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Imunidade tributária do ITBI interpretada à luz do julgamento do tema 796 do STF

Há também situações em que a lei não consegue atingir seus objetivos, seja por falta de clareza em sua redação, seja pela pluralidade de entendimentos e interpretações próprias da hermenêutica jurídica.

29/6/2023

O Direito Tributário é campo denso e complexo. Comumente processos judiciais contendo lides de natureza tributária tramitam por mais tempo do que o habitual. Da mesma forma, no Poder Legislativo, projetos de lei que tratam de matérias tributárias costumam provocar intensos debates, demandar muita negociação política e tramitar no Congresso Nacional por longos períodos, notadamente porque, na grande maioria das vezes, criam regras fiscais que, na prática, representam aumento ou diminuição da carga tributária paga pelos contribuintes e, de outro lado, majoram ou reduzem as receitas dos entes federativos.

Há também situações em que a lei não consegue atingir seus objetivos, seja por falta de clareza em sua redação, seja pela pluralidade de entendimentos e interpretações próprias da hermenêutica jurídica. Via de consequência, surgem mais processos judiciais e mais projetos legislativos, criando um verdadeiro ciclo infinito de debates no seio de uma sociedade que vive sob perspectiva e proteção do Estado Democrático de Direito.

Pois bem. A matéria tratada neste artigo, de natureza tributária, não foge a essa regra.  

Duas questões polêmicas e extremamente relevantes vêm provocando grandes discussões entre contribuintes e municípios de todo o país. Estamos falando da imunidade tributária do Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis por Ato Inter Vivos (ITBI), inserida no art.156, §2º, I, da Constituição da República de 1988 como uma verdadeira Política de Estado que vem sendo flagrantemente desrespeitada por um bom número de administrações fazendárias municipais.

De um lado, a Carta Magna consigna um benefício fiscal de grande relevância para os contribuintes - já tão penalizados pela alta carga tributária brasileira vale dizer -, de outro, municípios buscam meios de restringir e/ou até mesmo impedir contribuintes de exercerem o direito constitucional garantido no dispositivo antes referido.

Isso porque diversos municípios - não todos vale frisar - diante de operações que envolvem incorporação de bens ou direitos imobiliários ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, passaram a adotar uma postura no sentido de exigir o pagamento do ITBI quando constatada diferença entre o valor de mercado e o valor constante da Declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física relativamente ao bem imóvel utilizado pelo contribuinte para integralização do capital social de sociedade da qual seja sócio.

Com aparente razão, grande parte dos operadores do direito vêm criticando veementemente a postura dos municípios que, ao que tudo indica, surgiu a partir de uma interpretação extensiva da redação do acórdão lavrado por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 796.376, intitulado Tema 796 do Supremo Tribunal Federal - que tratou da aplicação da imunidade tributária inserta no art.156, §2º, I, da Constituição da República de 1988 -, com a nítida intenção de gerar aumento de receitas, denotando a prática de um ato administrativo abusivo, merecedor de ampla repreensão da sociedade, porquanto contraria flagrantemente importante Política de Estado estampada pela Assembleia Nacional Constituinte de 1988.

Mas não é só. No contexto do julgamento do Tema 796, uma segunda questão, não menos relevante, vem sendo amplamente debatida entre os operadores do direito: Afinal, qual o alcance da imunidade tributária estabelecida no art.156, §2º, I, da Constituição da República de 1988?

É cediço que a norma posta em evidência contém exceções inseridas na parte final do inciso I que, por questões didáticas, vamos chamar de atividades imobiliárias ao longo deste artigo. Mas, enfim, tais exceções seriam condicionantes aplicáveis em todas as hipóteses ou estariam restritas à segunda parte do dispositivo que trata das transmissões “de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica”? Em outros termos, estaria a imunidade do ITBI condicionada ou incondicionada ao não exercício de atividades imobiliárias preponderantes a serem apuradas de acordo com a norma do art.37, §2º, do Código Tributário Nacional?

Por óbvio que os municípios direcionam seu entendimento no sentido de ser a imunidade do ITBI condicionada ao não exercício de atividades imobiliárias, restringindo ao máximo o benefício constitucional e, via de consequência, ensejando notável aumento de suas receitas.

Diante desse cenário, entendemos que o julgamento posto em evidência merece análise pormenorizada no intuito de identificar se as pretensões municipais suso referidas encontram amparo na decisão do Tribunal Constitucional, e até mesmo se a concessão total da imunidade tributária do ITBI no ato de integralização de bem imóvel para realização do capital social de pessoa jurídica poderia caracterizar renúncia de receita nas avaliações das contas municipais efetuadas pelos Tribunais de Contas.

O objetivo deste estudo consiste, portanto, em identificar se as posturas dos fiscos municipais, no sentido exigirem o pagamento do ITBI no momento da transferência da titularidade de bem imóvel para integralização de capital social pelo sócio de pessoa jurídica, encontram amparo no contexto do julgamento do Tema 796 do STF ou se devem ser caracterizadas como abuso de direito passível de impugnações administrativas e judiciais por parte dos contribuintes.

IMUNIDADE TRIBUTÁRIA DO ITBI COMO POLÍTICA DE ESTADO

Antes de adentrar ao tema da imunidade tributária do ITBI como Política de Estado, entendemos que o momento comporta uma breve distinção dos institutos da não incidência, isenção, anistia e imunidade tributária, porquanto tais figuras jurídicas representam relevantes exceções legais à regra geral da obrigação tributária, haja vista que desobrigam os contribuintes do dever de recolhimento de determinados tributos em situações específicas.

