Introdução
No ano de 2010, por ocasião do curso de mestrado na Universidade de São Paulo, elaboramos o trabalho sobre a possibilidade de redução da pena aquém do mínimo legal pelo reconhecimento de circunstâncias atenuantes.1 Mencionado trabalho chegou a ser publicado em 2013, na segunda edição da revista Tribuna Virtual IBCCRIM,2 mas com a descontinuidade do periódico, o artigo se perdeu.
Dez anos depois, de forma muito positiva recebemos a notícia da iniciativa do Min. Rogério Schietti Cruz em rediscutir as bases da súmula 231, do Superior Tribunal de Justiça, que cristalizou a matéria.
Por essa razão, em prestígio a essa tão importante iniciativa, resolvemos revisitar o trabalho que se estruturou na busca da origem da vedação pouco discutida na jurisprudência das cortes superiores até hoje.
Para os fins de contribuição para a discussão, dividiremos o presente artigo, renovado e menos extenso, em cinco partes que analisarão, respectivamente: I - as origens doutrinárias e jurisprudenciais sobre a impossibilidade de redução da pena aquém do mínimo legal; II - as razões pelas quais é absolutamente defensável e pertinente a alteração do paradigma jurisprudencial após 1984; III - o tratamento jurisprudencial da matéria após a edição da Nova Parte Geral do Código Penal e como se deu a sedimentação da matéria; IV – o exame dos marcos inferior e superior do preceito secundário e a ausência de simetria entre a possibilidade de redução aquém do mínimo e a de aumento além do máximo, e V – as conclusões finais da investigação.
Esperamos que a investigação possa contribuir com a discussão.
Origem da Vedação - A parte Geral de 1940 e os métodos de aplicação da Pena
De início, devemos recuar alguns anos, pois, é na disciplina sobre os métodos de aplicação da pena da Parte Geral do Código Penal de 1940 onde se encontrará a origem dos problemas que deveremos enfrentar.
Em 1977, Damásio de Jesus já ponderava que as circunstâncias agravantes e atenuantes não poderiam exceder o máximo, tampouco preterir o mínimo da pena em abstrato, cominada no preceito secundário do tipo penal. Assim, sobre o tema o autor arrematava que “ao contrário do que ocorre em relação às circunstâncias agravantes e atenuantes, incidindo uma causa de aumento ou de diminuição da pena, esta pode ultrapassar o máximo, ou ser fixada aquém do mínimo legal”.3
Ainda sob a égide da legislação penal anterior, Basileu Garcia, discorria sobre a cisão doutrinária entre as fases da aplicação da pena. De um lado, sendo emblemático Roberto Lyra, os que defendiam o critério bifásico de aplicação da pena, onde primeiro se computavam as circunstâncias judiciais (intensidade do dolo, personalidade do agente, comportamento da vítima, etc.) e legais (agravantes e atenuantes), extraindo-se assim, a pena-base, à qual, posteriormente, seriam aplicadas as causas de aumento e diminuição, para então se contemplar a pena definitiva.
Do outro lado, encabeçados por Nélson Hungria, os defensores do sistema trifásico, segundo o qual a pena-base seria extraída do computo das circunstâncias judiciais ao preceito secundário, para posteriormente se aplicarem as circunstâncias legais (agravantes e atenuantes) e finalmente as causas de aumento.
Malgrado o dissenso doutrinário sobre as fases de aplicação, todos os autores sempre estiveram unânimes quanto à aceitação de que as circunstâncias judiciais ou legais teriam aplicação pretérita em relação às causas de aumento e diminuição de pena, justamente, por conta da possibilidade de ultrapassar limites máximo e mínimo previstos no preceito secundário.
Assim, Basileu Garcia, filiando-se à teoria de Roberto Lyra, assentava que “já ficou elucidado que as causas de aumento ou diminuição só operam depois das agravantes e atenuantes, judiciais e obrigatórias. É uma conclusão importante. A mudança de ordem no cálculo produziria alteração no resultado penal”.4
Associando-se a essa convicção Heleno Cláudio Fragoso, destacava a importância da fixação anterior das circunstâncias legais em relação às causas de aumento, justamente pelo condão especial que as últimas possuem de aumentar a pena acima do máximo previsto na norma sancionadora.5
Independentemente da posição a que se filiasse, a ordenação das causas de aumento e diminuição como última etapa da fixação da pena ganhava suprema relevância, pois pela interpretação que se dava à antiga Parte Geral do Código Penal, as variações advindas das duas primeiras fases (ou fase única) da fixação da pena deveriam estar constritas aos marcos estabelecidos pelo preceito secundário.
