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O parecer opinativo do TCU pela rejeição das contas de Getúlio Vargas em 1937: breves notas

O tema deste breve ensaio está contido na ata 49 da sessão ordinária de 26 de abril de 1937 do Tribunal de Contas da União

16/7/2023

Realizamos este breve ensaio a partir de análise empírica, desde o manejo de fonte primária de pesquisa, permitida pelo acesso ao acórdão de 1937 no qual o Tribunal de Contas da União opinou pela rejeição das contas do governo federal sob a égide da administração Vargas em 1936, a partir da diligente e prestativa atuação das servidoras Ana Claudia de Carvalho Cabral Lopes (Serviço de Gestão de Biblioteca e Arquivo) e Cibele Lyrio (Coordenação Executiva da Revista do TCU), a quem este artigo é dedicado, e, ainda, a quem penhoradamente se agradece pelo auxílio inestimável. Este ensaio também é dedicado ao jurista Joaquim Portes de Cerqueira Cesar, permanente incentivador das pesquisas, cultor do trato sério e escorreito da coisa pública (res publicae).

O tema deste breve ensaio está contido na ata 49 da sessão ordinária de 26 de abril de 1937 do Tribunal de Contas da União, sob a presidência do ministro Camillo Soares de Moura, com a presença dos ministros Tavares de Lyra, Thompson Flôres, Octavio Tarquinio de Sousa, José Americo de Almeida e Bernardino José de Souza, tendo por secretário o Dr. José de Moraes e como Procurador o Dr. Eduardo Lopes, publicada a Ata no DOU de 22/6/37, p. 13518.

Cuida-se da análise das contas do Governo Federal do exercício de 1936, através do Aviso n. 187, de 1/4/37, encaminhado pelo Ministério da Fazenda, e relatado pelo ministro Thompson Flores. Podemos ler que: “o Tribunal resolveu aprovar o parecer apresentado pelo Sr. Ministro relator”, embora o Ministro Bernardino de Souza também tenha aprovado, mas com uma distinção: “com a necessária reserva quanto às considerações feitas sobre a parte do mesmo parecer, relativamente à Câmara do Reajustamento Econômico, do qual discordou”.

Naquele tempo, permitam o modo da linguagem, a antiga Contadoria Central da República organizava as contas do Poder Executivo, órgão que havia sido instituído pelo Decreto n. 15.210, de 28 de dezembro de 1921, com a finalidade de administrar a contabilidade geral da União, compreendendo os atos relacionados à gestão do patrimônio nacional e à inspeção e registro da receita e despesa federais. Era subordinado ao Tesouro Nacional, assumindo as atribuições que pertenciam anteriormente à Diretoria-Geral de Contabilidade, cujas origens remotas se vinculam à instituição do Erário Régio, quando da instalação da família real portuguesa no Brasil.

O parecer mencionava a necessidade de posterior chancela da Câmara dos Deputados, em conformidade ao art. 29 da Constituição Federal de 1934, uma vez que a Carta subsequente somente seria outorgada por Getúlio em novembro de 1937. A redação do dispositivo era a seguinte:

“Art 29. Inaugurada a Câmara dos Deputados, passará ao exame e julgamento das contas do Presidente da República, relativas ao exercício anterior.

Parágrafo único. Se o Presidente da República não as prestar, a Câmara dos Deputados elegerá uma Comissão para organizá-las; e, conforme o resultado, determinará as providências para a punição dos que forem achados em culpa.”

Complementa, citando Molien, sobre a fiscalização legislativa das contas: “um segundo exame do orçamento no qual a realidade é posta em presença das promessas para que os fatos julguem às previsões”, ressaltando a colaboração do TCU diante do art. 102 da mesma Constituição: “O Tribunal de Contas dará parecer prévio, no prazo de trinta dias, sobre as contas que o Presidente da República deve anualmente prestar à Câmara dos Deputados. Se estas não lhe forem enviadas em tempo útil, comunicará o fato à Câmara dos Deputados, para os fins de direito, apresentando-lhe, num ou noutro caso, minucioso relatório do exercício financeiro terminado”.

