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A inteligência artificial e os limites no uso do direito de imagem

Se admitirmos que os herdeiros podem consentir criações da imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais, os tribunais precisam reformular os entendimentos expressos anteriormente, para atribuir aos herdeiros uma disposição ilimitada ou, ao menos, passível de controle em cada caso concreto pelo Poder Judiciário.

18/7/2023

Recentemente a Volkswagen divulgou uma campanha publicitária “VW Brasil 70: O novo veio de novo” na qual, com uso de Inteligência Artificial (IA) e por meio de uma técnica chamada deep fake, a cantora Maria Rita e sua mãe, a cantora Elis Regina, que faleceu em 1982, aparecem cantando juntas a música Como Nossos Pais, de Belchior. Esse comercial difundiu amplamente a forma com que a tecnologia consegue fazer com que pessoas falecidas apareçam vivas, cantando e atuando, de maneira extremamente realista, o que levantou enorme polêmica jurídica e questionamentos éticos sobre o uso da IA.

Do ponto de vista jurídico, temos um direito fundamental, previsto no 5º, inciso X, da Constituição Federal. Além do direito de imagem, esse dispositivo constitucional protege o direito à intimidade, à vida privada e à honra. Ora, todas essas manifestações são expressões da personalidade humana, cuja dignidade é um dos pilares da República Federativa do Brasil (CF, art. 1º, inciso III). Dessa forma, tem-se que a Constituição Federal, além de resguardar o direito de imagem, protege a privacidade e a exteriorização da personalidade de uma pessoa no mundo, a fim de evitar a exposição indesejada daqueles que não consentiram expressamente sobre a utilização deste direito.

Ao analisar o direito de imagem sob outros ângulos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu que o direito de imagem é irrenunciável, e somente pode ser objeto de consentimento tácito se tal autorização for interpretada de uma forma restrita e excepcional1, pelo que destacamos o seguinte trecho (grifamos):

“A imagem é a exteriorização da personalidade inserida na cláusula geral de tutela da pessoa humana (art. 1º, III, da CF e En. 274 das Jornadas de Direito Civil), com raiz na Constituição Federal e em diversos outros normativos federais. É, pois, intransmissível e irrenunciável ( CC, art. 11), não podendo sofrer limitação voluntária, permitindo-se uma disponibilidade relativa (limitada) de expressões do uso do direito da personalidade, desde que não seja de forma geral e nem permanente (En. 4 das Jornadas de Direito Civil). 2. Em regra, para maior segurança e proteção, é exigível o consentimento expresso para o uso da imagem. Contudo, a depender da situação em concreto, admite-se o consentimento presumível, desde que, pela sua própria natureza, seja interpretado com extrema cautela, de forma restrita e excepcional.”

Em outro julgado, o STJ concluiu que “a ofensa ao direito à imagem materializa-se com a mera utilização desse atributo da pessoa sem autorização”2. No mesmo sentido, o verbete 403 da Súmula do STJ preceitua que "independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais." Inquestionável, portanto, que a Constituição Federal protege os titulares do uso indevido do direito de sua imagem por terceiros, não se admitindo uma presunção de consentimento irrestrito.

Considerando esses contornos que a jurisprudência já traçou, a situação ganha novas questões, sobretudo ao se tratar de pessoas falecidas, cujas imagens estão sendo utilizadas pela IA. Isso porque o desenvolvimento do deep fake potencializa exponencialmente o uso da imagem. Por essa técnica, a manipulação da imagem é realizada de forma ampla, ilimitada, e cada vez mais com aparência de realidade.

Possibilita-se, assim, a criação de novas atuações artísticas, utilização da voz, reprodução de movimentos e demais atributos biológicos, que podem não ter sido performados nem consentidos em vida, com bastante verossimilhança. Frise-se, não estamos mais diante da utilização de uma fotografia, na qual a imagem da pessoa falecida é utilizada de forma estática, nem de uma gravação em vídeo protagonizada por uma pessoa. Em alguns casos, nem mesmo se trata da utilização de um registro de uma atividade efetivamente realizada pela pessoa. Vivemos uma era em que a tecnologia pode criar cenas e obras, “trazendo à vida” qualquer pessoa falecida, para fazer o que um programador bem entender.

Fato é que, na campanha publicitária em comento, a cantora Elis Regina aparece cantando, sorrindo e dirigindo uma Kombi, o que não existiu no mundo real, mas foi criado por meio de Inteligência Artificial. Muito embora o direito de imagem normalmente seja gerenciado pelos herdeiros legais, que neste caso autorizam a exploração de sua imagem na campanha publicitária da Volkswagen, não se pode negar que o episódio mostrou que estamos diante de novos fatos, os quais implicam questões éticas e legais que não foram apreciadas antes pelos tribunais brasileiros.

Portanto, se admitirmos que os herdeiros podem consentir criações da imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais, os tribunais precisam reformular os entendimentos expressos anteriormente, para atribuir aos herdeiros uma disposição ilimitada ou, ao menos, passível de controle em cada caso concreto pelo Poder Judiciário.

Outro ponto a se considerar nesta equação é que não existem direitos absolutos. O exercício abusivo de um direito configura um ato ilícito3 civil, cujo efeito pode ser a reparação dos danos morais ou materiais, a invalidação do ato ou a revogação de sua eficácia. Ainda que se tratem de direitos fundamentais, como é o direito à imagem, os direitos devem ser exercidos com boa-fé, levando em consideração os limites de seus próprios contornos e outros direitos, individuais ou coletivos. Tais direitos devem ser sopesados pelo Poder Judiciário em cada situação concreta que lhe for submetida, para a harmonização do aparente conflito normativo.

Ao tempo de promulgação da Constituição Federal, no ano de 1988, pode-se afirmar que esse dilema não existia, porque não havia uma aplicação disseminada, tampouco um desenvolvimento tão grande da tecnologia em questão. Como se afirmar popularmente, primeiro os fatos acontecem, para depois aparecer o Direito. Então, a interpretação da norma jurídica não pode desconsiderar os valores aceitos por uma comunidade em um determinado momento histórico. Isto é, ao interpretar o alcance de uma norma, é importante levar em conta os fatos e os valores que influenciaram sua criação e o seu sentido atual. 

Feitas essas breves considerações, fica evidente a necessidade de grande debate sobre este tema, não apenas para proteger a imagem dos que já faleceram e não podem mais consentir com atuações e trabalhos específicos, mas que a norma seja avaliada à luz do desenvolvimento atual da tecnologia, sem tolher a inovação, mas também protegendo os atributos irrenunciáveis da personalidade da pessoa humana.

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1 STJ - REsp: 1384424 SP 2011/0178374-5, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 11/10/2016, Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 21/11/16

2 REsp 1.243.699 Relator: Ministro RAUL ARAÚJO. Data de julgamento: 21/6/16. Quarta Turma Data de Publicação: DJe 22/8/16

3 Código Civil, art. 187

Gilberto Canhadas Filho
Sócio do escritório Trigueiro Fontes Advogados.

Ana Carolina Ferreira de Melo Brito
Graduada em Direito pela UFPE. Pós-graduada em Direito Processual Civil e em Direito Processual Civil. Professora na pós-graduação em Desenvolvimento Sustentável e Auditoria Ambiental. Sócia do escritório Trigueiro Fontes Advogados.

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