No mês de Agosto de 2023, a lei 11.340/06, socialmente intitulada como Lei Maria da Penha, completa 17 anos de promulgação, sendo um marco legislativo não apenas brasileiro, como mundial. A Organização das Nações Unidas (ONU) considera a citada lei como uma das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres.
Passado 17 anos de vigência, é de merecido debate a avaliação com relação aos avanços legislativos-sociais, assim como as principais problemáticas em sua aplicação. Durante o período, mais de 25 atualizações legislativas ocorreram, todas objetivando uma proteção ainda maior da mulher vítima de violência doméstica e familiar.
Mesmo com os progressos significativos da Lei Maria da Penha, ainda existem desafios em sua implementação devido ao conteúdo da lei em si. Um exemplo disso é que apenas o juiz pode conceder medidas protetivas, conforme o artigo 12, inciso III da lei mencionada. Essa questão pode evitar a celeridade no acesso das mulheres às medidas protetivas, como indicado no artigo 18, inciso I. Excepcionalmente, em 2018 a Lei foi atualizada para implementar uma possibilidade de o Delegado de Polícia conceder diretamente medida protetiva de urgência nos casos em que a Comarca não possui juiz.
De fato, a atualização traz um avanço, mas nem tanto. Não apenas essa, mas recentes atualizações, como a da lei 14.550/23, disponibilizou o acesso mais prático e eficiente às mulheres vítimas, assim como destruiu barreiras utilizadas como argumentos judiciais para o indeferimento.
Porém, é perceptível que o Poder Judiciário segue abarrotado de solicitações de medidas protetivas às mulheres vítimas, mas o que de fato foi realizado para que as solicitações das medidas fossem concedidas de forma mais célere?
A teoria vem avançando, indiscutivelmente, mas a prática deve seguir o mesmo ritmo. Enquanto as portas se abrem para o recebimento das solicitações de vítimas de medidas protetivas, a disponibilidade de recursos humanos e financeiros para o deferimento está distante.
Dessa forma, é perceptível que a prática seja alterada, sobremaneira nas situações de alto nível de periculosidade, haja vista que o prazo de 48 horas para o encaminhamento e também para a decisão da solicitação das medidas protetivas não vêm sendo devidamente cumpridos.
Verifica-se que, em média, no Estado do Mato Grosso do Sul, há uma lapso temporal entre dois a três dias para que haja a decisão sobre o requerimento da Vítima, ou seja, prazo suficiente para que tragédias, como o próprio feminicídio, possam vir à tona. Quanto ao Estado da Bahia, verifica-se que a decisão do requerimento de medida protetiva pode demorar até uma semana para ser emitida
Sugere-se que, verificada situação flagrancial e/ou de extrema gravidade comprovada faticamente, a Autoridade Policial possa ter a liberalidade imediata da concessão da medida protetiva, ainda que haja juízo na Comarca.
Da mesma forma, sugere-se que a intimação da concessão da medida protetiva de urgência ao Investigado possa, excepcionalmente, ser realizada por servidores públicos do Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia Civil, considerando o lapso temporal atual da intimação ser um dos grandes empecilhos para a consumação do crime de descumprimento de medida protetiva de urgência (art. 24-A, Lei 11.340/06) e, consequentemente, para a lavratura da prisão em flagrante.
Da mesma forma, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem demonstrando uma inclinação em permitir uma maior liberdade à atuação da Autoridade Policial, até mesmo porque se trata de uma carreira jurídica, com discricionariedade no desempenho de seu trabalho.
A Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) chegou a impetrar Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn 6138) ao STF objetivando a declaração da inconstitucionalidade do artigo 12-C da lei 11.340/06, o mesmo que permite a concessão do Delegado de Polícia da medida protetiva nos casos de solicitação quando o Município não é sede de Comarca. No mesmo sentido, o Procurador-Geral da República sustentou que o afastamento provisório do agressor do lar é uma medida cautelar e, por esse motivo, só pode ocorrer com autorização prévia do Judiciário. Por outro lado, o Advogado-Geral da União defendeu a constitucionalidade da norma, considerando que a medida é excepcional e visa dar celeridade à proteção da mulher em situações de violência doméstica nas quais não é possível, com a devida urgência, conseguir autorização judicial prévia. O relator do caso, ministro Alexandre de Moraes, alegou que a Constituição (artigo 226, parágrafo 8) exige que o Estado assegure assistência à família, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. As convenções internacionais sobre o tema, por sua vez, preconizam que, para prevenir e combater o problema, são necessários instrumentos efetivos e eficazes para afastar o suposto agressor, protegendo a constitucionalidade da norma. Para o ministro, constatada uma agressão ou sua iminência, não é razoável que o policial volte à delegacia e deixe o suposto agressor com a potencial vítima. O ministro Alexandre de Moraes salientou que durante a pandemia aumentaram os casos de violência doméstica e nesse período, 24,4% das mulheres brasileiras com mais de 16 anos sofreram algum tipo de violência ou agressão, física ou psicológica. Segundo ele, 66% dos feminicídios ocorreram na casa da vítima e 3% na do agressor. Em 97% dos casos, afirmou, não havia qualquer medida protetiva contra o agressor. Por fim, no dia 23 de março de 2022, o STF julgou a Lei válida, por unanimidade.
