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Teoria geral da prova e seus contornos no processo de contas

Por certo, o objeto da prova deve recair sobre os fatos controversos, que ainda mereçam uma depuração probatória por parte das respectivas unidades instrutivas e dos julgadores.

21/7/2023

O pressuposto constitucional de aplicação regular dos recursos públicos é uma das incumbências que cabem aos gestores da coisa pública, conforme preconiza o artigo 70, parágrafo único, da Constituição Federal de 1988. Por meio deste dispositivo, impõe-se o dever geral de prestar contas, resultando, assim, na assunção do respectivo ônus probatório1.

Desta feita, a estruturação da teoria do ônus da prova no processo de controle externo denota competir ao próprio agente a respectiva demonstração da legalidade e regularidade de sua gestão.

Todavia, não se vulnera que nos processos de natureza fiscalizatória, por exemplo, o respectivo Tribunal de Contas, sob o influxo da nova Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro - LINDB (lei 13.655/2018) não se desincumba do próprio dever de motivação explícita acerca das ocorrências consideradas ilegais e de seus respectivos fundamentos.

Isso porque tais ocorrências devem estar acompanhadas de fundamentação que permita a identificação do dano, da ilegalidade, do responsável por sua autoria e da entidade ou empresa que tenha contribuído para a prática do ato ilegal - (Acórdão 721/2016 - TCU - Plenário).

Nesse particular contexto processual, por certo, o objeto da prova deve recair sobre os fatos controversos, que ainda mereçam uma depuração probatória por parte das respectivas unidades instrutivas e dos julgadores.

Assim, o termo “provas” no processo de contas refere-se ao “meio retórico, regulado pela legislação, destinado a convencer o Estado da validade de proposições controversas no processo, dentro de parâmetros fixados pelo direito e de critérios racionais2, ou seja, os elementos de evidência e documentação que são apresentados para apoiar ou justificar as informações prestadas no processo de contas.

Resulta-se dessa estrutura que o regime jurídico administrativo que regula a distribuição do ônus da prova na processualística de contas assume por vezes um caráter estático e/ou dinâmico a depender do caso concreto, bem como, também, dependem das diversas nuances que perpassam a estruturação das políticas públicas e a respectivas técnicas de gestão pública subjacentes. 

Assim, pode-se afirmar que cabe ao responsável o ônus de produzir defesa especificada, sob pena de presumirem-se verdadeiras as alegações de fato não impugnadas3. Na medida em que uma defesa genérica produz efeitos semelhantes ao da revelia4. O Tribunal de Contas da União - TCU aponta que “escapa da referida presunção de veracidade apenas as situações descritas no art. 345 do CPC- (Acórdão n° 3890/2017 - TCU - Primeira Câmara).

Aliado à incumbência probatória do gestor e ante a natural indisponibilidade do interesse público que é tratado nos processos de contas, imperiosa mostra-se a busca pela “verdade material”, colocando em plano secundário os aspectos formais, ao qual visa a verdade dos fatos, garantindo-se a justiça e a efetividade da decisão5.

Com tal intenção, a Constituição Federal de 1988 atribuiu aos órgãos de controle externo a possibilidade de realizar, inclusive por iniciativa própria, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial.

Sob esse aspecto, é importante enfatizar que tanto a admissão quanto a respectiva utilização de prova produzida em outras esferas são recepcionadas pela práxis processual de contas, sob o manto do devido processo legal.

Nesse ponto a prova emprestada é considerada lícita, desde que exista autorização da esfera judicial para sua utilização (quando necessário) ou que esta as tenha tornado públicas. Contudo, sua validade dependerá necessariamente da realização de contraditório e ampla defesa no âmbito da esfera controladora, com fundamento nos artigos 369 e 372 da lei 13.105/2015 (Código de Processo Civil - CPC).

A conjugação dos citados dispositivos legais permite inferir que "as provas declaradas ilícitas pelo Poder Judiciário não contaminam o processo de controle externo que esteja amparado em outras provas que não guardem relação de dependência nem decorra das provas originariamente ilícitas" - (Acórdão n° 1418/2020 - TCU - Plenário).

Portanto, sendo lícita, a prova deve ser considerada no processo de contas, sendo irrelevante o fato de como ela chegou ao processo. A partir desse momento, deve esta ser considerada para a respectiva valoração e formação do convencimento dos julgadores.

Uma vez sedimentadas as noções iniciais acerca da prova, mostra-se necessário tecer algumas considerações sobre os principais meios de prova admitidos, e seus contornos processuais, tais como: a) prova indiciária; b) declarações de terceiros e de órgãos públicos; c) perícias e d) depoimentos testemunhais:

 I - Prova indiciária: resulta do somatório de indícios que apontam na mesma direção, sendo lícito, assim, ao "julgador formar seu convencimento quando os indícios são vários, fortes e convergentes, e o responsável não apresenta contra indícios de sua não participação nas irregularidades" - (Acórdão n° 8250/2021 - TCU - Segunda Câmara).

