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A arbitragem artesanal e a business arbitragem

Enfim, há muito o que se considerar e se reconsiderar na seara arbitral, sendo o bom juízo o melhor remédio, seja na arbitragem artesanal ou na business arbitragem.

1/7/2023

Se dizia antigamente que o mundo girava e a Lusitano rodava, um mote publicitário da então principal empresa de mudanças do país. Mudanças são um fenômeno geral, que atingem o planeta em si mesmo, como também todas as áreas da atividade humana. Se a arbitragem nasceu em passado distante como uma atividade artesanal – e assim ainda hoje sobrevive – cada vez mais tem sido dado lugar àquela que podemos chamar de business arbitragem, ou seja, a arbitragem exercida como empresa (no sentido organizacional).

Vamos deixar bem claro, o termo business por mim utilizado tem o sentido empresarial, ou seja, referido a uma organização especializada que maximiza os seus recursos na busca do fim colimado. Não se trata, evidentemente de qualquer referência a um tipo de comércio, considerando-se que no nosso ordenamento jurídico o exercício da advocacia não pode ser dar a esse título, observando que a realidade de países da common law é diversa. Por exemplo, na Inglaterra, nos Estados Unidos da América e na Austrália a advocacia é considerada atividade empresarial, o que chega ao ponto de que sociedades desse ramo são companhias abertas com valores mobiliários negociados nas bolsas de valores. Nesses países opera um pragmatismo e uma aderência à realidade que não conhecemos. Afinal de contas, como organização não há diferença entre uma indústria e um escritório de advocacia que internamente mantém os mesmos departamentos (vendas, financeiro, contabilidade, pessoal, administração, etc.). Aqui no Brasil vivemos em um mundo jurídico organizacional do faz-de-conta, considerando-se que, parafraseando uma famosa frase em outro contexto, no creo em abogados empresarios, pero que existen, existen.

Sabemos que a arbitragem tem por finalidade a solução de controvérsias no plano dos direitos patrimoniais disponíveis, entre nós nos termos da lei 9.307/96 - LAB - a cargo de árbitros privados, livremente escolhidos pelas partes, que exercem as suas funções na qualidade de pessoas revestidas do poder judicante como se juízes togados fossem (art. 18).

A função pode ser exercida por árbitro único ou por um tribunal arbitral em número ímpar de membros, o que se tem convencionado para que fique afastada a possibilidade de empate na decisão.

Uma das vantagens do árbitro artesanal está no nível do seu pretendido maior engajamento pessoal e direto em relação ao caso sob a sua tutela – o que é tese e não dogma -, não contando o recurso a outras pessoas com as quais faça a distribuição de suas funções, exceto uma estrutura mínima, como um secretário, sendo terceirizadas a maioria das necessidades do seu escritório. Nada impede que esse árbitro se valha de assessores, mas jamais a eles é delegada alguma atribuição que não seja a de auxiliares, mesmo que eventualmente qualificados.

Já na business arbitragem a função arbitral fica a cargo de um complexo de pessoas que reúnem os seus esforços para o fim do estudo do caso em seus diversos aspectos, sendo obrigatório centralizar no árbitro indicado pelas partes, todo o rol dos fatos, informações e conhecimentos. Esse tipo de arbitragem é exercido sob três modalidades:  o árbitro: (i) integra um escritório de advocacia que exerce tão somente a função arbitral; (ii) faz parte de um escritório de advocacia que atua em diversas áreas, nele havendo um departamento de arbitragem; e (iii) se especializa nessa área em uma situação intermediária, consistente na existência de boutiques jurídicas, apropriando-se um termo do comércio, indicativo de uma organização de pequeno porte, dotada de poucos profissionais, geralmente a cargo de uma conhecida cabeça arbitralista. Nesses casos a atividade dessas organizações se aproxima mais daquela do árbitro artesanal, mas que pode evoluir para a business arbitragem.

