O ano é 2023. Existem programas de Compliance de todos os níveis, estruturas e aplicações. Novos cursos são lançados a cada mês sobre ESG. A Governança Corporativa é tópico de inúmeros livros. Esta seria uma vitória da Ética Empresarial, e, certamente, um marco em termos de Capitalismo de Stakeholder, se observarmos que este conceito reconhece que o propósito das empresas não deveria se restringir apenas ao lucro, mas, adicionalmente, contemplar sua contribuição para todas os stakeholders, ou, em português, as partes interessadas.
O ano ainda é 2023. É noticiado que empresas do segmento vinícola utilizam de mão de obra análoga à escravidão em sua cadeia produtiva, prática também encontrada na produção de um dos maiores festivais de música do país. No setor de varejo, uma companhia, que já havia sido acusada de infrações relativas à direitos humanos em um passado nada longínquo, recebe nova denúncia afeita à esta temática, a qual expôs práticas de racismo em um de seus estabelecimentos comerciais.
Diante deste cenário, resta a pergunta para as empresas que querem se manter sustentáveis: tratar de Governança Corporativa e Direitos Humanos seria uma tendência emergente ou um modismo superficial?
Segundo Taddone, o modismo vem como um tsunami, com força total e durando pouco; ao passo em que a tendência surge gradualmente, sem muita força, e, lentamente, segue crescendo.1 O que veremos a seguir é que a Governança Corporativa e a preocupação das empresas no tocante aos Direitos Humanos, caminharam a lentos passos, mas, hoje, conforme podemos notar no “Guia de Sustentabilidade para as Empresas” do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (“IBGC”) as pessoas, o planeta e os lucros não podem estar mais separados, denotando que os Direitos Humanos e demais aspectos sociais são relevantes para a sustentabilidade empresarial2.
Inicialmente, para que estes assuntos se tornassem relevantes para as organizações, vale a pena retornarmos um pouco no tempo. Entre as décadas de 1930 e 1940, tivemos a Segunda Guerra Mundial. Naquele período sombrio da história, ficou constatado que não somente países realizaram atrocidades em relação aos direitos humanos, mas, também, empresas se utilizaram da mão de obra de pessoas em campos de concentração, demonstrando uma inexistente preocupação com o tema por parte de certas corporações.
Em termos de responsabilidade corporativa, entre a década de 1960 e 1970, Milton Friedman, um economista estado-unidense, preconizava que a responsabilidade social dos negócios deveria ser o aumento dos lucros para os acionistas. Em linhas gerais, defendia que a busca pelo lucro deveria ser o incentivo fundamental para a inovação e o progresso econômico. Logo, com a maximização dos lucros, teríamos benefícios para a própria sociedade, vez que as empresas gerariam mais empregos, e, consequentemente, riquezas de forma geral. Este período ficou conhecido pelo forte apoio ao Capitalismo de Shareholders (ou Capitalismo de Acionistas), que denotava esta propensão de busca primordial do lucro aos acionistas.
Caminhando um pouco mais no tempo, na década de 1990, os estudos de John Elkington sinalizavam para uma Responsabilidade Social Corporativa através do Triple Bottom Line (ou Tripé da Sustentabilidade), na qual apontava que as empresas deveriam ser avaliadas não apenas por seus resultados financeiros, mas, também, por seus impactos nas áreas sociais e ambientais. Este posicionamento, de certa maneira, foi acompanhado pelo mercado, considerando que diversos investidores também indicavam para um movimento de necessidade de uma governança corporativa para lidar especificamente com o conflito de agência, havido pelas divergências de interesses entre os acionistas e os gestores das companhias. Inclusive, nesta mesma época, seria elaborado o Combined Code da bolsa de valores de Londres, sendo considerado um modelo mundial em termos de código de boas práticas de governança corporativa. Desta forma, esta década seria caracterizada por uma maior disseminação da Responsabilidade Social Corporativa.
Rumando um pouco mais no tempo, na virada do milênio, ainda que com uma maior evidência da Governança Corporativa, o escândalo da companhia energética Enron, mediante uma fraude contábil alarmante que gerou a perda de milhares de empregos e falência de grandes corporações, traria novamente a responsabilidade das empresas como uma questão a ser discutida tanto no meio empresarial quanto acadêmico.
Sendo assim, na década de 2010, influenciada pelos ideais de Michael Porter, temos, então, uma maior incidência do Capitalismo de Stakeholder, onde, neste modelo econômico, as empresas deveriam também valorizar os interesses de toda as partes interessadas como funcionários, fornecedores, clientes, comunidade e o meio ambiente. Ou seja, se no Capitalismo de Shareholder as empresas são vistas como agentes econômicos que visam exclusivamente maximizar o lucro dos acionistas, o Capitalismo de Stakeholder vê as empresas como agentes sociais que têm a responsabilidade de buscar benefícios para todos os seus stakeholders ao planejar estratégias e tomar decisões.