E isso, porquanto a interpretação que se dava ao antigo artigo 42 do Código Penal não distinguia as circunstâncias entre judiciais e legais. Com efeito, o mencionado dispositivo assim versava:
“Art. 42 - Compete ao juiz, atendendo aos antecedentes e à personalidade do agente, à intensidade do dolo ou grau de culpa, aos motivos, às circunstâncias e às consequências do crime:
I – determinar a pena aplicável e consequências do crime;
II – fixar, dentro dos limites legais, a quantidade de pena aplicável”.
O dispositivo legal tratava de “circunstâncias” do crime, sem qualquer dispositivo que distinguisse as fases de aplicação das circunstâncias judiciais e das circunstâncias legais. Desse modo, de acordo com a interpretação da época, analisando-as juntas ou separadas, inequívoco era o fato de que suas fronteiras estariam demarcadas pela pena fixada pelo legislador, por força do inciso II do dispositivo.
Ainda sobre a influência do critério bifásico, a análise de circunstâncias –judiciais ou legais – deveria se circunscrever aos marcos do preceito secundário, substancialmente, por conta da expressa determinação legal. Tratamento distinto era confiado às causas de aumento e diminuição, seja por sua natureza, seja pela inexistência de qualquer vedação legal à extrapolação do quantum da pena.
Mergulhando na natureza jurídica das circunstâncias agravantes e atenuantes, com propriedade, Magalhães Noronha, assentava que:
“[as agravantes e atenuantes] podem juntar-se a qualquer tipo sem alterá-lo em essência, apenas aumentando ou diminuindo a pena, e sem o fazer dentro de limites previamente fixados. Traduzem, conseqüentemente, maior ou menor gravidade do fato. São as denominadas accidentalia delicti, que se opõe às essentialia”6 (interpolação nossa).
Dessa forma, aliando-se ao método bifásico de aplicação da pena e calcando-se na característica acidental das circunstâncias legais, o autor expunha a fórmula de aplicação da pena da seguinte maneira:
“escolhida que seja a pena, passa, então, a dosá-la, isto é, fixará sua quantidade dentre os extremos que a lei fornece – o máximo e o mínimo. Para isso, terá em vista, nos termos do mesmo artigo, os antecedentes e a personalidade do agente, a intensidade do dolo ou grau de culpa, os motivos, as circunstâncias do delito, aliados a outras accidentalia, como se verá”7.
No mesmo sentido, também não diferenciando as circunstâncias judiciais das circunstâncias legais (teoria bifásica), tratando-as igualmente na fase de aplicação da pena, José Frederico Marques salientava sem vacilo que “as circunstâncias judiciais e legais examinadas em conjunto levam à fixação da pena-base entre o mínimo e o máximo da cominação legal existente no preceito sancionador”.8
É possível observar que a variação da pena advinda das circunstâncias judiciais e legais se circunscrevia aos limites legais impostos pela lei. E a explicação seria, como se pôde notar, a de que as circunstâncias não adentram a esfera elementar do tipo, mas somente o margeia, o orbita, como atributos acidentais os quais, ainda que hipoteticamente retirados da realidade fática, conduziriam o fato a sua adequação típica.
Outra seria a natureza jurídica das causas de aumento e diminuição de pena. Ainda que encontrada em doutrina mais atual, a explicação para a característica diferida das causas de aumento e diminuição estaria na maior ou menor lesão ao objeto de proteção jurídica na norma incriminadora.9
Destarte, o rechaço à tese de que as atenuantes possam diminuir a pena provisória aquém do mínimo legal vai encontrar seu fundamento no antigo art. 42, da antiga Parte Geral do Código Penal, que não distinguia as circunstâncias judiciais e atenuantes e impunha que sua aplicação se circunscrevesse aos limites cominados no preceito secundário do tipo penal.
Assim, com fundamento no princípio da legalidade, em respeito ao texto expresso da lei, doutrina e jurisprudência eram uníssonas no sentido de que apenas as causas de diminuição e aumento de pena poderiam exceder os limites estabelecidos nos tipos penais.