Uma característica da atividade empresarial é a da assunção inelutável de certo nível de risco, ou seja, ela pode dar certo com a produção de lucros ao longo do tempo, mas ela pode dar errado, ocorrendo prejuízo o qual, no seu resultado mais grave, pode levá-la à quebra. O mesmo acontece na business arbitragem, pois a sua sobrevivência como organização depende da existência e da manutenção proveitosa do seu mercado, significando dizer que é essencial a aquisição e a manutenção de uma clientela apta a gerar receita superior à despesa, alcançando os lucros esperados. Esse risco é diluído quando tal tipo de arbitragem é exercido dentro de uma organização dotada de diversos departamentos jurídicos, no sistema de um por todos, todos por um, isto é, os rentáveis ou mais rentáveis sustentam os menos rentáveis e até mesmo os que dão prejuízo, mesmo assim mantidos dentro de uma política de atendimento abrangente aos clientes. O mesmo risco acontece na arbitragem exercida sob o modelo da boutique jurídica, apenas em menor proporção, mas com os mesmos efeitos possíveis, positivos ou negativos.

O risco de que se trata pode agravar-se na medida em que um número maior de profissionais se dedique à arbitragem – o que tem efetivamente acontecido -, aumentando-se dessa forma o nível de concorrência nesse mercado. A situação não se denotará como preocupante se esse mercado crescer proporcionalmente, abrindo-se espaço para a chegada de novos agentes sem a perda de clientela para os que nele já atuam. Do lado dos novos agentes, apresenta-se a situação relativa à barreira de entrada da qual fala a economia, ou seja, a dificuldade de se avançar com sucesso sobre a clientela das organizações que já atuam há bastante tempo. Outro fator é relacionado com a provável perda que estaria em andamento quanto ao recurso a arbitragem em favor do Judiciário, devido a diversos fatores internos e externos, segundo um processo de desencanto quanto à arbitragem, cuja análise está fora dos objetivos deste texto.

No tocante à arbitragem artesanal, no mais das vezes o árbitro a exerce em meio a outras atividades advocatícias, contenciosas e/ou consultivas, as quais mantém a sua integridade financeira. E em qualquer desses três modelos pode o profissional ser convidado a dar pareceres, o que sempre é feito em caráter personalíssimo, independente de ligação com a organização à qual pertence, mas sujeito o agente às situações de revelação, de suspeição e de impedimento.

No tocante aos pareceres abre-se aqui a necessidade de um esclarecimento. Eles podem ser solicitados quanto a uma questão puramente relacionada ao processo arbitral, mas em muitos casos quanto a algum aspecto do direito material envolvido no caso. A primeira hipótese pode demandar – mas não necessariamente – certo nível de conhecimento especializado, do qual são senhores os árbitros profissionais, aqueles experientes em lides dessa natureza que correm na maior parte dos casos sob a jurisdição de uma câmara de arbitragem. Mas quanto ao direito material, não há monopólio arbitral que faça com que somente um profissional dedicado a essa área possa dar conta do trabalho que lhe é solicitado, mas aberto a todos os juristas que sejam competentes nos setores de direito material exigidos para os pareceres que forem demandados.

Aqui é necessário abrir nova vertente sobre a pretensa existência de especialidades arbitrais no plano do direito material, como tem acontecido com a chamada arbitragem societária. Nesses casos, do ponto de vista subjetivo uma ou as duas partes são sociedades, empresárias ou não. E sob o viés objetivo, a questão a ser dirimida diz respeito a alguma área do direito societário. Mas nessas situações não se nota qualquer diferença entre ser a lide dirimida por um tribunal arbitral ou pelo Judiciário. Afinal de contas, de que se trata? Vejamos possibilidades exemplificativas a respeito da querela, entre outras:

  1. Ela se estabelece entre pessoas naturais, tendo por objeto a disputa sobre a titularidade das quotas de uma sociedade limitada ou das ações de uma companhia;
  2. Tem lugar entre partes, sendo as duas ou uma delas uma sociedade e o objeto é uma disputa sobre uma marca;
  3. Acontece entre partes, sendo uma delas uma sociedade e a controvérsia diz respeito ao pedido de anulação de uma assembleia geral.

