De acordo com o artigo 1º da lei 9.613/98, o crime de lavagem de dinheiro ou ocultação de bens, direitos e valores, pressupõe a existência de infração penal antecedente apta a caracterizar a intenção de desvirtuar ou dificultar a origem do dinheiro utilizado para a realização de negócio jurídico subseqüente. Ou seja, é a utilização do produto de um crime como forma de dar aparência de legalidade a um ativo formalmente lícito. Exemplo: O sujeito utiliza do produto do crime praticado contra a Administração Pública (crime antecedente) para adquirir um imóvel (ocultação da origem do dinheiro necessário para a compra do imóvel).
No estudo em análise, que aborda a justa causa para a deflagração da ação penal por crime de lavagem de dinheiro oriundo de infração penal antecedente de crime contra a ordem tributária, como se trata de crime antecedente que só estará caracterizado após o lançamento definitivo do crédito fiscal, e a lavagem de dinheiro pressupõe que a ocultação ou a dissimulação da origem do ativo seja criminosa, a orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça dispõe que não haverá justa causa para a deflagração de persecução criminal – por crime contra a ordem tributária - quando a denúncia não é instruída com a prova do lançamento definitivo do crédito tributário:
“Na espécie sequer se discute a falta de prova do crime antecedente, mas, ao contrário, certa é a inexistência do crime, pois indispensável à configuração do delito de sonegação tributária é a prévia constituição definitiva do tributo.
Sem crime antecedente, resta configurado o constrangimento ilegal na persecução criminal por lavagem de dinheiro.
(RHC n. 73.599/SC, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 20/9/2016.)
Essa mesma interpretação é aplicada para a denúncia por lavagem de dinheiro lastreada em crime antecedente de descaminho, pois o descaminho - fraude no pagamento de tributo -, que também é considerado crime contra a ordem tributária, presume a existência de lançamento definitivo do crédito fiscal. Assim, como a lavagem de dinheiro deduz a existência de infração penal antecedente, e a caracterização definitiva do descaminho é amparada em decisão terminativa fiscal, se a denúncia é oferecida sem a constituição definitiva do crédito tributário, a instrução jurisprudencial do STJ considera ilegal a persecução criminal.
No julgamento do HC 137.628/RJ, relator Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador Convocado do TJ/CE), Sexta Turma, julgado em 26/10/2010, DJe de 17/12/2010, foi determinado o trancamento de ação penal deflagrada sem a constituição definitiva do crédito tributário. Confira a ementa do referido precedente:
“A Sexta Turma desta Corte firmou o entendimento de que o tratamento conferido aos delitos previstos no art. 1º da Lei nº 8.137/1990 deve também ser aplicado ao descaminho, por se tratarem todos, em última análise, de crimes contra a ordem tributária.
Se na data do oferecimento da denúncia não havia se encerrado o processo administrativo fiscal falta condição objetiva de punibilidade exigida pelo tipo penal, devendo ser trancada a ação penal que apura o descaminho, sem prejuízo de que nova denúncia seja oferecida após o trânsito em julgado na esfera administrativa e a respectiva constituição definitiva do crédito tributário.”
Essa mesma interpretação vale para a apuração do crime de lavagem de dinheiro fundamentado no delito antecedente de apropriação indébita previdenciária, pois, por se tratar de delito que exige resultado naturalístico para a sua adequação típica, e o suposto dano à Previdência Social só poderá ser aventado após o encerramento do processo administrativo fiscal, caso a denúncia pelo crime de lavagem de dinheiro seja apresentada sem o lançamento definitivo do crédito tributário (delito antecedente), restará caracterizado abuso na persecução criminal, o que viabilizará a propositura de remédio constitucional para o estancamento do arbítrio do Estado:
“Nos termos do entendimento recente da Suprema Corte, os crimes de sonegação e apropriação indébita previdenciária também são crimes materiais, exigindo para sua consumação a ocorrência de resultado naturalístico, consistente em dano para a Previdência.
No caso dos autos, constata-se o constrangimento ilegal, tendo em vista que o processo administrativo, no qual se imputou a existência de débitos tributários, ainda não havia chegado ao seu termo final, quando da instauração do inquérito policial para apurar a prática do suposto delito.
(HC n. 96.348/BA, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 24/6/2008, DJe de 4/8/2008.)
Por derradeiro, importante destacar que, nos termos do artigo 9º, §2º, da lei 10.684, de 30 de maio de 2003, a justa causa para o início da persecução penal dependerá da falta de pagamento do débito fiscal apurado. Ou seja, findo o processo fiscal que apurou e lançou definitivamente o crédito tributário, caso o sujeito passivo faça o pagamento integral da dívida haverá a extinção da punibilidade, o que inviabilizará a persecução criminal pelo delito de lavagem de dinheiro:
“§ 2o Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.”
Portanto, ainda que a investigação criminal por crime de lavagem de dinheiro possa ocorrer com base em indícios da infração penal antecedente, quando a apuração é baseada exclusivamente em crimes contra a ordem tributária, a decisão terminativa da autoridade tributária é o requisito objetivo que justificará esse tipo de apuração penal.
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Lei nº. 9.613, de 3 de março de 1998.
Decreto-Lei nº. 2848, de 7 de dezembro de 1940.
Lei nº. 8.137, de 27 de dezembro de 1990.
Lei nº. 10.684, de 30 de maio de 2003.
RHC n. 73.599/SC, relator Ministro Nefi Cordeiro, Sexta Turma, julgado em 13/9/2016, DJe de 20/9/2016.
HC n. 137.628/RJ, relator Ministro Haroldo Rodrigues (Desembargador Convocado do TJ/CE), Sexta Turma, julgado em 26/10/2010, DJe de 17/12/2010.
HC n. 96.348/BA, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 24/6/2008, DJe de 4/8/2008.
CC n. 155.351/GO, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 22/2/2018, DJe de 28/2/2018.
PET no Inq n. 583/PR, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Corte Especial, julgado em 4/11/2015, DJe de 16/2/2016.
HC n. 42.909/SC, relator Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, julgado em 22/3/2012, DJe de 18/4/2012.
RHC n. 25.228/RS, relator Ministro Nilson Naves, Sexta Turma, julgado em 27/10/2009, DJe de 8/2/2010.
HC n. 67.415/ES, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 15/9/2009, DJe de 28/9/2009.
RHC n. 24.049/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 16/12/2010, DJe de 7/2/2011.
AgRg no REsp n. 1.972.476/PE, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 6/3/2023, DJe de 10/3/2023.