Uma das áreas mais sofisticadas do direito, sem sombra de dúvidas, é a que trata do mercado de capitais e mercado financeiro, haja vista que essa área se estrutura dentro do direito comercial e direito administrativo, demandando conhecimento interdisciplinar além do direito, como o campo da administração pública e economia.
Os mercados de capitais e financeiro se baseiam na movimentação e alocação de recursos econômicos. Apesar disso, ainda é uma área do direito que tende a ser muito elitizada e com isso alguns conceitos e entendimentos são tidos de forma equivocada.
O mercado de capitais, por exemplo, é tido como o segmento “em que são criadas as condições para que as empresas captem recursos diretamente dos investidores, através da emissão de instrumentos financeiros”,1 que não está errado, contudo, limitar o mercado de capitais a somente oferta e compras de títulos que permitam o financiamento de uma companhia aberta é um equívoco, pois nesse mercado também se opera outros produtos além de ações e dívidas emitidas por companhias. No mercado de capitais, por exemplo, também se operam derivativos, títulos de securitização, transações com fundos de investimentos etc.
No Brasil, basicamente, há três leis que regem a operação dos mercados de capitais e financeiro, a lei 4.595/64 que dispõe sobre instituições monetárias, bancárias e creditícias, além de criar o Conselho Monetário Nacional (“CMN”); a lei 4.728/64 que trata da organização do mercado de capitais e dá diretrizes para o seu desenvolvimento; e a lei 6.385/76 que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários, definindo, inclusive, o que são esses valores imobiliários, bem como, instituiu a famosa CVM (Comissão de Valores Mobiliários).
Sob o aspecto processual, há a lei 13.506/17, que trata dos processos administrativos sancionadores perante o Bacen e a CVM e a lei 7.913/89, que trata da ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários.
Com o objetivo de contribuir para o melhor entendimento de como funcionam e se estruturam esses mercados, neste artigo pretendemos esclarecer a distinção entre mercado de capitais e mercado financeiro, partindo de um panorama geral e, por conseguinte, um olhar mais atento ao Sistema de intermediação financeira, inclusive sob a ótica constitucional e por fim como se estrutura tal sistema.
Distinção entre Mercado financeiro e Mercado de Capitais
Apesar de ser comum haver menção desses termos como se fossem sinônimos, a verdade é que a diferenciação entre mercado financeiro e mercado de capitais aborda, principalmente, a diferença entre os agentes atuantes.
Conforme Antonio e Maysa Verzola explicam, o mercado financeiro é supervisionado pelo Banco Central, sendo que “caracteriza-se principalmente pela atuação de bancos comerciais ou bancos múltiplos, com diferentes carteiras tendo como objeto operações de crédito de gama variada, envolvendo a concessão direta ou intermediada”.2 Assim, sociedades de atividades financeiras, como bancos, cooperativas de crédito, empresas de leasing e empresas de consórcio são pertencentes ao mercado financeiro.
O Mercado de capitais, por sua vez, é regulado e supervisionado pela Comissão de Valores Imobiliários e “compreende a atuação de diferentes agentes, desde intermediadores e investidores que atuam comprando e vendendo valores imobiliários em mercados à vista ou futuro, de derivativos, através de transações cursadas em bolsa autorregulada e sujeita, como todos os agentes, à regulação oficial.”3
Tanto o mercado de capitais quanto o mercado financeiro compõem, desse modo, um sistema de intermediação, na medida que as instituições financeiras visam conectar o crédito excedente de alguém com a necessidade de um terceiro, e o mercado de capitais visa facilitar o acréscimo do capital via poupança popular.
Sistema de intermediação financeira
O porquê da existência de um sistema financeiro organizado reside na preocupação que o estado e os agentes de mercado têm na circulação de riqueza. Para explorar melhor essa ideia, vale resgatar alguns conceitos econômicos que dão azo para toda a organização de intermediação financeira e de recursos.
