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Os condomínios atípicos e a liberdade de associação – Análise da questão nos tribunais

Há grande problema em torno de segurança jurídica por questões diferenciais que se quer fazer em torno de temas repetitivos.

19/7/2023

O Código Bevilácqua trazia a figura de um condomínio tradicional como foco de desarmonia que se consubstanciava na máxima o que é todos não é ninguém gerando discórdia e que deveria, em nome da paz social, ser extinto, em caso de divergências (vem daí a ideia de extinção de condomínio havida até nossos dias).

O domínio, de modo geral, surge como algo pertencente a um titular que, na versão romana (o dominus que na corruptela no correr dos milênios virou o dono) o que traria a ideia de que a propriedade seria algo exclusivo – a falta de exclusividade seria algo anormal (tanto que o direito romano previa um chefe familiar que detinha as propriedades de toda a família – o bônus pater famílias que deveria ser prudente).

O condomínio nessa visão seria algo anormal – mas com o avanço populacional sobre patrimônio imobiliário cada vez mais escasso acaba tornando, com o passar dos séculos, o condomínio numa realidade – primeiro porque o chefe familiar vai perdendo seu poder e a propriedade vai passando a ser partilhada entre filhos que não a dividem, mas a mantém em conjunto até que surjam divergências.

Depois sobretudo nas grandes cidades, em seus centros, vão surgindo condomínios verticais, e pela necessidade de segurança surgem e se difundem condomínios horizontais (casas) – nesses há áreas comuns e unidades privativas de cada condômino que passam a ter um tratamento diferenciado do condomínio comum.

Surgem, no entanto, situações híbridas, que vem sendo chamadas de condomínios atípicos – em que vários imóveis autônomos, resolvem se reunir e formar associações para serem tratados como um condomínio – e aí surgem vários problemas.

Malgrado a jurisprudência das Cortes Superiores tenha resolvido as questões de modo claro em favor dos proprietários de imóveis que não queiram se associar, por incrível que pareça há grande volume de processos em que as associações querem discutir essas cobranças – AINDA.

Em primeiro lugar, nesses espaços há áreas públicas (ruas, praças, postes de iluminação – com necessidade de prestação de serviços públicos que, quando o condomínio se fecha passam a ser vistos como áreas que não mais são de acesso público, transferindo custos de serviços, como coleta de lixo, asfalto e manutenção, limpeza das ruas etc aos moradores).

Por vezes, muitos moradores da área que antes não era um condomínio, mas propriedade individual e privada de cada um, tem o legítimo direito de quererem manter sua autonomia, justamente para não terem que aderir a tais custos – sem falar que não querem aderir a caprichos de vizinhos que, por vezes, assim revela a experiência, por anos os ignoraram ou com quem não tinham bom relacionamento.

Aí, nesses casos, surge a necessidade de uma grande ponderação entre princípios, para análise, não apenas da questão do direito de propriedade privada, mas igualmente do direito de liberdade de associação bem como da legalidade – essas associações geralmente se saem com alegações de que não se poderia admitir enriquecimento sem causa pois o morador não poderia se recusar a pagar por aquilo que beneficia o seu imóvel (e, em alguns casos teratológicos, alguns municípios editam leis, que não deixam de ser inconstitucionais legitimando a cobrança dessas taxas associativas).

E os Tribunais Superiores já se posicionaram sobre o tema – mas muitas associações preferem fazer ouvidos de mercador e vão cobrando – a teoria dos grandes números que o Poder Judiciário deve combater a todo custo1 – para que os incautos entendam ser melhor pagar o que se pede do que acionar o Poder Judiciário e correr riscos.

Assim, não se nega que, por vezes, existam essas situações que nascem vocacionadas como condomínios, mas que por haver certas comunhões de interesses estando todos jungidos por um regime mais ou menos uniforme surgem essas situações de condomínios atípicos tão só – e não se pode obrigar quem não queira a delas participar.

Isso porque, não se pode obrigar o titular de um direito real de propriedade plena – por exemplo o titular de um imóvel vizinho a mudar a natureza do direito real de seu imóvel contra a sua vontade, sem lei que o obrigue a tanto.

Com todo o respeito não se pode obrigar, como regra, ninguém a fazer o que não queira, a não ser em virtude de lei, quanto mais, alterar a natureza do direito real do imóvel em que vive – portanto se, na mesma rua, houver seis imóveis -  e os de números um a quatro bem como o seis, queiram formar uma associação e fechar o quarteirão – em tese terão que respeitar ou negociar com o imóvel cinco, seu direito de continuar a ser um imóvel de rua ou fora da associação em questão – mormente porque haveria problemas em fazê-lo contra a sua vontade a ter que aderir, num exemplo limite para a compreensão de todos, a aderir ao plano da maioria de afastar as ruas com ouro por conta de todos e colocar mármore de Carrara em muto de contenção – ao invés de simplesmente pagar as taxas e despesas de manutenção junto ao Poder Público.

Não há que se falar em imposição de algum bem comum em prol da associação que teria natureza privada, por exemplo e não seria, necessariamente, representante dos valores inerentes à sociedade – logo nem mesmo de função social dos demais imóveis se poderia cogitar em caso como este numa interpretação da LINDB, por exemplo, numa interpretação em torno dos seus artigos 3º e 5º.

A Carta Constitucional garante o direito, ademais, não apenas de propriedade privada (condicional apenas à função social que não poderia ser invocada pelos demais nesse caso mas além disso a lei não obrigaria ninguém a aderir contra a vontade e assegura ainda a liberdade de associação.

Restaria analisar se haveria, ou não, ainda, algum tipo de vulneração, ainda, em torno do princípio de ordem pública2 – em verdade um conceito vago que pode ser invocado em qualquer tempo e grau mas deve ser demonstrado o seu caráter residual – de vedação de enriquecimento sem causa (artigo 884 CC) que se impõe mesmo sem prova do empobrecimento de outrem (Enunciado 35 das Jornadas de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal) – isso, insista-se, não em relação a condomínios formais, mas em relação a esses condomínios atípicos.

Houve décadas de discussão se, nesses casos, esses entes (pela teoria clássica de Phelippe Hauriou eram entes despersonalizados equiparados hoje há tendência de tratá-los como pessoas jurídicas porque tem CNPJ numa ideia mais geral ) poderiam cobrar compulsoriamente contribuições de proprietários sob o argumento de que, associados ou não, se beneficiariam de proveitos realizados em prol do grupo dos associados, a luz dessa ideia dos atos unilaterais do direito obrigacional na modalidade de vedação de enriquecimento sem causa.

Fato é que, e eu respeito quem de mim divergir, há dois Temas Repetitivos de dois Tribunais Superiores que impedem tais cobranças - o ainda recente Tema Repetitivo 492 STF e o Tema Repetitivo 882 STJ que expressamente analisaram a questão concluindo que prevalece o direito de o proprietário ter liberdade associativa e escolher se irá se associar ou não se sobrepondo-se justamente ao argumento da vedação de enriquecimento sem causa.

Júlio César Ballerini Silva
Advogado. Magistrado aposentado. Professor. Coordenador nacional do curso de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Médico.

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