Dentro das diversas ideias equivocadas que prevalecem no senso comum sobre políticas de segurança pública no Brasil, talvez nenhuma seja tão insidiosa e virulenta quanto a crença de que o combate efetivo ao crime demandaria uma “mentalidade de guerra” - na qual violações de direitos humanos e de garantias fundamentais representariam um “dano colateral” inevitável e justificável.

O recente caso da chacina no Guarujá, em São Paulo, escancara novamente os déficits de cidadania, legalidade e democracia que permeiam as políticas de segurança pública no país. Para entender melhor essa situação, imagine, por um momento, uma operação policial realizada em um bairro de classe média-alta (desmantelando, por exemplo, esquemas de tráfico, lavagem de dinheiro ou sonegação) que culminasse na execução sumária de mais de 10 pessoas no local. Como a opinião pública e a mídia reagiriam a tal acontecimento? É difícil sequer conceber tal cenário. Porém, ao mesmo tempo, muitos de nós tendem a achar perfeitamente normal o que aconteceu no Guarujá, mostrando que já internalizamos a ideia de que práticas de exceção são “justificáveis” quando ocorrem em comunidades periféricas e entre populações carentes, sem voz e representação.

Nesse contínuo, de um "fato isolado" a outro, se desenvolve uma prática sistemática de gerenciamento dos "indesejáveis" (o pobre, o periférico, o “cidadão de segunda classe”) por meio de medidas excepcionais disfarçadas de "políticas públicas". Surpreendentemente, essa cruel realidade, apesar de sua recorrência contínua, permanece relativamente à margem dos debates políticos nacionais, emergindo apenas de forma episódica em reações de curto prazo e em manchetes pontuais.

Na sociedade contemporânea do espetáculo, na qual eventos "bombásticos" são rapidamente esquecidos em questão de dias para dar lugar a outras comoções momentâneas, nossa memória coletiva padece junto com as vítimas da brutalidade estatal. Será que já esquecemos de casos como a chacina na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, ocorrida em 2021? Ou da morte do jovem João Pedro em uma operação no Morro do Salgueiro em maio de 2020? E o músico Evaldo dos Santos Rosa, morto após seu carro ser alvejado por mais de 80 tiros disparados por militares em abril de 2019? Será que alguém ainda lembra do assassinato do menino de 14 anos Marcos Vinícius no Complexo de Favelas da Maré em junho de 2018 - ou dos abusos repetidos durante a intervenção federal com forças militares no Rio de Janeiro, também em 2018?1

Sabemos que, por vezes, facções criminosas se estabelecem em comunidades periféricas. Isso não justifica, de forma alguma, que os agentes estatais que atuam nas áreas urbanas tratem os cidadãos dessas comunidades como inimigos em um campo de batalha. Os agentes estatais não devem imitar ou adotar as mesmas práticas brutais do crime organizado. Enquanto os criminosos agem fora da lei e das normas, o Estado não pode, sob nenhuma circunstância, tornar-se criminoso. Quando isso acontece, o Poder Público, a cidadania e as instituições se deterioram, transformando-se em algo semelhante às facções criminosas que pretendiam combater.

Os fatos recentes no caso do Guarujá apontam para execuções sumárias, violência desproporcional e ação movida por vingança. Tentar justificar a chacina com base em julgamentos morais aleatórios do tipo "todos ali eram bandidos" não faz sentido, pois essa afirmação não encontra suporte nos fatos conhecidos até o momento2. Além disso, nossa Constituição Federal proíbe a pena de morte até mesmo para criminosos julgados e condenados - tornando inaceitável, portanto, a aplicação sumária de pena capital para meros suspeitos que ainda não foram devidamente processados ou condenados. Naturalmente, tudo isso se torna ainda pior quando o próprio governador, que deveria simbolizar o império da lei e do Direito, vem a público para se declarar “extremamente satisfeito” (sic) com o resultado de uma chacina3.

