Migalhas de Peso

Comercialização de carne cultivada no Brasil

Independentemente do impacto ambiental que a pecuária provoca (e que uma proteína alternativa, como a carne cultivada, minimizaria) existem outros aspectos éticos e sociais, que devem ser levados em conta para fortalecer a discussão sobre o tema, como a segurança alimentar e a ética no abate animal.

28/6/2023

A busca por proteínas alternativas é vital, por diversas razões.

Podemos aqui apontar apenas 3 (três) que já justificariam um maior investimento na pesquisa, desenvolvimento e inovação (sem qualquer grau hierárquico, visto que todas são igualmente representativas). 

A primeira delas é a segurança alimentar.

Estima-se que população global atingirá o montante aproximado de 9,7 bilhões de pessoas, até 20501. Por maior que seja o esforço de busca de espaço, inovação e tecnologia, a conta simplesmente não fecha. Não há como atingir uma produção de alimentos com tamanha envergadura, em tão pouco tempo. E o pior, quanto menor a oferta, maior será o preço do alimento, o que pode desencadear num outro pernicioso resultado que é a desigualdade.

A segunda razão é aquela relacionada ao impacto ambiental vinculada a produção e abate de gado.

A pecuária, como se sabe, é uma atividade que necessita de grandes espaços para pastagem e alimentação.

O Brasil continua sendo o maior exportador de carnes do mundo (4.822 milhões de toneladas exportadas em 2022)2. Segundo indicadores recentes do IBGE3, a China manteve-se como o principal destino do produto no mercado internacional, absorvendo 51,9% das exportações brasileiras, os Estados Unidos seguiram na segunda posição com aumento de 37,78 mil toneladas importadas em comparação com o 1º trimestre de 2021 e, em terceiro lugar, as exportações para o Egito aumentaram 33,03 mil toneladas.

Há relação direta entre a pecuária e a emissão de GEE (notadamente o gás carbônico (CO2) e o metano (CH4)), sendo certo que o aumento da concentração desses e de outros gases na atmosfera é o que contribui para o efeito estufa, aumentando a temperatura do planeta e causando o chamado aquecimento global. Este efeito ocorre pelo desmatamento (e consequente queimadas), quando as florestas são exterminadas para priorizar novas pastagens4.

A terceira razão é a crueldade no abate dos animais.

Há um aumento considerável na parcela da população que busca pelo veganismo ou outras formas de alimentação, buscando preservar a vida dos animais e/ou os efeitos deletérios de seu abate.

De toda sorte, o avanço seguro para a aprovação regulatória de uma proteína alternativa, como a gordura ou carne de laboratório depende de uma série de fatores.

O primeiro passo é reconhecer se há segurança para que a população consuma este tipo de produto e que não venha causar qualquer problema de saúde, considerando que se trata de uma inovação.

Alguns países tem discutido e compreendido os diversos impactos da proteína alternativa, para que haja aprovação regulatória e possibilidade de lançamento deste tipo de produto ao mercado consumidor. É necessário que sejam feitos estudos minuciosos para detectar eventual inconsistência, que possa resultar em risco de saúde para o consumidor.

A “carne cultivada” ou a “gordura cultivada” espelham alguns destes desafios que a ciência tem enfrentado, como alternativa, a fim de minimizar os impactos aqui trazidos, no início do texto.

A questão já começa controversa com a terminologia mais apropriada. No inglês as expressões “cell-based”, “cultivated” e “cultured” são aquelas que tem sido mais aceitas e utilizadas, pelos diversos atores.

Como a questão é dotada de diversos mitos científicos (como aquele em que o consumo deste produto pode levar ao imediato câncer) a terminologia é relevante, para que o debate científico já não se inicie estigmatizado.

Seja qual for a terminologia utilizada, o processo de “cultivo” obedece, resumidamente, a 04 (quatro) etapas:

  1. escolha da célula a ser utilizada e isolada (que pode envolver carne, aves, frutos do mar e ovos) e que é obtida através da biópsia, sem necessidade de abate do animal;
  2. fase que engloba o método de produção, para escalar a pesquisa através de biorreatores;
  3. fase da “colheita”, em que as células já representam um resultado da pesquisa anterior e, por fim;
  4. desenvolvimento final da formulação do alimento/proteína.

Em todas as fases acima existem riscos em potencial, que vão desde aqueles que também são encontrados nos alimentos tradicionais, como infecções relativos à zoonose e patógenos, como outros que podem surgir de acordo com o desenvolvimento científico, como mycoplasma e fungos.

Um outro complicador, que é costumeiramente presente na inovação em geral é a escalabilidade, ou seja, há uma dificuldade enorme de transportar, com volume, os eventuais bons resultados do laboratório para o mercado.

Hoje existem aproximadamente 22 (vinte e dois) países que vem discutindo aspectos regulatórios sobre a carne cultivada e alguns já deram passos representativos, que representam importantes marcos, neste processo.

