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Da incidência de FGTS sobre a denominada indenização a que se refere a novel redação do § 4º do art. 71 da CLT

A natureza jurídica de um instituto é definida não apenas pela sua essência, mas também pela posição ocupada dentro do sistema, visando à sua inserção em alguma das categorias do Direito.

1/8/2023

Na busca de afastar a aplicação dos supostos excessos contidos na Súmula 437 do TST, o legislador reformista da CLT deu nova redação ao § 4º do art. 71 da CLT. Esclarecedor do real intento do legislador de 2017, o Parecer do Relator na Câmara dos Deputados da Reforma de 2017 asseverou:

É importante ressaltar que a Súmula 437 do TST não possui respaldo na Constituição ou mesmo na legislação, sendo um exemplo claro de ativismo judicial que criou obrigações sem lei que a exija e que invade a esfera do Poder Legislativo.1

Apesar de a lei haver previsto uma “indenização” para compensar o labor indevidamente prestado durante o intervalo intrajornada, composta pelo valor do tempo trabalhado acrescido do percentual de 50%, esse pagamento tem por finalidade remunerar o serviço prestado. A máxima pelo trabalho vs. para o trabalho2 constitui um bom norte para o entendimento da verdadeira natureza dessa verba.

Por relevante, convém notar que a apontada natureza indenizatória mencionada no dispositivo foi redigida para alcançar toda a verba do labor no intervalo intrajornada, e não somente o acréscimo de 50%.

Com efeito, toda contraprestação pelo trabalho prestado insere-se no conceito de remuneração, independentemente da denominação adotada, se o pagamento não é indispensável para a realização das atividades do trabalhador, podendo, inclusive, abranger quantias pagadas por terceiros (gorjetas). Nessa linha, dispõe o caput do art. 457 da CLT que se compreende na remuneração do empregado os valores que lhe são destinados como contraprestação do serviço.

O legislador reformista de 2017 se houve com melhor esmero na nova redação do § 2º do art. 457 da CLT3, pois afirmou expressamente que as parcelas ali previstas não integram a remuneração, tampouco constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário. De forma diversa, o § 4º do art. 71 consolidado, nos termos em que se encontra redigido, não apenas consagra a lógica de pagamento pelo labor extraordinário e efetivamente desempenhado, o que lhe dá a nítida conotação de remuneração45 a que se refere o caput do art. 457 consolidado (embora se equivoque no termo indenização), como também em nenhum momento preceitua sobre o afastamento dos reflexos trabalhistas e previdenciários.

Veja-se que a simples utilização do vocábulo “indenização” não é suficiente para afastar a incidência de FGTS, servindo de exemplo o aviso prévio indenizado (art. 221, inc. XXI, da IN MTE nº 02/2021), sobre o qual recai a obrigação fundiária. Em paralelo, a regra geral do art. 15 da lei 8.036/90 determina a incidência de FGTS sobre todas as importâncias destinadas a remunerar o trabalhador, dentro da amplitude ditada pelos artigos 457 e 458 da CLT.  Só que, enquanto o próprio art. 457 da CLT, em seu parágrafo 2º, prevê expressamente a exclusão de certas verbas, o art. 71, § 4º, da CLT, não contém referida ressalva, fazendo subsistir o caráter evidentemente remuneratório pelo trabalho executado e em condições até mais gravosas ao empregado6. Tampouco referida verba, denominada de “indenizatória”, foi incluída pela lei 13.467/17 no rol de parcelas que não integram o salário-de-contribuição previsto pelo § 9º do art. 28 da lei 8.212/91, e, por conseguinte, permanece integrando a base de cálculo do FGTS, por força do § 6º do art. 15 da lei 8.036/907.

