Lynn Goldsmith é uma importante fotógrafa norte-americana. Em 1981, realizou um retrato de Prince. Em 1984, a editora Condé Nast obteve uma licença de Goldsmith para que Andy Warhol usasse seu retrato de Prince como base para uma única serigrafia, que ilustraria a revista Vanity Fair.
Porém, sem autorização, Warhol produziu mais do que uma serigrafia. No total, foram criadas 14 serigrafias e duas ilustrações – a Prince Series. Em 2016, a editora Condé Nast contratou uma licença da Fundação Warhol para usar a Prince Series como ilustração de uma nova revista. Com isso, Goldsmith soube que o limite de sua licença havia sido desrespeitado e que a revista deixou de atribuir créditos corretamente.
Diante da controvérsia, a Fundação ajuizou uma Ação Declaratória de Não Infração argumentando que o trabalho de Warhol era tão original e transformativo em relação ao trabalho de Goldsmith, que independia de qualquer autorização da fotógrafa: “a obra de Warhol como um todo transcende seus objetos retratados. Enquanto Goldsmith usa sua câmera para criar retratos fidedignos, Warhol usa figuras públicas para comentar questões sociais. Suas musas serviram como outdoors humanos para os tópicos que ele denunciava, e ele as escolheu pelo que acreditava que a sociedade as associava, e não por quem elas eram como indivíduos.”1
Desse modo, argumentava a Fundação: “A obra de Warhol mostra apenas o rosto e o cabelo do cantor. A roupa e a linguagem corporal de Prince foram uma parte essencial do retrato de Goldsmith. Curiosamente, Warhol foi capaz de separar o corpo físico da cabeça da pessoa na maioria de suas impressões. Isso dá a seus espectadores a impressão de que o modelo representado é apenas meio real. Embora Prince ainda seja reconhecível, o retrato de Warhol corta partes de sua personalidade que foram focadas no trabalho de Goldsmith. Claramente, os dois artistas visuais tinham intenções diferentes por trás de suas representações.”2
O caso gera reflexões. A primeira é que, por um lado, tanto a legislação brasileira quanto a americana preveem que aquele que cria uma obra possui Direitos Autorais sobre ela. Isso se dá inclusive através de previsão expressa do art. 5º, XXVII, da Constituição Brasileira (CF), e do artigo 1, seção 8, da Constituição dos Estados Unidos da América. Por outro lado, nos dois países, os Direitos Autorais servem a uma função social de promover o desenvolvimento da arte, limitando-se por outros direitos fundamentais, como a liberdade artística e de expressão, previstas nos arts. 12 das Constituição Brasileira e norte-americana.
De um modo geral, a opinião pública percebe os Direitos Autorais como interesses egoístas de artistas que, enfrentando o público, buscam lucrar ao impedir o uso livre de suas obras. Porém, os direitos de um autor causam impacto em múltiplos núcleos de interesse, inclusive na produção de outros artistas – conforme o conflito de Warhol v. Goldsmith ilustra.3
Uma segunda reflexão é que, por muito tempo, o Direito tratou com preconceito as fotografias, por se entender que nem toda fotografia era resultado de atividade criadora. Essa é uma visão superada pelo STJ, que já reconheceu que fotografias são obras protegidas no art. 7º da LDA. Mesmo assim, ainda há um número estarrecedor de julgados em Tribunais de Justiça que falham em reconhecer a proteção para fotógrafos, mostrando que esse preconceito ainda precisa ser combatido.4
Uma terceira reflexão é que, sem dúvidas, a obra de Warhol foi criada a partir de Goldsmith. Porém, no limite, todas as obras artísticas são produzidas com base em anteriores5. Mesmo Prince, por mais revolucionário que tenha sido, foi influenciado por James Brown, Jimi Hendrix, dentre outros. Por isso mesmo, o Direito não podem impedir que um autor se inspire em outros, pois isso impediria o desenvolvimento artístico.
Assim, por força do princípio da isonomia, os Direitos Autorais funcionam como uma espécie de espectro de criatividade em que, quanto menos criativa for a obra, menor proteção ela terá, podendo estar submetida ao controle de outros autores anteriores6. No grau mínimo desse espectro estão os plágios: uma segunda criação que, na realidade, não acrescenta contribuição criativa sobre a anterior. Um exemplo seria um outro artista copiar uma pintura anterior, apenas mudando levemente as cores usadas para falsear de que se trata de uma nova obra. Um caso como esse é proibido pela legislação, podendo ocasionar em sanções de ordem civil e penal.
Em um grau intermediário, estão as obras derivadas: uma segunda obra, que incorpora elementos da obra originária, mas acrescenta contribuição criativa. Um exemplo é um filme criado a partir de um livro. Nesse caso, o autor da obra anterior permanece titular da obra originária. Porém, o autor da derivada é titular da parte criativa que acrescentou. Por isso, como regra, para uma revista reproduzir uma obra derivada, precisa de autorização tanto da autora da obra originária quanto do autor da obra derivada. Isso apenas não é verdade se incidir sobre o caso alguma limitação ao Direito Autoral.
No grau mais criativo, estão as obras novas: obras que, embora inspiradas em anteriores, contribuem criativamente com o desenvolvimento artístico. A obra nova não incorpora elementos essenciais de anteriores. A obra de Prince, por exemplo, não reproduz elementos essenciais de canções de Jimy Hendrix. Embora ambas tenham expressões estéticas parecidas, as semelhanças podem ser atribuídas ao gênero em que ambos se expressaram.