Em 2013 a Holanda aprovou o primeiro hambúrguer de carne cultivada e em 2020 a Cingapura aprovou, para lançamento ao mercado, os primeiros nuggets de frango a base de carne cultivada.

Em junho de 2023, finalmente o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos5 (USDA, na sigla em inglês) aprovou o pedido das empresas Upside Foods e Good Meat, para comercialização de carne de frango cultivada em laboratório.

E no Brasil?

Se depender dos nossos órgãos regulatórios, o convite para o churrasco alternativo ainda está relativamente distante.

É certo que a aprovação pelo mercado americano tende a acelerar a pressionar o tema no país, no entanto, a questão parece estar em fase embrionária, por aqui.

Aspecto básico que, de plano, chama atenção é a indefinição quanto a liderança regulatória do tema, no Brasil.

Nos parece que a ANVISA já possui um caminho regulatório para “Novos Alimentos” em linha com o que dispõe a Resolução 16/1999, mas o Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) certamente abrirá concorrência, por se tratar de um produto de origem animal, concorrência esta que é perniciosa e tende a atravancar a discussão, como bem definido por Silvio Guidi e Lara Bezerra6 no artigo “A carne futurista já é uma realidade”.

Como outros casos do passado, a definição tende a se dissipar com os primeiros casos em que os órgãos forem provocados e, a depender da pressão do mercado local e de fora, isso não demorará a acontecer:

“In their paper “What gets measured gets financed”, the Rockefeller Foundation and Boston Consulting Group (BCG) identified alternative proteins as a critical climate mitigation solution and estimated that alternative proteins have an annual unmet funding need of more than $40 billion. Both private investors and governments have a critical role to play to ensure that alternative protein companies have the funding they need to help alleviate the multiple global crises.”7

Existem iniciativas bastante animadoras por empresas que já enxergaram em proteínas alternativas um cenário favorável a ser explorado.

Gigantes do mercado de foods8, como startups promissoras9 (made in Brazil) já se preparam para “testar” o ambiente regulatório nacional.

Sob outro prisma, seria contraditório para o país, defender aos quatro cantos do mundo que haja aumento do investimento global para a proteção dos nossos biomas  (notadamente o amazônico) e não adotar medidas internas voltadas para o estímulo à bioeconomia e que, por consequência, possam contribuir para frear as queimadas e o desmatamento.

Conclusões.

A aprovação para a comercialização de carne de frango cultivada pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos representa um divisor de águas para o tema, uma vez que tanto o USDA, como o FDA, representam excelência em análises regulatórias, o que pode direcionar uma tendência para outros países. Para o Brasil, além deste aspecto, há o fato do país buscar a liderança em temas envolvendo a bioeconomia, o que o leva a, necessariamente, acelerar a sua discussão regulatória interna.

Independentemente do impacto ambiental que a pecuária provoca (e que uma proteína alternativa, como a carne cultivada, minimizaria) existem outros aspectos éticos e sociais, que devem ser levados em conta para fortalecer a discussão sobre o tema, como a segurança alimentar e a ética no abate animal.

Para as indústrias que buscam se adequar a agenda ESG, está aí uma excelente oportunidade e para nós, que ainda estamos presos a determinados hábitos alimentares, podemos parar para reflexão.

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1 https://brasil.un.org/pt-br/83427-popula%C3%A7%C3%A3o-mundial-deve-chegar-97-bilh%C3%B5es-de-pessoas-em-2050-diz-relat%C3%B3rio-da-onu 

2 https://www.embrapa.br/suinos-e-aves/cias/estatisticas 

3 https://ftp.ibge.gov.br/Producao_Pecuaria/Fasciculo_Indicadores_IBGE/abate-leite-couro-ovos_202201caderno.pdf 

4 o desmatamento desestabiliza toda a cadeia, com reflexos negativos para os povos e comunidades tradicionais, além de provocar a extinção de espécies.

5 https://www.reuters.com/business/retail-consumer/upside-foods-good-meat-receive-final-usda-approval-sell-cultivated-meat-2023-06-21/ 

6 https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-carne-futurista-ja-e-uma-realidade-22042023 

7 https://gfi.org/wp-content/uploads/2023/01/2022-Cultivated-Meat-State-of-the-Industry-Report.pdf 

8 https://braziljournal.com/brands/proteinas-alternativas-a-estrategia-de-diversificacao-da-jbs/ 

9 https://digitalagro.com.br/2023/03/03/cellva-conheca-a-inovadora-startup-brasileira-que-desenvolve-e-produz-gordura-por-meio-da-cultura-de-celulas/ 

10 https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/05/5092506-viagem-de-lula-a-londres-rende-aporte-de-rs-500-milhoes-para-o-fundo-amazonia.html

Luiz Ricardo Marinello
Mestre em Direito pela PUC/SP; Professor na INSPER em Contratos de PI; Professor em Especialização de PI na ESA/SP; Coordenador de Comitê na ABPI; Diretor da ASPI; sócio de Marinello Advogados;

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