Ressalta o decreto 15.783 de 8 de novembro de 1922, “revigorado pelo decreto 12 de 28 de dezembro de 1934”, com menção ao seu art. 219, que estabelecia o crime de responsabilidade em caso de atentado contra a despesa da União em desacordo com as leis orçamentárias.

Prossegue se queixando da falta de estrutura e de pessoal, pois a lei 156/34, preconizadora da fiscalização orçamentária dos “dinheiros públicos” não se fez acompanhar da aprovação do respectivo e suficiente quadro de pessoal, que aguardava na Câmara dos Deputados, segundo alegou, desde 17/10/34, tornando impossível a fiscalização integral: “sem delegação nos Estados e sem pessoal suficiente na sede, não foi possível ao tribunal exercer integralmente a sua missão fiscalizadora”, vale dizer: “a despesa efetuada nos Estados não foi examinada sob o aspecto legal, como também não foram revistos os balancetes das repartições arrecadadoras e pagadoras, para o efeito de verificar se a Receita foi arrecadada de acordo com a lei e devidamente classificada”.

Em uso mixado de perspectivas de juristas que influenciaram o pensamento da relatoria, cita Ruy Barbosa e João Alfredo, para dizer, respectivamente, ainda em construção argumentativa de autoridade, que “[a missão do TCU é], por um veto oportuno obstar a perpetração de atos do Poder Executivo que discrepem da linha rigorosa das leis de finanças” e que “o exercício pleno das funções do Tribunal de Contas é o alicerce sobre que se levantará a fiscalização parlamentar”.

Feito o registro, ao modo de um verdadeiro desabafo preliminar que menciona ser necessária maior boa vontade e patriotismo da Câmara dos Deputados, começa o exame dizendo sobre a tempestividade da apresentação das contas, ocorrida no dia 1º de abril, respeitando o prazo legal.

Menciona que a receita arrecadada consistiu em “3,127.459:917$900”, com previsão de uma arrecadação de “2,537.576:000$000”, verificando-se excesso de receita na importância de “589.883:917$900” sobre a previsão orçamentária. Afirma, pois, que a apuração da diferença se restringe comparativamente ao confronto de algarismos entre a “escrita do Tribunal e o balanço da Contadoria Central”, e, apesar de terem sido remetidos todos os balancetes mensais das repartições “só pode o Tribunal proceder ao confronto de cifras, confronto que não o habilita a dizer sobre a legalidade das operações”.

Afirmou, ainda, que sobre a receita “não foram remetidos ao registro deste Tribunal, os decretos, regulamentos e instruções que tenham por fim regular a arrecadação da receita, para exame da concordância desses atos com a legislação vigente”, citando o art. 23 da lei 156.

Sobre a despesa, observou que “o balanço da Contadoria Central consigna que os créditos orçamentários, suplementares, extraordinários e especiais somaram 3,641.276:862$100”, ressaltando, ainda, que totalizaram 1.956:972$400, e os “decretos ns. 22.844, de 21-6-933, 404, de 4-11-935 e 690, de 13-3-936, que não figuram da escrituração do Tribunal de Contas”, como importâncias pagas.

Aponta, sequencialmente, que “se tivesse sido possível o cumprimento exato da lei orçamentária e das leis de contabilidade pública (...) teria havido um saldo orçamentário total de 470.174:247$937”, seguindo-se da menção ao que descreve como “despesas irregularmente escrituradas no balanço financeiro”, constatando que a Contadoria Central da República não cumpriu a determinação do art. 8º, n. 8, do decreto 15.783/33, especialmente quanto ao que toca à escrituração de crédito e das despesas: “a Contadoria Central não deu cumprimento a essas disposições legais, de vez que lançou no balanço financeiro de 1936, levantado em face de sua escrita, e na conta do orçamento, despesas irregularmente processadas e pagas sem o registro do tribunal de Contas”.

Como consequência, complementa: “essa grande falha explica o projeto que faço juntar a este parecer, como um brado de patriotismo de um ilustre membro do Parlamento”, prosseguindo seu aporte sobre Bancos e Correspondentes, dizendo: “nessa conta figura no balanço financeiro o saldo de 362.911:645$800, a favor do Tesouro nas suas operações do exercício de 1936 com o Banco do Brasil e outros bancos”.