Tem-se a não incidência de um determinado tributo quando não for possível promover a subsunção do fato concreto à norma tributária.

Na precisa lição de Neves da Silva (2007. p.263):

Paralelamente ao fenômeno da incidência, encontra-se a figura da não-incidência. Esta se consubstancia naqueles fatos semelhantes aos colhidos pelo legislador na hipótese de incidência, mas aos quais, por vontade desse, não foi dada relevância jurídica. Por conseguinte, em ocorrendo, por não terem a natureza jurídica do fato gerador, inexistirá efeito tributário. São simples fatos econômicos. É a não-incidência pura e simples, na denominação de Souto Maior Borges.

A isenção ocorre quando a lei expressamente dispensa o contribuinte da obrigação do pagamento de determinado tributo, caracterizando-se, inclusive, como uma das hipóteses de exclusão do crédito tributário, conforme a regra do art. 175 do Código Tributário Nacional1.

O art. 176 do CTN estatui que “a isenção, ainda quando prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua concessão, os tributos a que se aplica e, sendo caso, o prazo de sua duração”. Portanto, a isenção estabelece uma espécie de competência negativa, na medida em que impede o ente federativo de exercer seu poder de tributar por força de lei.

Na mesma obra, Neves da Silva (2007. p.265) explica que:

“Isenção é o favor fiscal concedido por lei, que consiste em dispensar o pagamento de um tributo devido. É importante fixar bem as diferenças entre não-incidência e isenção: tratando-se de não-incidência, não é devido o tributo porque não chega a surgir a própria obrigação tributária; ao contrário, na isenção o tributo é devido, porque existe a obrigação, mas a lei dispensa o seu pagamento” (Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de legislação tributária, ed. Póstuma, São Paulo, Resenha Tributária, 1975, p. 97).

Já a anistia, também elencada como uma das hipóteses de exclusão do crédito tributário pelo art. 175 do CTN, implica numa espécie de perdão do legislador relativamente às infrações cometidas pelo contribuinte em momento anterior à lei que a concede (art. 180 do CTN)2.

Nessa linha de raciocínio, Kiyoshi Harada (2017. p.667) destaca o seguinte:

A anistia, no passado, era medida de clemência que, por razões de Estado, isentava de culpa ou do cumprimento da pena os agentes de crimes de natureza política. Hoje, alcança quase a generalidade dos crimes, inclusive as infrações de natureza tributária. No Direito Tributário, a anistia extingue a punibilidade das infrações fiscais, vale dizer, exclui a dívida penal tributária. Não abarca o crédito tributário decorrente de obrigação principal, que surge com a ocorrência do fato gerador, mas tão só aquele oriundo de infrações praticadas anteriormente à vigência da lei que a concede, como se depreende do expresso dispositivo do art. 180 do CTN.

A imunidade tributária, por sua vez, corresponde a uma desobrigação do pagamento de determinado tributo por força de regra permissiva expressa e exclusivamente estabelecida na Constituição da República.

Considerando que a Constituição é a lei Maior do Estado Democrático de Direito, correta é a afirmação de que o instituto da imunidade possui força especial e se posiciona até mesmo acima das regras de não incidência, isenção e anistia, não podendo o ente federativo, ainda que exclusivamente competente para a criação e arrecadação do tributo, em hipótese alguma criar disposição em sentido contrário.

Conforme ensina Leandro Paulsen (2017. p.109):

As regras constitucionais que proíbem a tributação de determinadas pessoas, operações, objetos ou de outras demonstrações de riqueza, negando, portanto, competência tributária, são chamadas de imunidades tributárias. Isso porque tornam imunes à tributação as pessoas ou base econômicas nelas referidas relativamente aos tributos que a própria regra constitucional negativa de competência especifica. (destaques no original).

A propósito, a matéria encontra-se diretamente relacionada às condutas dos fiscos municipais consignadas no presente estudo, haja vista que o art.156, §2º, I, da Constituição da República3, contempla regra cristalina no sentido de conferir imunidade tributária do ITBI relativamente ao contribuinte pessoa física que optar por incorporar bens ou direitos ao patrimônio de pessoa jurídica em realização (integralização) de capital social, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil, ou seja, atividades imobiliárias

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1 Art. 175. Excluem o crédito tributário:

I - a isenção;

II - a anistia.

Parágrafo único. A exclusão do crédito tributário não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias dependentes da obrigação principal cujo crédito seja excluído, ou dela consequente.

2 Art. 180. A anistia abrange exclusivamente as infrações cometidas anteriormente à vigência da lei que a concede, não se aplicando: 

I - aos atos qualificados em lei como crimes ou contravenções e aos que, mesmo sem essa qualificação, sejam praticados com dolo, fraude ou simulação pelo sujeito passivo ou por terceiro em benefício daquele;

II - salvo disposição em contrário, às infrações resultantes de conluio entre duas ou mais pessoas naturais ou jurídicas.

3 Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:

II - transmissão "inter vivos", a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

§ 2º O imposto previsto no inciso II:

I - não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil;

Bruno Rua Baptista
Procurador da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo. Advogado especializado em Planejamento Patrimonial e Sucessório da Família.

Rafael Tadeu Molino Moreira
Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC). Pós-graduado em direito civil pelo Centro Universitário do Espírito Santo (UNESC), sob orientação do Prof. José Maria Leoni Lopes de Oliveira. Pós-graduado em direito tributário pela Faculdade Getúlio Vargas (FGV). Advogado sócio do escritório Molino & Rua Sociedade de Advogados.

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