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A violência patrimonial doméstica e a necessária revogação das escusas absolutórias. Imediata aprovação do PL 3.764-B/04

Faz-se urgente e necessária a aprovação do mencionado Projeto para a verdadeira efetividade da lei Maria da Penha, mais especificamente em relação aos crimes patrimoniais praticados contra a mulher sem emprego de violência, razão desse estudo acerca das escusas absolutórias, previstas e mantidas de forma incongruente em nosso ordenamento jurídico.

7/7/2023

Histórico

Intenso debate jurisprudencial e doutrinário vem se apresentando sobre a interpretação da eficácia das escusas absolutórias previstas nos arts. 181 e 182 do CP. A imunidade aos crimes patrimoniais de violência doméstica e familiar é incoerente com a perspectiva de gênero que deve se impor ao sistema normativo brasileiro com a ratificação pelo Brasil da Convenção de Belém do Pará, desde 1995. Além disso, o próprio controle de convencionalidade, inafastável diante do compromisso jurídico brasileiro com o sistema interamericano de proteção de direitos humanos já paralisa a eficácia de normas infraconstitucionais incompatíveis com tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil. Ademais, a lei 10.741/03 – Estatuto do Idoso – excluiu expressamente em seu art. 95 as escusas absolutórias.

A interpretação dada à lei Maria da Penha – lei 11.340/06 – também deve impor o afastamento da aplicação de tais escusas, todavia, por não ter trazido expressamente em seu bojo a determinação da revogação das imunidades do CP e por não ser possível analogia em prejuízo do réu, a jurisprudência tem garantido a incidência das imunidades.

Em uma interpretação sistêmica e teológica do direito, considerando o controle de convencionalidade, compreende-se adequado o afastamento de normas divorciadas da inafastável perspectiva de gênero no sistema de justiça brasileiro, agora consagrado pela Resolução 492, publicada em 17.3.23, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que torna obrigatória a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero para todo o Poder Judiciário. O documento é mais um instrumento que visa alcançar a igualdade de gênero, Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS 5 da Agenda 2030 da ONU, à qual se comprometeram o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça.

Cronologia do Projeto

O Projeto de lei 3.764/04, de autoria do então Deputado Coronel Alves, foi apresentado incialmente em 9/6/04, com a seguinte ementa: “Dá nova redação ao art. 182 e revoga-se o art. 181 do decreto lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal”.

A proposição foi sujeita à Apreciação do Plenário, obtendo o encaminhamento à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (Mérito e Art. 54, RICD) em regime de tramitação ordinária, em 02.07.04.

No entanto, o PL tão somente foi encaminhado pelo presidente da Câmara Federal, Arthur Lira, ao Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, em 9.3.22. Sua proposta de redação final seguiu no Projeto de lei 3.764-B de 2004, visando a alteração do art. 182 e revogação do art. 181 do Decreto, exatamente como a proposta inicial de 2004.

Em quase 20 anos de tramitação, o PL recebeu parecer do relator em 14.12.04. Em seu voto, o então deputado Antonio Carlos Magalhães Neto votou pela constitucionalidade, juridicidade e técnica legislativa, e quanto ao mérito, pela sua aprovação, na forma do substitutivo apresentado. Justificou a necessidade de se findar a impunibilidade para quem comete crime contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal, ou em detrimento de ascendente ou descendente, seja o parentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ou natural. Definiu de acordo com a doutrina civilista o parentesco legítimo como aquele decorrente do casamento; o ilegítimo, referindo-se à relação entre pais e filhos havidos fora do casamento. Definiu o parentesco natural, como sendo consanguíneo; o civil, o decorrente da adoção. Ponderou que os crimes mais comuns são os do marido que subtrai um bem da esposa, na constância do casamento; o filho que se apropria de um bem do pai ou o neto que furta um objeto do avô. Rememorou a lição de Nélson Hungria na obra “Comentários ao Código Penal” (pág. 324 e seguintes) sobre a impunibilidade absoluta, afirmando que o art. 181 do Código Penal a adotou “por motivos de ordem política”, considerando “o interesse de solidariedade e harmonia no ciclo da família”, que seria uma preocupação dominante nas legislações penais de então. Pondera ao final que “a mobilidade social impôs e vem impondo, ao longo dos anos, novos padrões de comportamento, que influenciaram e continuam influenciando a constituição e a forma de agir das famílias. São movimentos reconhecidos, aceitos e absorvidos pela legislação e pelas decisões dos tribunais”.

O relator descreve a evolução do direito brasileiro pela transmutação de conceitos na órbita familiar, enfatizando que a Constituição de 1988 (arts. 226 §§ 3º. 4º e 5º e 227, § 6º) reconhece novas formas de entidade familiar, além da tradicional, formada à sombra do casamento; considera família a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes; consagra a igualdade de tratamento entre o homem e a mulher, assim como os mesmos direitos entre os filhos, não importa sua origem. Rememora que o Código Civil, que entrou em vigor em janeiro de 2003, referendou as bases dessa nova realidade social já absorvida pela Carta Magna, utilizando a expressão “poder familiar” em substituição ao arcaico “pátrio poder”. Enfatizou a supressão da escusa absolutória do art. 181 do CP pelo Estatuto do Idoso (lei 10.471, de 2003): “desse modo, a proteção do direito do idoso torna-se mais relevante do que uma hoje discutível política de solidariedade e harmonia no ciclo familiar”.