Entretanto, mira aspecto que intuiu preocupante, aduzindo: “do relatório apresentado pelo Banco do Brasil à assembleia  geral dos acionistas, publicado do Correio da Manhã de 21 de abril do corrente ano, figura no título operações com o Governo Federal’, que a dívida do tesouro para com aquele Banco, em 31 de janeiro de 1937, após a liquidação das contas referentes ao exercício financeiro de 1936, importa em 442.608:000$000”, complementando: “entendo que deverão ser anexadas ao balanço para a necessária fiscalização da Câmara, as contas originais desse Banco com o Tesouro Nacional, por ele devidamente autenticadas, a fim de ser apurado se houve débito ou saldo a favor do Tesouro”, conforme exigência do art. 722 do Regulamento Geral de Contabilidade Pública.

Também aponta problemas com relação as caixas Econômicas das Repartições Militares e com os Agentes Pagadores. Quanto ao primeiro, observa que antes da Constituição de 1934, existia o chamado “regime de massas” para as despesas das repartições militares, algo que passou a ser vedado após da promulgação da Constituição, pois “as necessidades das repartições militares devem ser atendidas com os recursos normais do orçamento, no qual devem ser consignadas todas as verbas necessárias ao custeio dos serviços”. Quanto ao segundo, ressalta que seria preciso rever os modelos de escrituração de molde a harmonizá-los com suas disposições.

Diante da quantidade de irregularidades constatadas, menciona que “à Egrégia Câmara dos Deputados, me parece, cumpre julgar as violações das normas reguladoras da execução do orçamento, que deveria ser inviolável na sua missão soberana de prover às necessidades da administração pública”, como o complemento: “o Tribunal de Contas não pode pronunciar-se sobre a moralidade das contas da gestão financeira do país”, uma vez que: “sua fiscalização se limita à legalidade dos atos referentes à receita e despesa públicas”.

Termina o parecer com 4 destaques, seguidos da juntada de documento que alude ao Tribunal de Contas da França. Menciona: “Penso que este Tribunal deverá informar à Egrégia Câmara dos Deputados o seguinte:

1º que as despesas processadas e pagas irregularmente, sem o seu registro e sem o cumprimento das leis de contabilidade pública e da Constituição Federal, indicadas neste parecer, não estão em condições de serem aprovadas.

2º que tais despesas, figurando do balanço da Receita e da Despesa, classificadas na conta do orçamento, como se tivessem sido regularmente processadas e pagas, deverão ser estornadas dessa conta e classificadas no título “Diversos Responsáveis”, com a indicação nominal dos responsáveis, quer sejam exatores, pagadores ou ordenadores de despesas ilegais, tudo como manda a legislação citada.

Dessa maneira ficará a Egrégia Câmara dos Deputados bem informada, e poderá determinar as “providências para punição dos que forem achados em culpa” (art. 29 e seu parágrafo único da Constituição Federal).

3º que, não figuram do balanço remetido pela Contadoria Central, as contas originais do Tesouro com o Banco do Brasil e outros bancos, por eles devidamente autenticadas, comprovando a exatidão do saldo a favor do Tesouro e neles depositado, exigência essa determinada pelo art. 722 do Regulamento Geral de Contabilidade Pública.

4º que, “só a organização sábia e o funcionamento honesto do Tribunal de Contas podem conter e corrigir abusos e irregularidades, concorrendo decisivamente para o triunfo da verdade orçamentária”.

E, dizendo isso, finaliza, pontuando: “nesta ordem de ideias, me permitirão, ao finalizar este trabalho, que cite o que ocorreu com o Tribunal de Contas de uma das Nações, das mais civilizadas, cultas e prósperas do mundo, nesta época tormentosa que atravessamos, em que homens de maior responsabilidade e valor, em torno dele se reuniram para concertarem medidas, reputadas salvadoras para a vida econômico-financeira, da grande e gloriosa França. É o que informa a imprensa desta Capital no documento junto”. O mencionado documento anexado cita notícia de jornal que esclarece providencias tomadas na França para fortalecer o Tribunal de Contas, com a criação do “Comitê Superior de Controle Financeiro”, terminando o parecer na data de sua assinatura, qual seja, 26 de abril de 1937.

