Migalhas de Peso

O paradoxo entre os institutos despenalizadores e a questão carcerária no Brasil

Este artigo tenta expor a problemática da situação desumana dos presídios brasileiros e a possibilidade de efetivação dos institutos da despenalização positivados nas leis infraconstitucionais.

27/7/2023

Com o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional (ECI) pelo STF, em 2015, foram expostas as condições desumanas do sistema carcerário brasileiro – fato que incitou questionamentos a respeito ada eficiência das medidas despenalizadoras instituídas no ordenamento penal brasileiro. Nessa perspectiva, apesar de toda reserva legal da Carta Magna de 1988 e das leis infraconstitucionais penais, os ideais garantistas ficaram, cada mais, arrefecidos, mitigando o princípio da última rátio penal (último recurso). Explicando melhor, tanto a doutrina como a jurisprudência primavam pelo desencarceramento, por meio de medidas preventivas socioeducativas, todavia, ocorriam sanções desproporcionais, em condições insalubres, indo na contramão da dignidade da pessoa humana desejada pela Lei Suprema.

Nessa linha, diante do agravamento da situação prisional e do ECI, houve a positivação legislativa de quatro institutos despenalizadores, cada qual com sua funcionalidade e requisitos sui generis. Nessa toada, pode-se descrever detalhadamente sobre: a composição civil dos danos (CC), a transação penal (TP), o acordo de não persecução penal (ANPP) e a suspensão condicional do processo (SURSI). Destarte, os três primeiros estão abrangidos pela Lei dos juizados especiais (9099/95) e a suspensão condicional do processo pelo Código Penal, no artigo 77º. De acordo com a ministra Nancy Andrighi, “Os Juizados Especiais, se possível, devem ter suas sedes longe da Justiça Tradicional, com o fim de não serem contaminados pelo tecnicismo e formalismo”. Ou seja, o primado da legalidade Penal foi criado para abarcar a maior contingência de casos concretos e demandas da sociedade, sem perder a finalidade da eficiência e a celeridade. No entanto, como será exaustivamente explicado, esses institutos possuem lacunas normativas, com restrições no tocante à cumulatividade e só podem ser utilizados subsidiariamente ou sequencialmente.

Outrossim, para iniciar a argumentação sobre os institutos despenalizadores, faz-se mister descortinar as especificidades da composição civil dos danos (CC), descrita no artigo 72 º da lei 9099/95.Nessa linha de argumentação, quando ocorre algum tipo de crime cuja pena máxima não ultrapasse a 2 anos, pode-se utilizar da negociação interpessoal para evitar a denúncia e as decorrências sancionatórias, com proporções negativas para o indivíduo. Ou seja, as infrações de menor potencial ofensivo (IMPO) não demandam, na maioria dos casos, encarceramentos e punições desproporcionais. Por conseguinte, se o acusado optar por efetuar a CC no juizado civil, extingue-se a punibilidade e os fatos ocorridos não constarão nos seus antecedentes criminais. Todavia, de acordo com a Súmula 536 do STJ, esse instituto não pode ser efetuado em casos de crimes inseridos na Lei Maria da Penha, devido a reserva legal restritiva. Resta acrescentar que, na audiência preliminar, reúnem-se a vítima, o acusado para averiguar a melhor forma de indenização proporcional ao dano causado. Nessa perspectiva, feito a composição e a homologação pelo magistrado, a sentença decorrente e se torna irrecorrível. Segundo o doutrinador Renato Brasileiro,” se a regra prevista no Código Penal é que o fato de o ofendido receber a indenização do dano causado pelo crime não implica em renúncia ao direito de queixa (CP, art. 104, parágrafo único), pode-se dizer que a composição dos danos civis funciona como exceção, já que o acordo homologado acarreta a renúncia ao direito de queixa, por força da norma especial do art.74, parágrafo único, da Lei nº 9.099/95”.

Portanto, pode-se concluir que esse instituto despenalizador prima pelo desencarceramento, mitigando o princípio da obrigatoriedade da ação penal.

Entretanto, se o acusado, por motivos circunstanciais, não compor civilmente a vítima ainda poderá utilizar-se do instituto despenalizador da transação penal (TP) que prioriza a reparação à vítima, utilizando-se de penas restritivas de direito e/ ou multas. Ademais, esse instrumento penal é abrangido pelas IMPO e está descrito no artigo 76 º da lei 9.099/95, destacando-se também pela mitigação da obrigatoriedade da ação penal. Contudo, sabe-se que apesar de todas as prerrogativas das medidas despenalizadoras, não é um direito subjetivo do réu, pois se o acusado não cumprir com os requisitos, retorna-se com toda a ação penal. De acordo com a Sumula Vinculante 35º, “A homologação da transação penal prevista no artigo 76 da Lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial”. Destarte, após a audiência preliminar, cumpridos todos os requisitos legalmente descritos, quando se finaliza o acordo, fica extinta a punibilidade sem gerar a reincidência. Para finalizar essa tratativa, resta destacar esse instituto despenalizador  se descortina como uma mera faculdade de órgão acusatório, uma vez que deve averiguar objetiva e subjetivamente os requisitos a serem preenchidos.