II - Declarações de terceiros e de órgãos públicos:  as declarações de terceiros, isoladamente, "não são suficientes para comprovar fatos, possuindo baixa força probatória, revelando tão somente a existência da declaração, mas não o fato declarado em si, competindo ao interessado demonstrar a veracidade do alegado" (Acórdão nº 2764/2022 - TCU - Plenário).

III - Perícias: quanto à realização de prova pericial, nota-se que o processo de controle externo, dentro da sua lógica de estruturação "não prevê a produção de prova pericial, cabendo ao responsável trazer aos autos os elementos que entender necessários para sua defesa, inclusive laudos periciais, o que prescinde de autorização do Tribunal" - (Acórdão n° 5040/2022 - TCU -Segunda Câmara).

Nessa toada, revela-se incabível a formulação de quesitos ou a indicação de assistentes técnicos pelos responsáveis quando o TCU utiliza a faculdade de requisição de serviços técnicos especializados a órgãos e entidades federais6.

IV - Depoimentos testemunhais: as normas processuais que regulam a atuação dos órgãos de controle externo não preveem a coleta de depoimentos dos responsáveis ou de testemunhas, devendo o Tribunal de Contas pronunciar-se com base em provas documentais - (Acórdão n° 4166/2022-TCU - Primeira Câmara).

Contudo, as declarações expedidas por órgão público, assinadas por agente público com competência para tanto, têm fé pública e, portanto, possuem relevante valor probatório, devendo ser sopesadas no respectivo conjunto probatório - (Acórdão n° 2664/2014 - TCU - Plenário).

Referida presunção é substancialmente relevante diante da presunção legal de sua autenticidade, que cabe a quem alega o ônus de “provar sua falsidade, seja por meio do respectivo reconhecimento judicial, seja carreando aos autos elementos suficientemente fortes para caracterizar a ocorrência da alegada falsificação” - (Acórdão n° 2306/2015 - TCU - Plenário).

Outro ponto que convém frisar é quanto ao momento de admissão da prova, no âmbito do processo de contas, uma vez que pode haver variação de acordo com a legislação e aos regulamentos aplicáveis a cada jurisdição administrativa, assim como aos aspectos materiais sob análise.

Entretanto, regra geral, ela pode ocorrer: (i) na fase inicial, em que é comum a apresentação de defesa prévia ou manifestação inicial, com a apresentação de documentos, argumentos e outras informações relevantes; e/ou (ii) na fase de instrução, momento secundário à fase inicial, em que são analisadas as provas apresentadas pelas partes, tais como relatórios técnicos, pareceres, e demais documentos.

Considerando esses pontos, é imprescindível analisar a relação de causa e efeito entre as ações ou omissões do responsável pelas contas e as provas apresentadas.

O nexo causal, nesse contexto, procura estabelecer a ligação lógica e legal entre as condutas do gestor e os resultados observados em relação às falhas ou violações das normas e regulamentos vigentes.

Apresentadas as provas e devidamente instruído, o processo é analisado, diante disso, a razoável duração do processo, estabelece que os processos judiciais e administrativos devem ser conduzidos de maneira ágil e eficiente, a fim de que se tenha de forma tempestiva uma decisão.

Não obstante o tempo processual pode variar de acordo com as particularidades de cada processo, a quantidade de informações e documentos envolvidos e o grau de complexidade da matéria, posta sob o olhar do controle externo.

É por essa razão que se entende relevante o estudo da prova no processo de contas, na medida em que atua como um meio garantidor do devido processo legal e promove julgamentos técnicos e efetivos para a formatação dos precedentes administrativos de contas. 

__________

1 Acórdão 1362/2023 - TCU - Plenário.

2 MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. “Código processual civil”. São Paulo: RT, 2011, 3.ª ed. P. 181/182).

3 Art. 341 da Lei Federal n° 13.105/2015.

4 Art. 344 da Lei Federal n° 13.105/2015.

5 "Na busca da verdade material, é imperioso avaliar a motivação dos gestores e agentes públicos naquilo que não está escrito explicitamente nos documentos" (Acórdão n.º 1386/2023 - TCU - Plenário).

6 Tal competência insere-se no âmbito das atividades de fiscalização do Tribunal, não se confundindo com a produção de prova pericial de que trata o CPC (art. 465, § 1º, incisos II e III, da Lei 13.105/2015) - Acórdão n° 2457/2018 -TCU - Plenário.

Fabiane Pinto
Advogada e Servidora Pública Estadual especialista em Compliance, com certificações pela Fundação Getúlio Vargas e LEC Legal, Ethics e Compliance.

Tiago Moraes Ribeiro
Advogado, graduado pela UFPA, especialista em Direito Público pela UNIDERP e Direito Internacional pelo CEDIN. Auditor de Controle Externo no Tribunal de Contas do Estado do Paraná - TCE/PR.

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