A economia é uma ciência que estuda a alocação de recursos mediante a escassez de recursos que ela enfrenta. Tanto é que economia é um termo de origem grega e significa “aquele que administra um lar”.4
De acordo com literatura econômica a preocupação com a alocação de recursos pode ser notada em todas as esferas de atuação, de modo tal que como uma empresa no âmbito familiar também é preciso haver decisões de onde e como aplicar as economias para que o dinheiro não seja malgasto e falte o essencial em casa.5
Entretanto, se preocupar apenas sobre a alocação recursos acaba não sendo o suficiente para que os agentes do mercado6 possam realizar as suas atividades, ainda que remanejem seus recursos com toda eficiência7. Isso porque é da natureza dos recursos serem limitados.
Nesse ínterim, ocorre de haver agentes econômicos que acabam formando poupança, que é “a parcela da renda economizada pelos agentes econômicos que não foi consumida na aquisição de bens e serviços.”8 Esses agentes se tornam superavitários e, por consequente, podem ser financiadores daqueles agentes deficitários, que não conseguiram formar ou não podem comprometer suas respectivas poupanças.
É nesse cenário o sistema financeiro ganha corpo, pois sua estrutura permite que aqueles que têm sobra possam investir suas respectivas poupanças nas demandas dos deficitários.
Essa forma de viabilização se dá através de uma série de instituições e instrumentos que viabilizam a tomada de empréstimos e financiamentos entre os agentes superavitários e os deficitários. “Essas instituições concentram a poupança e a distribuem aos tomadores de recursos, atendendo, ao mesmo tempo, as necessidades de volume financeiro e prazo de cada um”9, sendo que em cada uma dessas operações há uma remuneração para essas instituições.
Resumindo, o sistema de intermediação financeira é um conjunto de instrumentos e instituições que contribuem para um melhor fluxo financeiro entre os poupadores e aqueles que necessitam de recursos financeiros.
Sistema Financeiro sob a ótica constitucional
Quando se trata do Sistema Financeiro, sob a ótica do direito constitucional pátrio, é importante lembrar que esse sistema está abarcado pelo direito econômico, mais especificamente no que concerne à ordem econômica constitucional.
Isso é importante na medida que as matérias concernentes a nossa ordem econômica devem sempre obedecer a princípios norteadores. Esses princípios estão estabelecidos no art. 170 da Constituição Federal (“CF/88”).10
Salienta-se que, sob a ótica do direito constitucional pátrio, há dois tipos de sistema financeiro nacional, o público e o parapúblico. O público diz respeito as atividades financeiras do estado que são
“o conjunto de ações do Estado para obtenção da receita e a realização dos gastos para o atendimento das necessidades públicas” , de modo a “disciplinar a constituição e a gestão da Fazenda Pública, estabelecendo as regras e procedimentos para a obtenção da receita pública e a realização dos gastos necessários à consecução dos objetivos do Estado.”12
O que nos interessa, para o presente estudo é o parapúblico, que por sua vez, “cuida das instituições financeiras creditícias, públicas ou privadas, de seguro, previdência (privada) e capitalização.”13 Todos esses agentes contribuem para a formação e estruturação do sistema financeiro nacional.
Dentre esses agentes, os que merecem destaque, por hora, são as instituições financeiras em virtude do papel que têm em facilitar o intermédio entre os superavitários e os deficitários.