Bem a propósito, a Receita Federal, na Solução de Consulta Cosit 108, editada em junho passado pela Coordenação-Geral de Tributação, firmou o entendimento de que o valor de que trata o § 4º do art. 71 da CLT constitui contraprestação pelo trabalho realizado e deve compor a base de cálculo das contribuições previdenciárias, de acordo com o preceito básico de que toda remuneração recebida pelo trabalho sofre a incidência da exação (art. 28, inc. I, da lei 8.212/91).8

Ora, a natureza jurídica de um instituto é definida não apenas pela sua essência, mas também pela posição ocupada dentro do sistema, visando à sua inserção em alguma das categorias do Direito. O magistrado trabalhista Renato da Fonseca Janon suscita a questão ontológica para o deslinde do tema e argumenta que não é o nome que estabelece a natureza dos seres – ou dos institutos:

QUESTÃO ONTOLÓGICA. O pagamento pelo intervalo suprimido tem nítido caráter de CONTRAPRESTAÇÃO, na medida em que, se não houve o efetivo descanso e o empregado permaneceu à disposição do empregador, considera-se como tempo de trabalho – art.4o da CLT. Logo, não há como se chamar de “indenização” uma verba que tem indiscutível natureza salarial ou remuneratória. (destaques do original).

(...)

Se o pagamento tem natureza de contraprestação pelo tempo à disposição do empregador, ele jamais poderá ser uma indenização, a menos que se queira admitir o terraplanismo jurídico, contrariando todos os postulados científicos que embasam o Direito do Trabalho.

Esse pagamento será sempre de caráter remuneratório ou salarial pelas suas próprias características imanentes, independentemente da nomenclatura que se queira lhe atribuir. Pode chamar do que quiser. Continuará sendo remuneração.9

Seguem nesse diapasão as lições de Homero Batista e Maurício Godinho Delegado. O primeiro autor assim se posiciona em comentários ao dispositivo em questão:

1. As sutilezas na redação do art. 71, § 4º, feito pela reforma trabalhista de 2017, não deixam margem à dúvida: quem o escreveu estava muito incomodado com a Súmula 437 do TST e se preocupou em cercar todas as possibilidades de pagamento de horas extras.

(...)

6. Por muito mais razão, não podemos concordar com a súbita imposição da natureza indenizatória para essas horas. Toda hora trabalhada deve ser paga como contraprestação dos serviços. O conceito de salário está na essência desse dueto – serviços prestados, salário contraprestado. A natureza jurídica de uma parcela não depende da lei ou da vontade das partes, mas da essência do instituto. A afirmação do legislador de que a hora trabalhada no almoço passa a ser considerada uma indenização equipara a jornada de trabalho a um ressarcimento de prejuízos causados, multa pecuniária (arts. 467 e 477) ou pecúlio obrigatório (FGTS). Será muito difícil sustentar que a jornada de trabalho empreendida na hora destinada às refeições não tenha natureza contraprestacional dos serviços.10 11

A seu turno, Delgado e Delgado observam que “Por outro lado, igualmente a interpretação lógico-racional, sistemática e teleológica do novo preceito da CLT conduz ao pagamento, como verba de natureza salarial, desse intervalo legal descumprido” 12 (destaques acrescidos).

Diante do exposto, impende considerar que, mesmo a partir da vigência lei 13.467, de 2017, que deu nova redação ao § 4º do art. 71 da CLT, a totalidade do valor pago ao empregado pelo trabalho prestado durante o intervalo intrajornada e seu acréscimo de 50% possui intrínseca natureza de remuneração, para os efeitos do art. 15 da lei 8.036/90, devendo, em consequência, constituir base de cálculo para obrigação patronal de recolhimento dos valores de FGTS.

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1 https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1544961&filename=Tramitacao-PL+6787/2016

2 “Com base no § 2º do art. 458 da CLT é possível distinguir entre a prestação fornecida pela ou para a prestação dos serviços. Se a utilidade é fornecida pela prestação dos serviços, terá natureza salarial. Decorre da contraprestação do trabalho desenvolvido pelo empregado, representando remuneração. Tem caráter retributivo. Ao contrário, se a utilidade for fornecida para a prestação de serviços, estará descaracterizada a natureza salarial, como ocorre com os equipamentos de proteção individual, que servem para ser utilizados apenas no serviço. Tem natureza instrumental. Nesse caso, o equipamento serve como meio ou condição para o empregado poder trabalhar, sem que haja a contraprestação pelo serviço efetuado pelo obreiro. [...]" MARTINS, Sérgio Pinto. Direito do Trabalho. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 215.