Em 2011, Os “Princípios de Ruggie”, como são conhecidos os princípios apresentados por John Ruggie, foram adotados pela Assembleia Geral das Nações Unidas, abordando importantes aspectos para os Direitos Humanos, vez que tais princípios se baseavam em três aspectos principais: (i) compromisso dos Estados em respeitar e proteger os direitos humanos e as liberdades fundamentais; (ii) as empresas seriam órgãos especializados, e, portanto, deveriam respeitar as leis vigentes e seguir os preceitos de Direitos Humanos; e (iii) os casos de descumprimento devem acarretar em recursos eficazes para sua reparação. A partir dos Princípios de Ruggie, atualmente reconhecidos também como “Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos”, se demonstrou que caso existissem empresas que consideravam como custo a implementação de uma política de Direitos Humanos (haja vista que poderia reduzir a competitividade), este novo contexto produziu um novo direcionamento, o qual foi endossado por exemplos de companhias afetadas em sua reputação, as quais perderam seus consumidores, acionistas e parceiros de negócio.
No ano de 2015, um novo elemento entra na expressão. Através da Agenda 2030, os países integrantes da ONU firmam um compromisso reconhecendo a necessidade de mudanças urgentes no sistema global de produção e consumo, bem como na sua governança e distribuição dos recursos necessários ao bem-estar humano. Neste contexto, surgem os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (“ODS”). Como o nome já diz, estes objetivos pretendem trazer uma nova perspectiva de sustentabilidade para os agentes econômicos, auxiliando em temas como erradicação da pobreza, educação de qualidade, água limpa etc. Pelo tamanho do escopo, natureza e ambição destes Objetivos, esta agenda não se restringe somente ao Estado, mas, também às corporações e entes não empresariais.
Adicionalmente, em 2019, um grupo de executivos das principais empresas norte-americanas, denominado Business Roudtable, divulgou uma declaração afirmando o compromisso de agregar valor para todos os Stakeholders, incluindo clientes, trabalhadores, fornecedores e comunidades onde operam. Além disso, no ano de 2020, se reconheceu, no Fórum Econômico Mundial de Davos, aspectos fundamentais no que tange à Responsabilidade Corporativa, através de declarações demonstrando que o propósito de uma companhia é gerar valor compartilhado e saudável, não servindo apenas a seus acionistas, mas todos os Stakeholders, além de atender aspirações sociais e humanas.
Finalmente, se destaca progressivamente o aumento da preocupação com a agenda ESG (Environmental, Social, and Governance). O próprio “G” desta agenda se refere à Governança, sendo um dos fatores preponderantes para as companhias que pretendem estar adequadas à esta nova dinâmica mercadológica.
Após esta viagem temporal, pousamos novamente em 2023. Se todas estas alterações na responsabilidade das corporações ao longo dos anos não fosse uma justificativa para considerar os Direitos Humanos como parte do planejamento das empresas, há também uma movimentação regulatória mundial que merece ser notada. No início deste ano, a Lei Alemã de Diligência em Cadeias de Fornecimento (Gesetz über die unternehmerischen Sorgfaltspflichten zur Vermeidung von Menschenrechtsverletzungen in Lieferketten, também chamada de Lieferkettensorgfaltspflichtengesetz — LkSG) entrou em vigor na Alemanha. Esta lei dispõe que as empresas devem realizar due diligence para prevenir a ocorrência de violações de direitos humanos em toda sua cadeia de suprimentos, englobando todos os fornecedores de produtos e serviços, desde a extração de matéria-prima, até a entrega do produto acabado ou a prestação dos serviços aos seus clientes.
Este posicionamento adotado pelos legisladores alemães não é um fato isolado. Pode até parecer que a adesão das empresas às práticas socialmente responsáveis ou aos sistemas de integridade para proteção dos direitos humanos sejam opcionais, diante do caráter voluntário de algumas normas. Entretanto, cada vez mais países e organizações internacionais exigem compromisso e responsabilidade das empresas transnacionais com as questões relacionadas ao respeito aos direitos humanos, tanto nas relações diretas como, também, em referências à sua cadeia produtiva.
A título de exemplo, temos alguns movimentos importantes na América do Norte, como a entrada em vigor do Regulamento de Trabalho Forçado no México. No Canadá, há o Bill S-211 acerca da Transparência na Cadeia de Suprimentos (Act to enact the Fighting Against Forced Labour and Child Labour in Supply Chains Act and to amend the Customs Tariff), esperando-se que seus efeitos se iniciem em 2024. Com relação à Europa verifica-se o britânico Ato de Escravidão Moderna (UK Modern Slavery Act), a francesa Lei do Dever de Vigilância (Duty of Vigilance Act), e, também, a norueguesa Lei de Compras Públicas Socialmente Responsáveis (Transparency Act). Por fim, a própria União Europeia, através do Parlamento Europeu, aprovou a Diretiva sobre Due Diligence de Sustentabilidade Corporativa (Corporate Sustainability Due Diligence Directive), a qual obriga empresas a prevenir, identificar, encerrar ou mitigar o impacto negativo de suas atividades nos direitos humanos e no meio ambiente, além de trazer a responsabilidade pelo monitoramento e avaliação de impacto de seus parceiros na cadeia produtiva, incluindo não apenas fornecedores, mas também distribuidores, armazenadores, transportadoras e outros.