Além disso, as instituições financeiras também podem oferecer os seus recursos àqueles que procuram tomar empréstimos ou financiamento, sendo que essas instituições podem ser constituídas tanto pela iniciativa privada quanto pública. Quando de natureza pública, são empresas públicas ou sociedades de economia mista e quando se tratar de bancos, público ou de natureza privada, “constituir-se-ão unicamente sob a forma de sociedade anônima, devendo a totalidade de seu capital com direito a voto ser representada por ações nominativas.”14
Subordinam-se à disciplina do sistema financeiro nacional, além das instituições financeiras, as bolsas de valores, as companhias de seguros, de previdência e capitalização, as sociedades que efetuam distribuição de prêmios (na forma de móveis, imóveis e em dinheiro), mediante sorteio de títulos de sua emissão, e, claro, as àquelas pessoas – físicas e jurídicas – que operam com compra e venda de ações e outros valores imobiliários.15
Por mando constitucional, toda a atividade financeira parapúblico deve ser devidamente regulada pelo estado, sendo ele também o responsável pelo incentivo e planejamento na área16. Sendo assim, o sistema financeiro nacional é estruturado de forma a servir e a atender “aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram”.17
Estrutura do Sistema Financeiro Nacional
Entendido o regime jurídico do sistema financeiro sob a ótica da constituição federal, sigamos a para como funciona a sua estrutura passando pelos seus principais órgãos normativos, supervisores e operadores.
Os órgãos normativos são os responsáveis por definir e organizar as normas, políticas e diretrizes de todo o mercado financeiro. Abaixo dos órgãos normativos estão os supervisores, que são entidades governamentais e servem justamente para dar o devido enforcement do estado quanto as atividades econômicas exercidas, sobretudo no setor financeiro.18 Abaixo destes estão os operadores, que são os agentes especializados nas diversas operações do mercado financeiro.
Dentre os órgãos normativos estão o Conselho Monetário Nacional – CMN – (órgão superior do sistema financeiro nacional que trata das questões de moeda, crédito, capitais e câmbio do Brasil), o Conselho Nacional de Seguros Privados – CNSP – (órgão que dita as regras quanto aos segmentos de seguros, capitalização e previdência complementar aberta) e Conselho Nacional de Previdência Complementar – CNPC – (responsável por prescrever as regras quanto aos fundos de pensão – fundos de previdência complementar fechados).
Os órgãos os supervisores são os responsáveis por fiscalizar e regulamentar as normas elaboradas pelos órgãos normativos. Trata-se de autarquias federais e, dentre elas, estão o Banco Central do Brasil (“Bacen”, “BC” ou “BCB”),19 Comissão de Valores Imobiliários (“CVM”),20 Superintendência de Seguros Privados (“SUSEP”)21 e a Superintendência Nacional de Previdência Complementar (“PREVIC”).
Quanto aos operadores, enfim, há uma lista imensa de quem são, mas, a título de exemplo:
- o Banco do Brasil: Além de ser o Banco comercial mais antigo do Brasil (12/10/08) é um o “principal executor das políticas de crédito rural e industrial.”22;
- o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social): é um dos principais instrumentos do estado Brasileiro para fomento de atividades econômicas através do financiamento a longo prazo e investimento. Na sua estrutura constam duas entidades, o BNDES Participações, que atua no mercado de capitais, e a Agência Especial de Financiamento Industrial, que como o nome sugere, é focado no fomento da comercialização de máquinas e equipamentos.23;
- os Bancos de Investimento: são instituições financeiras especializadas em operações estruturadas para empresas, ou seja, assessoramento em operações de abertura ou fechamento de capital, estruturações de dívidas (emissões de debêntures etc.), e costumam operar prestando serviços de custódia de valores imobiliários e prestação de serviços a fundos de investimentos, como administradores e/ou gestores24;
- as Agências de Fomento: são instituições criadas por Unidades da Federação a fim de que financiem o capital de giro dos “empreendimentos que visem à ampliação ou à manutenção da capacidade produtiva de bens e serviços, previstos em programas de desenvolvimento econômico e social da Unidade da Federação onde tenham sede.”25
Sendo assim, a estrutura regulatória e operacional do sistema financeiro segue a seguinte hierarquia: órgãos normativos, supervisores e os operadores.