Não obstante toda a tratativa já exposta, ainda é importante descrever o acordo de não persecução penal (ANPP) e suas peculiaridades da despenalização. Nesse contexto argumentativo, esse instituto foi inserido pela lei 13.964/2019 (Pacote anticrime), sendo considerado um negócio jurídico pré-processual. Explicando melhor, reúnem-se o membro do MP, o investigado e o seu defensor e, ao final, se forem cumpridas as cláusulas legais, extingue-se a punibilidade. Para complementar, o ANPP está previsto no artigo 28 -A do CPP “Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal”. Por conseguinte, essa medida despenalizadora permite, de forma consensual, a resposta mais célere ao comportamento criminoso, reduzindo as demandas judiciais criminais. Nesse viés, enquanto na transação penal o acordo é de cumprir penas não privativas da liberdade, no ANPP acerta-se o cumprimento de condições com obrigatoriedade da confissão pelo acusado. Assim, torna-se oportuno registrar que, segundo dados do Conselho Nacional do MP de 2022, somente 2,6 % dos processos foram decididos por ANPP – fato que suscita críticas pelos doutrinadores a respeito da imposição da confissão no processo e sua mitigação.

Nessa linha de discussão, após se percorrer a tentativa dos institutos da CC, TP, ANPP e não se obter nenhum benefício para o acusado, ainda pôde-se utilizar da suspensão condicional do processo (SURSI), descrita no artigo 89 º da Lei 9099/95 para crimes com pena mínima de até 1 ano. Destarte, é cediço que esta medida despenalizadora foi descrita como a mais gravosa, pois é a única positivada após a denúncia, condensando maiores repercussões no tocante às punições. Nesse prisma, há um período de prova no qual o acusado tem sua pena e prescrição suspensas por 2 a 4 anos. Diante do exposto, existem alguns requisitos a serem cumpridos como: o acusado não pode estar sendo processado e nem possuir condenação por outro crime, devendo reparar o dano provocado; o comparecimento mensal para conferência pelo magistrado e a proibição de frequentar certos lugares específicos. Nessa linha de argumentação, sabe-se que o rol não é taxativo e o juiz poderá especificar outras condições subordinadas a suspensão, com adequação ao fato e à situação pessoal do acusado. Ademais, se for cumprido o período de prova, o processo será extinto e não tem o condão de gerar reincidência. Assim, a grande vantagem da SURSI fica averiguada na exclusão dos efeitos colaterais da privação da liberdade, evitando-se a dessocialização e a marginalização do indivíduo que decorem do encarceramento.

Diante do exposto, apesar de toda a indignação com a crise carcerária e o estabelecimento pelo STF do ECI, a função despenalizadora ainda está aquém de ser efetivamente aplicada no ordenamento jurídico brasileiro. Nessa seara, mesmo com todo o aparato constitucional e suas decorrentes criações legislativas infralegais, observa-se que as estatísticas de utilização estão arrefecidas e expõem a deficiência de políticas públicas preventivas. Assim, infelizmente, o Brasil continua a expor a chaga dos presídios lotados com sua maioria de jovens afrodescentes, de baixa renda que poderiam estar no mercado de trabalho, se a processualística penal estivesse pautada no desencarceramento.

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1. DE LIMA, RENATO BRASILEIRO. Legislação Criminal Especial Comentada. 2ª edição, Juspodivm.

2. BRASIL. Lei 9.099/95, de 26 de setembro de 1995

3. AVENA, NORBERTO. Processo Penal Esquematizado. 6ª edição. Editora Método.

4. PINHEIRO, ROBERTA AZZAM GADELHA. As medidas despenalizadoras dos juizados especiais criminais, 2013. Disponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/páginas/trabalhos_conclusao/1semestre2013/trabalhos_12013/RobertaA zzamGadelhaPinheiro.pdf

5. BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula 696.

6. BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Resp 1.498.034-RS. STJ, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 25/11/2015, S3 – TERCEIRA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 02/12/2015.

Joseane de Menezes Condé
Servidora Pública Federal do TRT 15 Americana, Mestranda em Direito Internacional FUNIBER, pós graduação em Direito Constitucional IBMEC, pós graduanda em direito tributário e trabalhista.

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