Em termos de Brasil, como aspectos legislativos mais recentes, podemos citar a própria lei 14.457/22, que instituiu o Programa Emprega + Mulheres, objetivando apresentar uma série de medidas preventivas e de combate ao assédio nas empresas.
Como resultado de todas estas tônicas, as empresas que querem estar em concordância com as melhores práticas de Governança Corporativa podem implementar algumas medidas, tais como: (i) canais de denúncias que previnam e saibam lidar com infrações à Direitos Humanos; (ii) políticas de não retaliação ao(s) denunciante(s); (iii) políticas de preservação de Direitos Humanos; (iv) contratos firmados com sua cadeia de fornecimento com cláusulas robustas que zelem pela proteção de Direitos Humanos; (v) órgão interno de auditoria e/ou auditores externos capacitados para suportar na detecção de não conformidades relacionados aos Direitos Humanos; (vi) programa de Compliance apto para mitigar tais infrações; e (vii) treinamentos voltados para o público interno da companhia, bem como à cadeia produtiva, para promover a importância da agenda de Direitos Humanos.
Ressalta-se que dentre os próprios princípios da governança, o princípio da equidade indica que deve haver o tratamento justo e isonômico de todas as partes interessadas dentro da companhia. Isto é, considerando um cenário fictício onde os administradores, na busca por maiores lucros, ofereçam condições degradantes de trabalho, realizem práticas de assédio, se utilizem de mão de obra análoga à escravidão etc., certamente não agirão conforme os ditames das melhores práticas de governança corporativa.
Diante desta exposição preliminar, podemos indagar que, muito em breve, o que era tido como modismo por alguns, poderá se mostrar um posicionamento ultrapassado. Associar Governança Corporativa e Direitos Humanos poderá deixar de ser uma opção, uma vez que, gradativamente, as corporações terão que se preocupar com práticas socialmente responsáveis, bem como os sistemas de governança e Compliance deverão focar na valorização dos direitos humanos, seja por dever regulatório, por uma imposição das matrizes estrangeiras, ou, até mesmo, por obrigação contratual imposta por um cliente. Portanto, considerando que os efeitos desta pauta podem durar mais tempo do que uma mera tendência, fato é que podemos estar diante de uma “megatendência”, que, de acordo com Peter Fisk3, seriam grandes mudanças sociais econômicas, políticas, ambientais ou tecnológicas que são lentas de formar, mas uma vez estabelecidas podem influenciar uma ampla gama de atividades, processos e percepções, possivelmente por décadas.
Por consequência, esta tendência emergente, parece estar, progressivamente, mais presente no cotidiano corporativo, já que consumidores tem buscado adquirir produtos e serviços de empresas comprometidas com o respeito ao meio ambiente e aos direitos humanos, buscando, habitualmente, estarem conectadas com a pauta ESG. Isto é, independentemente de seu tamanho, setor de atuação ou localidade, as companhias devem considerar este “novo” cenário, intrinsicamente relacionado aos Direitos Humanos, e atuar de forma a mitigar riscos, agindo de forma efetiva na geração de perspectivas de Governança Corporativa positivas à sociedade.
Em uma sociedade globalizada, a discussão não se resume a apenas um país ou empresa, são questões de toda a sociedade e, conforme as corporações se tornam parte central dela, devem ser consideradas também como desafios para Governança Corporativa.
Ao nosso ver, parece razoável identificar avanço da relação entre Governança Corporativa e Direitos Humanos em ambiente privado e público a partir das normas, as quais acabam por refletir as exigências atuais de mercado, ou seja, das empresas, do Estado e da própria sociedade, que preferem se relacionar com organizações que possuam, na sua estrutura, um programa de integridade efetivo, capaz de prevenir e detectar a conduta irregular.
O ano é 2023. Talvez ainda não seja tão tarde falarmos sobre Governança Corporativa e Direitos Humanos.
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1 TADDONE, Vinícius. Tendência X Modismo — A Importância de saber a diferença. 14 fev. 2022. Disponível em: https://portal.clientesa.com.br/blog-12/tendencia-x-modismo-a-importancia-de-saber-a-diferenca/. Acesso em: 26 jul. 2023.
2 IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. Caderno 4 – Guia de Sustentabilidade para as Empresas. 11 nov. 2007. Disponível em: https://conhecimento.ibgc.org.br/Paginas/Publicacao.aspx?PubId=22127. Acesso em: 26 jul. 2023.
3 FISK, Peter. Megatrends 2020-2030 … what they mean for you and your business, and how to seize the new opportunities for innovation and growth. 6 dez. 2019. Disponível em: https://www.peterfisk.com/2019/12/mega-trends-with-mega-impacts-embracing-the-forces-of-change-to-seize-the-best-future-opportunities. Acesso em: 26 jul. 2023.