Em uma sociedade acostumada com a cultura do imediatismo e do espetáculo (chamada por Bauman de "Modernidade Líquida" e por Lipovetsky de "Hipermodernidade"), o tempo do sistema judicial pode frustrar as expectativas individuais e coletivas. No entanto, é crucial entender que a velocidade da Justiça não deve ser a mesma das satisfações instantâneas da sociedade de consumo. Vale ressaltar que a única alternativa ao Estado Democrático de Direito, até o momento conhecida, é a barbárie populista/tribalista, que busca validação e legitimidade por meio da gratificação imediata dos desejos e da satisfação irrefreada dos impulsos do baixo-ventre de hordas e turbas de ocasião.

É claro que não devemos ignorar as graves dificuldades enfrentadas pelas forças policiais em seu combate ostensivo à criminalidade no país, nem defender uma visão ingênua de abolicionismo penal ou demonização da polícia, baseada em fantasias utópicas de uma paz social "espontânea" (que nunca existiu fora do reino da ficção). Até hoje, nenhuma nação, mesmo as mais civilizadas e comprometidas com os princípios de direitos humanos e garantias legais, conseguiu erradicar completamente o elemento repressivo inerente à atividade estatal no cumprimento coercitivo da lei. No entanto, devemos entender "repressão" como algo que ocorre estritamente dentro dos limites legais e normativos de um Estado Democrático de Direito. Na democracia contemporânea, não há espaço para comportamentos discricionários ou autoritários no agir repressivo e coercitivo do Estado.

Alguns podem acreditar que apenas ações policiais rápidas e violentas seriam capazes de proporcionar à sociedade uma sensação adequada de resposta aos abusos cometidos pela criminalidade organizada. Porém, os dados dos quais dispomos não sustentam este senso comum. Em artigo4 publicado em 2020 na revista Crítica Jurídica, da pós-graduação em Direito da Universidade Nacional Autônoma do México (ao qual remeto o leitor, para uma análise mais aprofundada do tema abordado), demonstrei que o cruzamento de dados de diversos relatórios internacionais recentes sobre direitos humanos e paz social aponta para uma clara correlação entre sistemas jurídicos comprometidos com o respeito aos direitos e garantias fundamentais e o sucesso desses sistemas em oferecer aos cidadãos níveis elevados de pacificação social.

Em outras palavras, a ordem democrática civilizada, conforme os padrões internacionais contemporâneos, não é estabelecida arbitrariamente por meio da força, mas sim através da observância sistemática a um núcleo de direito e garantias fundamentais constitucionalmente consagrado, por meio de instituições democráticas sólidas e funcionais ativamente comprometidas com a principiologia do Estado Democrático de Direito. Isso significa que não existe uma relação de oposição ou antagonismo entre segurança pública e direitos humanos. Pelo contrário: estes operam precisamente como condição de possibilidade para que a paz social e a segurança pública possam efetivamente existir e perdurar.

____________

1 RAMOS, Silvia (coord.). Vozes sobre a intervenção. Rio de Janeiro: Observatório da Intervenção/CESeC, agosto de 2018. Disponível no endereço eletrônico: https://cesecseguranca.com.br/textodownload/vozes-sobre-a-intervencao/

2 UOL. O que se sabe sobre a chacina no Guarujá após morte de PM da Rota. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/07/31/o-que-se-sabe-caso-pm-rota-morto-guaruja.htm

3 Band. Governador de SP se diz "extremamente satisfeito com ação da polícia" no Guarujá. Disponível em: https://www.band.uol.com.br/noticias/tarcisio-e-secretarios-de-seguranca-falam-sobre-operacao-apos-morte-de-pm-16620762

4 ABEL, Henrique. As garantias fundamentais e os direitos sociais da Constituição Brasileira de 1988 como supostos “obstáculos” para o desenvolvimento econômico e político do país: desconstruindo um mito. Revista Crítica Jurídica Nueva Época - Unam Posgrado Derecho (enero-diciembre 2020), nº 2, p.383-407, 2020. Disponível no endereço eletrônico: tinyurl.com/277vjpuw

Henrique Abel
Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS/RS, com estágio doutoral na School of Law of Birkbeck, University of London. Autor. Professor convidado de cursos de pós-graduação. Advogado.

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