O cenário ampliativo permite constatar que, não apenas a Autoridade pode, como deve conceder a medida protetiva de urgência nos casos imprescindíveis nos Municípios que não são sede de Comarca, como também nas situações em que há a presença do magistrado, exatamente por considerar que o requerimento da Vítima, como o próprio nome ressalta, é urgente.
Ademais, com relação ao argumento de reserva de jurisidição, constata-se que a situação tratada não permite sua aplicação, principalmente por se verificar que há a prevalência da saúde e da integridade física da Vítima, assim como da segurança da sociedade. A Autoridade Policial é a primeira a atuar juridicamente, preparada tecnicamente para avaliar se o caso permite a concessão da medida protetiva de urgência, da mesma forma que possui o poder de retirar a liberdade de um suposto infrator ao realizar uma prisão em flagrante, retirando-o a liberdade de ir e vir. Por maior moderação, há a retirada parcial da liberdade do ofensor quando se concede a medida protetiva de urgência à mulher Vítima. Tanto que a prisão cautelar, essa sim, sob o lastro da reserva de jurisdição, está sendo concedida, em regra, nos casos em que já houve a decretação prévia da medida protetiva de urgência e esta se fez insuficiente para a preservação da integridade da mulher.
Portanto, verifica-se que a Autoridade Policial, não só tem a capacitação técnico-jurídica para realizar a concessão da medida protetiva de urgência, como tem a imperiosa necessidade de possuir a discricionariedade imediata para a decisão. Considera-se, por conseguinte, que o Delegado tem a possibilidade de visualizar os fatos reais, aferindo a veracidade dos fatos, assim como a necessidade, ou não, da concessão imediada da medida e de, por fim, realizar a eficaz proteção indispensável à mulher vítima de violência doméstica.
Temática igualmente problemática presente na Lei Maria da Penha refere-se à (des)necessidade da representação ou não da Vítima no crime de lesão corporal (art. 129, CP). Considerando que a supracitada Lei vedou a aplicação da Lei nº 9.099/95 nas situações de violência doméstica e familiar contra a mulher, retirou-se a necessidade de representação da vítima para que a Polícia Judiciária e o Poder Judiciário atuam-se, tornando-a, para esses casos, incondicionada.
O debate sobre o está instalado há anos, discute-se: até onde poderá ir o Estado na proteção da mulher vítima de violência doméstica? Retirar a liberdade de representação da vítima, de fato traz maior proteção ou até mesmo, retira-se o fardo da vulnerabilidade para se sobrepor à incapacidade?
A discussão traz traços de linearidade entre a hiper vulnerabilidade e a incapacidade. Fato é que a prática demonstra que, não adianta o Estado intervir nas situações em que a própria vítima não quer intervenção estatal ou seguimento policial, considerando até mesmo que, ainda que haja uma investigação, as provas serão insuficientes quando a própria vítima não se põe ao lado da Polícia para realização de sua oitiva, perícias ou, até mesmo, a indicação de testemunhas indiretas.
Dessa forma, não visando o esgotamento dos debates acerca da Lei Maria da Penha, mas sim trazê-las a pauta no mês em que há a visibilidade da causa, sugere-se a continuidade do aprimoramento da Lei, frisando a necessidade de previsões legislativas que possam refletir na prática, principalmente no que se refere à celeridade na proteção eficaz da mulher vítima de violência.
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BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Brasília, DF: Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos, 2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso em: 28 jul. 2023.
Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência. Pesquisa de acórdãos. Classe/Incidente: ADIn 6138. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADI%206138%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 28 jul. 2023.