A dificuldade do Direito, contudo, está em definir parâmetros claros para determinar qual o ponto em que uma obra nova passa a ser uma obra derivada, ou quando uma obra derivada passa a ser um plágio. Talvez seja impossível definir esses parâmetros, dependendo necessariamente de análise casuística.7
De todo modo, independente do grau criativo da obra, existem limitações aos Direitos Autorais. Nos EUA, o Copyright Act estabelece as possibilidades de “fair use” – situações em que o uso independe de autorização. A lei americana determina que para analisar se há “fair use”, deve-se considerar (1) o propósito e o caráter do uso, incluindo se tal uso é de natureza comercial; (2) a natureza do trabalho; (3) a quantidade e substancialidade da parte utilizada em relação ao trabalho protegido por direitos autorais como um todo; e (4) o efeito do uso sobre o mercado potencial ou o valor do trabalho protegido por direitos autorais.
A Suprema Corte dos EUA entendeu que (1) o uso se deu em caráter comercial, já que houve licença paga para uso da Prince Series pela revista. Também entendeu a Corte que o fato de (2) a natureza da criação ser uma fotografia, torna o uso mais restrito, porque permitir a exploração da obra de Warhol, sem a devida autorização e remuneração da fotógrafa Goldsmith, “autorizaria potencialmente uma série de cópias comerciais de fotografias, a serem usadas para fins que são substancialmente os mesmos dos originais”.8 Interessante notar a trajetória das fotografias no Direito – de esbanjadas a superprotegidas no Direito Americano.
Também entendeu a decisão que (3) o trabalho de Warhol, embora acrescente contribuição criativa à fotografia, incorporava elementos essenciais de Goldsmith – o próprio retrato de Prince, central em ambas as obras. Nesse sentido, Warhol tinha direito sobre a contribuição criativa que realizou, mas Goldsmith também, pois sua criação serviu de base criativa para o trabalho final.
Por fim, (4) ainda entendeu que o mercado trata as obras de Warhol e Goldsmith como substitutos, já que ambos poderiam ser utilizados para ilustrar a revista. Sendo assim, a licença da Fundação Warhol prejudicou Goldsmith.
No Brasil, as limitações aos Direitos Autorais estão previstas na LDA de forma exemplificativa. O STJ reconhece possibilidades de usos não autorizados por força direta de direitos constitucionais.9 Além disso, ainda se aplica no Brasil, por força da Convenção de Berna, o “teste dos três passos”. Em resumo, o teste estabelece que uma obra pode ser utilizada em determinadas circunstâncias especiais (ex.: paródias, citações e epígrafes), desde que não prejudique a exploração comercial da obra originária e que não fira os interesses do autor da obra originária.
Apesar de haver semelhanças entre os sistemas brasileiro e americano, o “fair use” possui caráter “econocêntrico”, pois se centra na análise de efeitos econômicos que o uso da obra originária causa ao seu autor.10 Por outro lado, o sistema brasileiro tem sua raiz em direitos sobretudo existenciais, sobretudo a dignidade da pessoa humana.11
Dada a complexidade dos sistemas dos dois países, é difícil saber se o caso de Goldsmith x Warhol teria desfecho igual no Brasil. Muitas vezes é difícil saber, até mesmo para pessoas bem-intencionadas, quando e a quem pedir autorização para usar uma obra. Por essa razão, consultar especialistas em Direitos Autorais é crucial na trajetória de artistas, meios de comunicação e empresas.
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1 EUA. Suprema Corte. Caso ANDY WARHOL FOUNDATION FOR THE VISUAL ARTS, INC. v. GOLDSMITH ET AL. Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/22pdf/21-869_87ad.pdf
2 CASSAN, Clara. Case Review: Warhol v. Goldsmith. Disponível em: https://itsartlaw.org/2018/12/05/case-review-warhol-v-goldsmith/
3 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Contenda societária e concorrência desleal no mercado de games. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 21, p. 193-244, jul./set. 2019. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/download/471/314. Acesso em: 24 fev. 2021.
4 BRANCO JÚNIOR, S. V. .; MEDEIROS, J. . FOTOGRAFIAS ONLINE: OBRAS PROTEGIDAS OU DOMÍNIO PÚBLICO?. Revista Direitos Culturais, v. 16, n. 39, p. 45-67, 9 set. 2021. Disponível em: https://san.uri.br/revistas/index.php/direitosculturais/article/view/413
5 CAMPOS, Pedro de Abreu M. Direitos Autorais de Acordo com o STJ. Ed. Lumen Juris, 2022. P. 98.
6 BARBOSA, Pedro Marcos Nunes. Originalidade em crise. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCilvil, Belo Horizonte, v. 15, p. 37, jan./mar. 2018
7 LANDES, William M. e POSNER, Richard A. The Economic Structure of Intellectual Property Law. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 2003, p. 4
8 EUA. Suprema Corte. Caso ANDY WARHOL FOUNDATION FOR THE VISUAL ARTS, INC. v. GOLDSMITH ET AL. Disponível em: https://www.supremecourt.gov/opinions/22pdf/21-869_87ad.pdf
9 ASCENSÂO, José de Oliveira. O fair use no direito autoral. Revista Forense. v. 365, jan.-fev. 2003, pp. 73-74
10 RUBENFELD, Jed. The freedom of imagination: copyrights’s constitutionality “. Yale Law Review, v. 112, n. 01, out/2002, p. 19.
11 MORAES, Maria Celina Bodin de. Na medida da pessoa humana. 1ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Processo, 2016.