Em 29.11.06, o parecer da Comissão de Justiça e Cidadania opinou unanimemente pela constitucionalidade, juridicidade, técnica legislativa e, no mérito, pela aprovação, com substitutivo, do Projeto de lei 3.764/04, nos termos do Parecer do Relator.

Então o Projeto hibernou por quase 16 anos, quando muitas e muitas outras novidades foram introduzidas no sistema jurídico pátrio em razão de outras tantas exigências da sociedade contemporânea brasileira.

Assim, em 09.03.2022, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto e o encaminhou ao Senado com essa redação:

Art. 1º Esta lei altera o art. 182 e revoga o art. 181 do decreto-lei  2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).

Art. 2º O art. 182 do decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:

“Art. 182. ..............................

  1. do cônjuge, na constância da sociedade conjugal ou judicialmente separado;
  2. (revogado); III - de ascendente, descendente e colateral até o 3º grau civil.”(NR)

Art. 3º Ficam revogados os seguintes dispositivos do decreto-lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal):

  1. art. 181;
  2. inciso II do caput do art. 182”.

Opinião conclusiva

O presente texto serve para alertar sobre a imensa antinomia existente entre a LMP e o CP vigente, especialmente no que diz respeito ao seu artigo 181, que trata das hipóteses de imunidades que isentam de pena o agente quando o delito patrimonial não perpetrado com violência ou grave ameaça for praticado em prejuízo do cônjuge, na constância da sociedade conjugal.

De acordo com o artigo 181, o fato não perde sua ilicitude, mas impede a aplicação de pena às pessoas eleitas pelo legislador, de modo que crimes como o dano, o furto, o estelionato, a apropriação indébita, estariam acobertas pelas imunidades do CP, havendo punição tão somente aos crimes patrimoniais cometidos com violência ou grave ameaça – quando então não seria aplicada a LPM propriamente dita, mas o CP.

Como ponderado, o Estatuto do Idoso (lei 10.741/03) foi expresso em seu texto legal, afastando a aplicação das imunidades do CP nos crimes praticados contra idosos por parentes, o que infelizmente não foi observado pelo legislador da LMP.

Acredita-se que a mensagem do legislador na edição da LPM é da proteção integral à mulher, vítima de violência doméstica, familiar ou em relação íntima de afeto, portanto, poder-se-ia sustentar a derrogação tácita dos dispositivos 181 e 182 do CP. Ademais, a efetividade da norma especial está totalmente comprometida diante da isenção de pena, trazendo a sensação de total impunibilidade – uma das principais causas do aumento e perpetuação das agressões contra a mulher.

Sem perder de vistas outros critérios interpretativos para a solução de antinomias, não há como negar que a exclusão da norma conflitante, via Poder Legislativo, é a mais apropriada para a solução do problema em questão.

Por essa razão, deve-se dar a necessária atenção ao PL 3764-B/04, que visa revogar a isenção de pena do art. 181 e dar nova redação ao art. 182, ambos do CP. Tal proposta antecede à promulgação da LMP, diante da necessidade de uma renovação legislativa quanto às escusas absolutórias, conforme a justificativa da proposta: “para melhor adequar o texto à realidade brasileira e não beneficiar o parente que pratica a infração contra a própria família”.

Vale registrar que o PL ficou estagnado por quase 2 décadas. Na data de 8.3.22, no entanto, o Substitutivo ao Projeto de lei 3.764/04 da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania foi aprovado. Desde então, o PL 3.764-B/04 foi encaminhado ao Senado Federal e encontra-se atualmente – desde 20.3.23 – aguardando designação de relator na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.

Faz-se urgente e necessária a aprovação do mencionado Projeto para a verdadeira efetividade da LMP, mais especificamente em relação aos crimes patrimoniais praticados contra a mulher sem emprego de violência – objeto desse estudo acerca das escusas absolutórias destacadas, previstas e mantidas de forma incongruente em nosso ordenamento jurídico.

Flávia Pereira Ribeiro
Pós-doutora pela Universidade Nova de Lisboa. Doutora e mestre em Processo Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Imobiliário Empresarial pela Universidade Secovi/SP. Membro do IBDP, da ABEP, do CEAPRO e do IASP. Idealizadora da tese da "desjudicialização da execução civil" que é referência ao PL 6.204/2019/SN. Sócia do escritório Flávia Ribeiro Sociedade de Advogados.

Graziela Reis
Doutoranda em Integração da América Latina - USP. Mestre em direito pela UCB. Graduada em direito pela UEL. Coordenadora do projeto direito e gênero- UFT. Pesquisadora no Nupedelas e NETI USP. Professora adjunta na UFT. Advogada.

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