Conclusão
Podemos condensar dizendo que o mercado financeiro opera com instituições financeiras onde o principal objetivo é o acesso ao crédito (daí o porquê muita das vezes ser chamado de mercado bancário ou de crédito), e é regulado e fiscalizado pelo Bacen, quanto que o mercado de capitais, regulado e fiscalizado pela CVM, é uma relação entre quem presta o recurso e quem se beneficia dele (o caso de emissores de dívidas e ações). Ambos, mercado financeiro e de capitais, estão sob o guarda-chuva do ente supremo CMN.
A procura por esses mercados se dá porque temos na economia os superavitários e os que deficitários, na medida que os primeiros rentabilizam seus recursos excedentes circulando crédito e/ou capital no mercado em virtude dos juros.
Toda essa configuração é pré-estabelecida latto sensu pela CF/88 que estabelece uma série de princípios que rege a ordem econômica, permitindo assim que tais mercados possam se desenvolver e, consequentemente, contribuir para o desenvolvimento econômico do país.
O desenvolvimento dos mercados financeiro e de capitais se dá com a colaboração dos agentes desses mercados que se organizam e respondem aos agentes fiscalizadores, conforme os serviços que irão operar, tráfego de capitais ou de crédito.
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1 Mercado de valores mobiliários brasileiro / Comissão de Valores Mobiliários. 4. ed. Rio de Janeiro: Comissão de Valores Mobiliários, 2019. p. 35
2 Verzola, Antonio Carlos e Verzola, Maysa Abrahão Tavares. Mercados Financeiros e de Capitais. Regulação e Sanção Administrativa – Lei 13.506/17 comentada – BACEN e CVM. São Paulo: Quartier Latin, 2020. p. 33
3 Verzola, Antonio Carlos e Verzola, Maysa Abrahão Tavares. ob. cit. pp. 33-34
4 Mankiw, N. Gregory. Introdução à economia. [Tradução Allan Vidigal Hastings] – São Paulo: Cengage Learning, 2008. p. 4
5 Mankiw, N. Gregory. ob. cit. pp. 3-5
6 Neste momento, agentes do mercado quer dizer as empresas que demandam de recursos (dinheiro, matéria prima, mão de obra etc.).
7 Eficiência em economia significa “a propriedade que a sociedade tem de obter o máximo possível a partir de seus recursos escassos”. in Mankiw, N. Gregory. ob. cit. p. 5
8 Assaf Neto, Alexandre. Mercado financeiro – 15. ed. [2ª Reimp.]. - Barueri [SP]: Atlas, Instituto Assaf, 2023. p. 5
9 Mercado de valores mobiliários brasileiro / Comissão de Valores Mobiliários. ob. cit. p. 29
10 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I - soberania nacional; II - propriedade privada; III - função social da propriedade; IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
11 Torres, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. – 12ª ed. atual. até a publicação da Emenda Constitucional n. 45 de 8.12.2004, e a LC n° 118, de 9.2.2005, que adaptou o Código Tributário Nacional à Lei de Falências. – Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 3
12 Torres, Ricardo Lobo. ob. cit. p. 12
13 Afonso da Silva, Jose. Curso de Direito Constitucional Positivo. – 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 755
14 Art. 25 da lei 4.595/64
15 Afonso da Silva, Jose. ob. cit. p. 756
16 Art. 174, caput, da CF/88
17 Art. 192 da CF/88.
18 CF/88. Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.
19 Lei nº 4.595/64
20 Lei nº Lei 6.385/76
21 Decreto-Lei 73/66
22 Mercado de valores mobiliários brasileiro / Comissão de Valores Mobiliários. ob. cit. p. 43
23 https://www.bndes.gov.br/wps/portal/site/home/quem-somos último acesso em 02.05.23
24 Mercado de valores mobiliários brasileiro / Comissão de Valores Mobiliários. ob. cit. p. 46
25 Art. 1°, § 1º, inciso II da Resolução 2.828 do CMN.