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Reestruturação da assistência social: Bolsa Família, BPC, empréstimos consignados e seguro-defeso

A lei 14.601/23 reestruturou alguns elementos essenciais da Assistência Social brasileira.

28/6/2023

A lei 14.601/23, de 19.6.2023, fruto da conversão da Medida Provisória 1.164/2023, imprimiu algumas alterações no BPC/LOAS e produziu uma grande reestruturação da política nacional de Assistência Social.

Retorno do programa Bolsa Família

O primeiro elemento importante diz respeito ao retorno do programa Bolsa Família, previsto anteriormente na lei 10.835/04, e que havia sido substituído pelo benefício do auxílio Brasil, objeto da lei 14.284/21.

A mesma lei 14.601/23 também deixa claro que o Programa Bolsa Família é uma etapa para a consecução da ideia de renda básica de cidadania, mais conhecida como renda mínima, e que atualmente se encontra prevista no art. 6º, parágrafo único, da Constituição Federal:

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária.

Também é relevante sublinhar que, nos termos do art. 4º, §2º, da lei 14.601/23, o Benefício de Prestação Continuada – BPC, previsto na Lei 8.742/1993, compõe o cálculo da renda mensal familiar per capita para fins de aferição de direito aos benefícios oriundos do programa Bolsa Família.

§ 2º O benefício de prestação continuada, de que trata o art. 20 da lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social), recebido por quaisquer dos integrantes da família, compõe o cálculo da renda familiar per capita mensal.

Todavia, apesar de o BPC a priori compor a renda mensal para fins de aferição dos beneficiários do Bolsa Família, o Regulamento editado pelo Poder Executivo poderá autorizar o desconto de faixas percentuais de parcela do BPC recebido por pessoa com deficiência (PcD), conforme o grau de deficiência:

§ 3º O Poder Executivo poderá autorizar o desconto de faixas percentuais do valor do benefício de prestação continuada recebido por pessoa com deficiência no cálculo da renda familiar per capita mensal de que trata o inciso II do caput deste artigo, observado, no que couber, o critério de que trata o inciso I do caput do art. 20-B da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social), na forma do regulamento.

O art. 4º, § 3º, da Lei 14.601/2023 não prevê essa benesse em relação a BPC recebido por pessoa idosa e essa escolha normativa provavelmente implica em inconstitucionalidade por ofensa à isonomia, visto não haver um critério razoável para efetuar essa discriminação legislativa.

Alterações no CadÚnico

A Lei 14.601/2023, na esteira do que já constava da medida provisória 1.164/23, também alterou algumas disposições relativas ao CadÚnico:

Art. 6º-F. Fica instituído o Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal - CadÚnico, registro público eletrônico com a finalidade de coletar, processar, sistematizar e disseminar informações para a identificação e a caracterização socioeconômica das famílias de baixa renda ou vulneráveis à pobreza, nos termos do regulamento.

(...)

§ 2º A inscrição no CadÚnico poderá ser obrigatória para acesso a programas sociais do Governo federal, na forma estabelecida em regulamento.

§ 3º Para fins de cumprimento do disposto no art. 12 da Emenda Constitucional nº 103, de 12 de novembro de 2019, e de ampliação da fidedignidade das informações cadastrais, será garantida a interoperabilidade de dados do CadÚnico com os dados constantes do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), de que trata a Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991.

§ 4º Os dados do CNIS incluídos no CadÚnico poderão ser acessados pelos órgãos gestores do CadÚnico, nas 3 (três) esferas da Federação, conforme termo de adesão do ente federativo ao CadÚnico, do qual constará cláusula de compromisso com o sigilo de dados.

§ 5º A sociedade civil poderá cooperar com a identificação de pessoas que precisem ser inscritas no CadÚnico, nos termos do regulamento.

§ 6º O CadÚnico coletará informações que caracterizem a condição socioeconômica e territorial das famílias, de forma a reduzir sua invisibilidade social e com vistas a identificar suas demandas por políticas públicas, na forma do regulamento.

Apesar de diversas dessas inovações ainda dependerem de futuro regulamento, por ora podemos indicar alguns primeiros apontamentos.

Conforme a nova redação dada ao § 2º, do art. 6º-F, da Lei Orgânica da Assistência Social, a inscrição no CadÚnico deixa de ser obrigatória para acesso aos programas sociais do Governo federal. 

Doravante, apenas “poderá” ser estabelecida como um dos requisitos obrigatórios para acesso às políticas assistenciais, na forma prevista em regulamento, mas não é, aprioristicamente, um critério de elegibilidade obrigatório para esses programas.

Consideramos que, apesar da mera facultatividade de se adotar ou não o CadÚnico como referência para acesso aos programas sociais do Governo Federal, este banco de dados continuará a ser amplamente utilizado, diante de sua capilaridade e de já estar em funcionamento há alguns anos.

De acordo com o § 6º, que não existia na redação da Medida Provisória 1.164/2023, e apareceu agora por obra da Lei 14.601/2023, o CadÚnico coletará informações que caracterizem a condição socioeconômica e territorial das famílias, de forma a reduzir sua invisibilidade social e com vistas a identificar suas demandas por políticas públicas, na forma do regulamento.