Não há diferença ontológica presente que mereça dar nascimento a esse tipo de especialidade, ou seja, a arbitragem societária, o que seria apenas um modismo inconsistente, um tipo de murmúrio arbitral1, causado por ondas de declarações sequencialmente contínuas, que se originam a partir de uma concepção juridicamente inadequada, ondas que se espalham para todos os lados do mundo jurídico, sem que a consistência do seu nascimento sofra qualquer crítica. Quanto a elas não existe a dúvida metódica de Descartes, mas a ocorrência de um eco infindável de manifestações vazias de verdadeiro conteúdo jurídico. Mero repeteco.

E destaque-se que a natureza jurídica das sociedades é a do contrato, na subespécie de ser aberto, associativo e com a possibilidade da participação de duas ou mais partes. A contrapartida é a dos contratos fechados, sinalagmáticos (de prestações contrapostas) e com número de partes limitada a duas. Portanto, a chamada arbitragem societária está no campo contratual e, por via regressiva, no do negócio jurídico e do ato jurídico, o que nos mostra indubitavelmente não existir base jurídico-científica capaz de sustentar a existência dessa nova especialidade, o que alcança por via de consequência o profissional que deverá ser competentemente chamado a participar de lide dessa natureza.

Voltando ao nosso enfoque, note-se que em um trio arbitral pode ocorrer, estatisticamente a participação de um, dois ou três árbitros artesanais, ou a mesma coisa ocorrendo com árbitros que exercem a arbitragem como business, em algumas variações possíveis, o que não afeta a natureza de julgadores, personalíssimos, quanto a cada um deles.

Indo mais adiante, sabe-se que os árbitros julgam de forma independente, formando livremente a sua convicção a partir dos elementos do processo arbitral. Nos tribunais arbitrais múltiplos opera a maioria dos votos e não havendo unanimidade, tem lugar a manifestação do voto divergente que poderá ser eventualmente utilizado para o fim de informar pedido de esclarecimentos ou ação anulatória da sentença sobre cujo mérito ou demérito não discorreremos neste momento. Nesse sentido não há qualquer diferença entre a arbitragem artesanal e a business arbitragem.

Observe-se que tanto na arbitragem artesanal como na business arbitragem a vinculação pessoal do árbitro é um fator diferencial em relação ao Judiciário, no qual pode atuar mais de um juiz no curso do processo, até o momento da prolação da sentença. Isso significa dizer que no segundo caso a estrutura organizacional do árbitro não pode ser usada para a sua substituição fortuita por terceiro no exercício do poder judicante, vinculado exclusivamente à pessoa daquele. Substituições podem ocorrer por afastamento voluntário, por doença ou mesmo como resultado de uma impugnação, mas elas são definitivas: o arbitro afastado não retorna mais à sua função. Para os árbitros não há férias remuneradas.

A business arbitragem, ainda, traz algumas consequências que não são de natureza ontológica, mas que a afetam de maneira muito mais profunda do que acontece na arbitragem artesanal, podendo ser destacados três pontos: o da revelação, o da suspeição e o do impedimento. Neste sentido, esses pontos alcançam – no limite – todas as pessoas que atuam na organização onde os árbitros exercem a sua atividade, desde deles mesmos, afetando até em linha descendente todos aqueles que a integram, tenham ou não atuação direta no processo em curso.  Ou seja, abrangem o arbitro, os sócios do escritório os associados, os advogados que ficam abaixo daqueles na linha organizacional, os para-legais, os estagiários, etc. Em tese todos eles podem ter acesso aos dados do processo e utilizá-los indevidamente.

A questão da revelação se mostra insolúvel. Qualquer que seja o critério em que deva se manifestar – quanto ao lapso temporal e a abrangência das informações prestadas pelo árbitro – ele se revelará imperfeito e consequentemente não satisfatório. Infelizmente nessa área o que se tem apurado é se construiu uma dúvida generalizada, todos duvidando de todos, abrindo-se a porta para as táticas de guerrilha. A grande pergunta está em se identificar o que seja relevante saber pelas partes a respeito da relação pessoal do árbitro com o caso em disputa. Vamos aos exemplos abaixo.