3 “Art. 457. [...]

§ 2o  As importâncias, ainda que habituais, pagas a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, vedado seu pagamento em dinheiro, diárias para viagem, prêmios e abonos não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.

4 “A remuneração não se confunde com a indenização, que, no Direito Civil, decorre da reparação de um dano. A indenização não tem por objetivo retribuir o trabalho prestado ou a disponibilidade ao empregador. Visa recompor o patrimônio ou bem jurídico da pessoa, enquanto o salário tem por objetivo o pagamento da prestação dos serviços do empregado. Geralmente, a indenização é paga uma única vez, enquanto o salário tem pagamento continuado.” MARTINS, Sérgio Pinto. Direito trabalho. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 208.

5 Do mesmo modo, é possível que lei denomine de salário aquilo que não lhe corresponda em realidade, como acontece com o cognominado salário-família, de caráter previdenciário e pago pelo INSS.

6 Não se perca de vista que o trabalho noturno e insalubre também é prestado em condições adversas ao trabalhador e os respectivos adicionais integram a remuneração para fins de FGTS.

7 Art. 15. [...]

§ 6º  Não se incluem na remuneração, para os fins desta Lei, as parcelas elencadas no § 9º do art. 28 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991.

8 Interessante observar que a matéria do jornal Valor Econômico, edição de 22.06.2023, que traz a notícia da Solução de Consulta Cosit nº 108, contém comentário do advogado Jorge Matsumoto, sócio do escritório Bichara Advogados, de que o não reconhecimento do intervalo intrajornada como indenizatório pode ter reflexos nas demais obrigações previdenciárias, como o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e outros encargos trabalhistas.

9 JANO, Renato Fonseca. Intervalo intrajornada mantém sua natureza salarial após a reforma trabalhista? Disponível em < https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/intervalo-intrajornada-mantem-sua-natureza-salarial-apos-a-reforma-trabalhista-29022020>. Acesso em: 28 jul. 2023.

10 SILVA, Homero Batista Mateus da. Comentários à reforma trabalhista: edição 2017. São Paulo: RT, 2017.

11 Em outra obra, o mesmo autor Homero Batista Mateus da Silva aduz que

12. Por muito mais razão, não podemos concordar com a imposição da natureza indenizatória para essas horas. Toda hora trabalhada deve ser paga como contraprestação dos serviços. O conceito de salário está na essência desse dueto – serviços prestados, salário contraprestado. A natureza jurídica de uma parcela não depende da lei ou da vontade das partes, mas da essência do instituto. A afirmação do legislador de que a hora trabalhada no almoço passa a ser considerada uma indenização equipara a jornada de trabalho a um ressarcimento de prejuízos causados, multa pecuniária (arts. 467 e 477) ou pecúlio obrigatório (FGTS). Será muito difícil sustentar que a jornada de trabalho empreendida na hora destinada às refeições não tenha natureza contraprestacional dos serviços. (SILVA, Homero Batista da. CLT comentada: 2019. São Paulo: RT, 2019).

12 DELGADO, Maurício Godinho e DELGADO, Gabriela Neves. A reforma trabalhista no Brasil: com comentários à lei n. 13.467/2027. São Paulo: LTR, 2017, p. 135.

Adalgiza Pratti
Auditora Fiscal do Trabalho e professora da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho.

Nailor Grossel
Auditor Fiscal do Trabalho e professor da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho.

Ronald Sharp Jr
Auditor Fiscal do Trabalho e professor da Escola Nacional da Inspeção do Trabalho.

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