O art. 12, da Emenda Constitucional 103/2019, estabeleceu a obrigatoriedade de um mecanismo integrado de dados relativo às informações sobre os sistemas previdenciários e programas sociais do Governo Federal:

Art. 12. A União instituirá sistema integrado de dados relativos às remunerações, proventos e pensões dos segurados dos regimes de previdência de que tratam os arts. 40, 201 e 202 da Constituição Federal, aos benefícios dos programas de assistência social de que trata o art. 203 da Constituição Federal e às remunerações, proventos de inatividade e pensão por morte decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal, em interação com outras bases de dados, ferramentas e plataformas, para o fortalecimento de sua gestão, governança e transparência e o cumprimento das disposições estabelecidas nos incisos XI e XVI do art. 37 da Constituição Federal.

§ 1º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e os órgãos e entidades gestoras dos regimes, dos sistemas e dos programas a que se refere o caput disponibilizarão as informações necessárias para a estruturação do sistema integrado de dados e terão acesso ao compartilhamento das referidas informações, na forma da legislação.

§ 2º É vedada a transmissão das informações de que trata este artigo a qualquer pessoa física ou jurídica para a prática de atividade não relacionada à fiscalização dos regimes, dos sistemas e dos programas a que se refere o caput.

É neste contexto que se inserem as regras contidas no art. 6º-F, §§ 3º e 4º, da Lei 8.742/1993, com a redação dada pela Lei 14.601/2023, passando a permitir que os gestores do CadÚnico e, reciprocamente, do CNIS, possam realizar cruzamento de dados, a fim de dar conta da veracidade das informações prestadas pelos cidadãos, dentro de um escopo de autotutela administrativa (princípio da legalidade).

Os dados do CadÚnico poderão ser consultados nas 3 esferas da Federação, mediante termo de adesão do ente federativo e, em todos os casos, respeitado o sigilo de dados que configura esse tipo de operação (mediante imposição da LGPD – Lei 13.709/2018- e, atualmente, também por obra do art. 5º, inciso LXXIX, da Constituição Federal, que transformou a proteção de dados pessoais nas redes sociais em novo direito fundamental – Emenda Constitucional 115/2022).

O § 5º do art. 6º-F, da Lei 8.742/1993, com a redação dada pela Lei 14.601/2023, estabelece que a sociedade civil poderá cooperar com a identificação de pessoas que necessitem ser inscritas no CadÚnico.

Esse dispositivo exige uma certa atenção.

Se, conforme o artigo 194, caput, da Constituição Federal, a Seguridade Social é um conjunto de iniciativas e condutas do Estado e também da sociedade civil (e nisso se pode justificar a norma em questão), ao mesmo tempo deve ser seguido, estritamente, o princípio da legalidade (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal), segundo o qual ninguém será obrigado a nada, senão em virtude de lei.

A discussão, aqui, reside no ponto de ser possível ou não inscrever no CadÚnico alguém, ou alguma família, mesmo contrariamente à vontade dos atingidos.

Da mesma forma, essa mencionada cooperação da sociedade civil na identificação de pessoas que devam ser inscritas no CadÚnico deve resguardar todos os preceitos relativos a dados pessoais e dados pessoais sensíveis constantes da LGPD- Lei Geral de Proteção de Dados, conforme indicado pouco acima.

Ampliação das hipóteses de cumulação do BPC

A Lei 14.601/2023, inserindo situação que não constava da redação inicial da Medida Provisória 1.164/2023, ampliou as possibilidades de cumulação do BPC com outras políticas públicas. Veja-se a redação dada ao art. 20, § 4º, da Lei 8.742/1993:

§ 4º O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória, bem como as transferências de renda de que tratam o parágrafo único do art. 6º e o inciso VI do caput do art. 203 da Constituição Federal e o caput e o § 1º do art. 1º da Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004.

A redação anterior desse dispositivo legal se limitava a permitir a cumulação do BPC com benefícios de assistência médica ou pensão especial de natureza indenizatória.

Doravante, também passa a ser possível cumular o BPC com as políticas de transferência de renda mencionadas no art. 6º, parágrafo único, e 203, inciso VI, da Constituição Federal (renda mínima), bem como com o a renda básica de cidadania (Lei 10.835/2004).

Alterações no alcance dos empréstimos consignados

A Lei 14.601/2023, não manteve algumas limitações às operações de empréstimos consignados que haviam sido introduzidas pela Medida Provisória 1.164/2023, especialmente a tentativa de proibição de realização desse tipo de operação financeira incidindo sobre os benefícios de prestação continuada (BPC), conforme redação que havia sido dada ao art. 6º, da Lei 10.820/2003:

Art. 6º Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social poderão autorizar que o Instituto Nacional do Seguro Social - INSS proceda aos descontos referidos no art. 1º e, de forma irrevogável e irretratável, que a instituição financeira na qual recebam os seus benefícios retenha, para fins de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil por ela concedidos, quando previstos em contrato, na forma estabelecida em regulamento, observadas as normas editadas pelo INSS e ouvido o Conselho Nacional de Previdência Social.