Entretanto, a Câmara dos Deputados superou a opinião do Tribunal de Contas da União para o referido exercício, chamando-se atenção para o fato de que com a Constituição de 1937 a aprovação prévia do parecer foi suprimida do TCU, trazendo, ainda, uma consequência fruto do autoritarismo de Getúlio, conforme seu relato biográfico: “A decisão do Tribunal de Contas despertou forte reação contrária por parte do presidente da República, que como primeira medida colocou o ministro Thompson Flores em disponibilidade, não mais permitindo seu retorno ao TC, até se aposentar no ano de 1950”.

Na época o Tribunal de Contas era composto por figuras ilustres, num julgamento unânime, mas apenas o ministro relator sofreu as consequências autoritárias, e, note-se, em poucos meses outra figura ilustrada tomaria posse na Corte de Contas para depois ter assento no Supremo Tribunal Federal. Refiro-me ao ministro Castro Nunes (1938-1940), sobre quem há importante estudo acadêmico produzido na Universidade de Brasília, a dissertação de mestrado defendida por Patrícia Soster Bortolotto, orientada pelo professor Airton Seelaender: “Refuncionalização do estado e discurso autoritário: o pensamento de Castro Nunes (1924-45)”.

Sobre o Tribunal de Contas, inúmeros são os trabalhos dignos de nota, e que tomariam páginas e mais páginas, mas podemos destacar os seguintes textos: Rui Barbosa1, Roberto Rosas2, Jarbas Maranhão3, José Cretella Júnior4, Ricardo Lobo Torres5, Paulo Modesto6 e Eurico Barbosa7, dentre outros.

Ao fim e ao cabo, o parecer que opina pela rejeição das contas da administração Vargas no exercício de 1936/1937 fornece importantes subsídios para reflexão não romantizada sobre as instituições, seja pela forma com que termina fazendo aderência a uma visão francesa de direito comparado com escopo limitado, seja pela construção de ideias sobre o papel de fiscalização restrito à legalidade, e mesmo sobre a composição institucional e maneira de votação, devendo provocar debates nos campos político, jurídico e econômico.

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1 Barbosa, Rui. Escritos e Discursos Seletos. 1ª edição, segunda reimpressão. Rio de Janeiro, Aguillar, 1995; Barbosa, Rui. Relatório do Ministro da Fazenda. Tomo III. Obras Completas de Rui Barbosa, Vol.  XVIII, 1891, Tomo III. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, p. 368.

2 Rosas, Roberto. Aspectos dos Tribunais de Contas. Revista de informação legislativa, v. 6, n. 24, p. 29-36, out./dez. 1969.

3 Maranhão, Jarbas. Origem dos Tribunais de Contas: evolução do Tribunal de Contas no Brasil. Revista de informação legislativa, v. 29, n. 113, p. 327-330, jan./mar. 1992; Maranhão, Jarbas. Tribunal de Contas: natureza jurídica e posição entre os poderes. Revista de informação legislativa, v. 27, n. 106, p. 99-102, abr./jun. 1990.

4 Cretella Júnior, José. Natureza das decisões do Tribunal de Contas. Revista de direito administrativo, n. 166, p. 1-16, out./dez. 1986.

5 Torres, Ricardo Lobo. O liberalismo financeiro no pensamento de Rui Barbosa. Revista do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, v. 15, n. 26, p. 64-107, mar. 1994.

6 Modesto, Paulo. Rui Barbosa e a certidão de batismo baiana dos tribunais de contas, Conjur 16/03/2023.

7 Barbosa, Eurico. Rui Barbosa e o ideal do Tribunal de Contas. Goiânia: Editora Kelps, 2001.

Thiago Aguiar de Pádua
Doutor em direito. Professor da Faculdade de Direito da UnB. Ex-assessor de ministro do STF. Autor do livro "O Common Law Tropical: o caso Marbury"(2023). Sócio de Aguiar de Pádua & Lima Advogados.

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