Conclusão
Fundamentalmente, a vedação da redução da pena à patamares inferiores ao limite mínimo do preceito secundário se devia, substancialmente, a ausência legal de diferenciação entre a primeira e segunda fase de aplicação da pena na Parte Geral do Código Penal de 1940. Sem uma diferenciação expressa entre circunstâncias judiciais e legais, as circunstâncias atenuantes deveriam se cingir aos marcos legais, nos termos do inciso II, do Art. 42, da antiga Parte Geral do Código Penal.
Tratava-se de momento em que a legislação não definia com clareza a diferenciação das circunstâncias legais e judiciais, de modo que eram comprimidas em uma fase inicial.
Como veremos no próximo seguimento, com o advento da nova Parte Geral, de 1984, consolida-se o método trifásico de dosimetria da pena, cindindo-se claramente o regime aplicável às circunstâncias judiciais do art. 59 – que por imposição legal deveria encontrar seus limites nos marcos do preceito secundário – do regime que deveria ser aplicável às circunstâncias legais, em especial às circunstâncias atenuantes, que nos termos do art. 65, sempre devem atenuar a pena.
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1 Razão pela qual agradecemos à orientação das Professoras Helena Regina Lobo da Costa e Mariangela de Magalhães Gama na disciplina Princípios Constitucionais Penais Aplicados.
2 “A possibilidade de redução da pena aquém do mínimo legal pelo reconhecimento de circunstâncias atenuantes: uma nova leitura da função dos marcos Penais”. Tribuna Virtual IBCCRIM, v. 1, p. 32-70, 2013.
3 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal. 1º Volume – Parte Geral. São Paulo. Editora Saraiva, 1977. P. 516.
4 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. Volume I. Tomo II. 4ª Edição. São Paulo. Editora Max Limonad. 1975. P. 500.
5 Em suas palavras, “quando ocorrem agravantes ou atenuantes genéricas, que incidem sobre a pena-base, a terceira etapa do cálculo é o cômputo das causas de aumento ou de diminuição, previstas na Parte Geral ou na Parte Especial. É grave erro considerar primeiro as causas de aumento e diminuição e depois as agravantes e atenuantes genéricas. As causas de aumento ou diminuição são numerosas (...). Elas podem ser obrigatórias ou facultativas e, diversamente do que ocorre com as agravantes ou atenuantes genéricas, podem conduzir a penal final acima do máximo ou abaixo do mínimo”. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: Parte Geral. Rio de Janeiro. Editora Forense, 1986. P. 361.
6 NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. Parte Geral. São Paulo. Editora Saraiva, 2000. P. 258.
7 NORONHA, E. Magalhães. Op. Cit. P. 251.
8 MARQUES, José Frederico. Curso de Direito Penal. São Paulo. Editora Saraiva, 1956. P. 260.
9 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal. Rio de Janeiro. Forense, 2009. P. 428. E ainda, David Teixeira de Azevedo de forma pioneira: A distinção entre causas de aumento e diminuição e suas co-irmãs agravantes e atenuantes não pode residir no critério absolutamente aleatório e assimétrico do legislador, cuja precisão e preocupação técnica em várias passagens da legislação penal não merecem encômios. A busca de uma determinação dogmática do conteúdo e implicação sistemática das causas de aumento e de diminuição para uma classificação dessas circunstâncias tem sido descurada pela doutrina. Essa despreocupação científica vem contribuindo para que o capítulo da determinação da pena, ao menos em nossa praxis, seja dos mais tormentosos e produza as mais graves distorções no terreno da aplicação da pena. Uma primeira distinção poderá ser baseada na conexão das referidas causas com o bem jurídico e com a culpabilidade do agente. Outra distinção poderá dirigir-se às finalidade do direito punitivo. Essas questões serão enfrentadas mais à frente. Desde logo, contudo, é bom esclarecer que o tratamento legal é absolutamente aleatório, assistemático, havendo causas de aumento conectadas a um só tempo à culpabilidade e ao bem jurídico, ou a este ao àquela isoladamente, o mesmo ocorrendo com as circunstâncias agravantes e atenuantes” AZEVEDO, David Teixeira de. Dosimetria da Pena – causas de aumento e diminuição. São Paulo. Editora Malheiros. 1998. P. 58.