Esse arranjo normativo, se por um lado blindava os beneficiários dos programas assistenciais das situações de endividamento, em contrapartida, dificultava o acesso dessas pessoas aos mecanismos formais de crédito.

Diante disso, e forte controvérsia observada no processo de tramitação da Medida Provisória 1.164/2023 no Congresso Nacional, verificou-se que foi retomada a possibilidade de celebração de empréstimos consignados incidentes no BPC, tendo sido retomada a redação anterior do art. 6º, da Lei 10.820/2003, dada pela Lei 14.431/2022:

Art. 6º Os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social e do benefício de prestação continuada de que trata o art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, poderão autorizar que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) proceda aos descontos referidos no art. 1º desta Lei e, de forma irrevogável e irretratável, que a instituição financeira na qual recebam os seus benefícios retenha, para fins de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos, financiamentos, cartões de crédito e operações de arrendamento mercantil por ela concedidos, quando previstos em contrato, na forma estabelecida em regulamento, observadas as normas editadas pelo INSS e ouvido o Conselho Nacional de Previdência Social.

Para os beneficiários do RGPS foi mantido o teto de 45% para os empréstimos consignados:

§ 5º Para os titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social, os descontos e as retenções referidos no caput deste artigo não poderão ultrapassar o limite de 45% (quarenta e cinco por cento) do valor dos benefícios, dos quais 35% (trinta e cinco por cento) destinados exclusivamente a empréstimos, a financiamentos e a arrendamentos mercantis, 5% (cinco por cento) destinados exclusivamente à amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito consignado ou à utilização com a finalidade de saque por meio de cartão de crédito consignado e 5% (cinco por cento) destinados exclusivamente à amortização de despesas contraídas por meio de cartão consignado de benefício ou à utilização com a finalidade de saque por meio de cartão consignado de benefício.

Para os beneficiários do BPC/LOAS a margem consignável é menor, de apenas 35%, mas voltou a ser permitida:

§ 5º-A Para os titulares do benefício de prestação continuada de que trata o art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social), os descontos e as retenções referidos no caput deste artigo não poderão ultrapassar o limite de 35% (trinta e cinco por cento) do valor dos benefícios, dos quais 30% (trinta por cento) destinados exclusivamente a empréstimos, a financiamentos e a arrendamentos mercantis e 5% (cinco por cento) destinados exclusivamente à amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito consignado ou cartão consignado de benefício ou à utilização com a finalidade de saque por meio de cartão de crédito consignado ou cartão consignado de benefício.

A possibilidade de empréstimos consignados é assegurada, por extensão, também às pessoas que recebem o benefício de renda mensal vitalícia:

§ 7º Aplica-se o previsto no caput e no § 5º deste artigo aos titulares da renda mensal vitalícia prevista na Lei nº 6.179, de 11 de dezembro de 1974.

Da mesma forma, e de modo bastante sutil, se alarga a possibilidade dos empréstimos consignados também aos demais programas sociais que tenham como base o BPC:

§ 8º Para os benefícios que tenham como requisito para sua concessão a preexistência do benefício de prestação continuada de que trata o art. 20 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993 (Lei Orgânica da Assistência Social), aplica-se o previsto no caput e no § 5º-A deste artigo.

Seguro-defeso do pescador artesanal

A Lei 14.601/2023 introduziu algumas alterações também no que diz respeito ao seguro-defeso, que consiste na proteção previdenciária aos pescadores artesanais tratada na Lei 10.779/2003.

Até então, para fazer jus ao benefício, o pescador não poderia estar usufruindo nenhum benefício previdenciário ou assistencial de natureza continuada, com exceção da pensão por morte ou auxílio-acidente:

Art. 2º. (...)

§ 1o Para fazer jus ao benefício, o pescador não poderá estar em gozo de nenhum benefício decorrente de benefício previdenciário ou assistencial de natureza continuada, exceto pensão por morte e auxílio-acidente.

Doravante, a partir das alterações da Lei 14.601/2023, ampliou-se o rol das exceções que permitem o recebimento do seguro-defeso mesmo que o pescador artesanal esteja recebendo algum tipo de benefício.

Incluiu-se no rol que já continha a pensão por morte e o auxílio-acidente as transferências de renda de que mencionadas no art. 6º, p. único, e art. 203, inciso VI, ambos da Constituição Federal, bem como a previsão do art. 1º, § 1º, da Lei nº 10.835/2004 (renda básica de cidadania):

Art. 2º. (...)

§ 1º Para fazer jus ao benefício, o pescador não poderá estar em gozo de nenhum benefício decorrente de benefício previdenciário ou assistencial de natureza continuada, exceto pensão por morte, auxílio-acidente e transferências de renda de que tratam o parágrafo único do art. 6º e o inciso VI do caput do art. 203 da Constituição Federal e o caput e o § 1º do art. 1º da Lei nº 10.835, de 8 de janeiro de 2004.

Em síntese, eis as principais inovações introduzidas pela lei 14.601/23.

Marco Aurélio Serau Junior
Diretor Científico do IEPREV - Instituto de Estudos Previdenciários.

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