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Perda de uma chance no processo penal e a indevida subversão do ônus ao acusado (Parte I)

A teoria da perda de uma chance no processo penal, também guiada pelo dever constitucional da eficiência, visa, para além de reforçar os deveres legais de todos os atores jurídicos, combater o comodismo e inércia no modo de produção de provas na apuração criminal e a subversão desta responsabilidade ao acusado.

17/7/2023

A teoria da responsabilidade civil pela perda de uma chance surgiu na França, na década de 60, em um caso concreto que tinha por matéria de fundo um erro médico que teria retirado as chances de sobrevivência da vítima.

Uma matéria tão conhecida no direito civil, mas ainda pouco debatida e aplicada no direito penal. Como de desdobra a perda de uma chance no processo penal? Para isso, é preciso entender como se caracteriza no direito civil. A responsabilidade civil por perda de uma chance reconhece a possibilidade de indenização quando alguém é indevidamente privado de obter uma vantagem ou evitar um prejuízo. Obviamente, não se trata de qualquer chance, é aquela séria e real.

No processo penal, conceitua-se a teoria da perda de uma chance probatória como o ônus do autor da ação penal em produzir todas as provas necessárias à formação da convicção do julgador. Assim, é ônus do órgão de acusação a prova da materialidade e autoria do crime para que seja possível uma condenação, com bem delimita o art. 156, do CPP. Assim, a consequência processual de não produzir provas de modo diligente, causa a absolvição por insuficiência de provas (Código de Processo Penal, art. 386, VII).

O raciocínio é simples e textualmente formalizado: no âmbito do constitucional vige-se a presunção de inocência (Constituição, art. 5º, LVII) e quando o Estado não produz, de maneira diligente, todas as provas disponíveis, deverá se sujeitar ao ônus do não exercício de suas faculdades.

Qualquer que seja o crime, haverá vestígios e, comumente, seus autores deixam notórias evidências materiais que podem e deveriam ser coletadas para hígidainstrução processual. Trata-se, inclusive, de um dever – e não mera faculdade – recolher os vestígios do crime, guardá-los e, inclusive, realizar as perícias necessárias (art. 6º do CPP).

Infelizmente, o que se observa na prática processual penal brasileira é uma subversão desta lógica constitucional e legal, na medida que, mesmo nos crimes que deixem vestígios, não são realizados o exame de corpo delito direto, optando-se pela sua produção indireta (como se pudesse!), comumente realizada através do depoimento das autoridades policiais que autuaram na ação.

Neste diapasão, cite-se como exemplo um dos crimes mais corriqueiros no cotidiano do advogado criminalista: tráfico de drogas. Muitas vezes a droga não é apreendida em poder do agente autuado, mas nas imediações, e não há sequer a preocupação ou lembrança de determinar a realização de perícia para identificar a existência de digitais dos acusados no material encontrado. Contenta-se, apenas, com anarrativa policial que, data máxima vênia ao empenho de muitos, não raras vezes agemem etiquetamento social, na medida que as próprias instituições estatais de controle social estigmatizam os indivíduos com passagens policiais anteriores, colocando-os perante a sociedade como eternos criminosos, e, consequentemente, contribuindo para que estes indivíduos sejam alvos de incontáveis abordagens e processos judiciais e não possam alcançar a almejada ressocialização.

Portanto, a teoria da perda de uma chance no processo penal, também guiada pelo dever constitucional da eficiência, visa, para além de reforçar os deveres legais de todos os atores jurídicos, combater o comodismo e inércia no modo de produção de provas na apuração criminal e a subversão desta responsabilidade ao acusado.

Marillya Gondim Reis
Defensora Pública no Estado de Pernambuco. Graduada pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestre em ciência jurídica com área de concentração em Fundamentos do Direito Positivo pela UNIVALI-SC. Professora.

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