Em dado momento pregresso um jurista foi contratado por uma empresa para dar uma consulta escrita interna quanto a determinada questão, em relação à qual o sigilo é essencial, pois envolvia interesses dos quais os concorrentes não poderiam ter conhecimento. Posteriormente esse jurista é indicado para compor um painel arbitral que tem como parte a empresa que para a qual havia dado a consulta. O que fazer, revelar o fato, quebrando o sigilo interno e eventualmente prejudicando o antigo cliente ou calar-se, tendo em vista que a questão em disputa nada tem a ver com o objeto da consulta que havia sido dada?

Ainda na área dos pareceres, o tempo pode superar os fundamentos sobre os quais ele foi elaborado, até mesmo por força de mudança legislativa posterior. Além do mais, o parecerista pode rever legitimamente de opinião, o que não é incomum no Direito. Basta lembrar que Cesare Vivante, um dos maiores tratadistas italianos do Direito Comercial, alterou de forma profunda na quinta edição do seu Tratatado a sua concepção antes unitarista (em favor da unificação do Direito Privado) em favor do reconhecimento da autonomia do Direito Comercial. Se Vivante podia mudar de opinião, qualquer parecerista também pode, o que nos leva a concluir que informar a sua atuação no passado em favor de um cliente pode se revelar inócua, a não ser que se entenda estar presente a existência de algum de temor reverencial em relação àquele, ou de uma persistente dependência profissional.

Dessa forma, revelar ou não revelar é questão cuja solução tem somente um caminho menos problemático, o de se acreditar – até prova concreta em contrário - na auto declaração do árbitro, fundada no princípio da boa-fé, de que não tem relação de dependência pessoal ou profissional com qualquer das duas partes. Mas a boa-fé é uma coisa da qual muito se fala, mas que nela poucos acreditam, valendo um novel princípio, ou seja, todos são de má-fé, mesmo diante de prova em contrário.

Nos escritórios de advocacia que exercem atividades múltiplas, poder-se-ia pensar em uma redução na qualidade e no número das pessoas em posição sensível pelo estabelecimento da muralha chinesa, que segregaria o departamento de arbitragem dos demais. Contudo, para ser eficaz plenamente eficaz, a separação funcional não poderia permitir uma mobilidade interna entre integrantes da organização, de qualquer nível, enquanto durasse o processo arbitral. Na verdade, enquanto transcorressem todos aqueles feitos em curso na referida organização. Até o sistema de comunicações, de maquinas copiadoras, de dependências, etc. deveriam ser separados, o que é absolutamente impraticável.

E nessa área todo cuidado é pouco, sabendo-se que impugnações sobre a independência de árbitros têm sido feitas dentro das conhecidas táticas de guerrilha, não sendo lenda arbitral urbana acusações fundadas na alegação de que um árbitro e o advogado de uma das partes são professores na mesma faculdade de direito e que, na hora do cafezinho, conversaram sobre o processo. Ou que se sentaram vizinhos nas poltronas de um avião quando se dirigiam para o mesmo congresso jurídico. Este autor já passou por acusações desse tipo e sabe que outros árbitros também as enfrentaram. Mesmo rejeitada a impugnação, o desgaste é grande e muitos dos acusados simplesmente têm se afastado voluntariamente de casos em que atuam.

Enfim, há muito o que se considerar e se reconsiderar na seara arbitral, sendo o bom juízo o melhor remédio, seja na arbitragem artesanal ou na business arbitragem.

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1 Fazendo-se aqui a assemelhação desse fenômeno arbitral com o murmúrio cósmico descoberto pela Física, provocado por ondas gravitacionais que reverberam pelo universo na confirmação de uma teoria de Einstein (cf. “Detectado ‘murmúrio cósmico’ que confirma teoria de Einstein”, jornal “O Estado de São Paulo” de 30.06.2023.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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