Na cerimônia de colação de grau em 1883, na Faculdade de Direito do Recife, em seu famoso discurso de paraninfia, o grande jurista Tobias Barreto (1839-1889) disse que “o direito não é um filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade”. Em licença poética, claro, invocamos o espelho do tempo para dizer que o mesmo poderia ser dito sobre a relação entre o direito e as criptomoedas: “o direito não é um filho dos algoritmos”, e isso vale para nossas reflexões sobre o marco legal das moedas virtuais, a lei Federal abaixo comentada, brevitatis causae.
Após 180 (cento e oitenta) dias do período de “vacatio legis”, finalmente entra em vigor o marco legal das moedas virtuais no Brasil através da lei 14.478/22, oriunda do projeto substitutivo do Senado - PL 4401/21 (Nº Anterior na Câmara: PL 2303/15).
Recentemente, datado de 13 de junho de 2023, foi editado o decreto Presidencial 11.563/23, regulamentando a lei 14.478/22 e estabelecendo competências ao Banco Central do Brasil, que passou a ser o órgão federal competente para “regular a prestação de serviços de ativos virtuais, observadas as diretrizes da referida lei; regular, autorizar e supervisionar as prestadoras de serviços de ativos virtuais; e deliberar sobre as demais hipóteses estabelecidas na lei 14.478/2022, ressalvado o disposto no art. 12, na parte que incluiu o art. 12-A na lei 9.613/98.
De fato, conforme o art. 22, incisos VI e VII, da CF/88, trata-se de competência privativa da união legislar sobre “sistema monetário e de medidas, títulos e garantias dos metais; e, política de crédito, câmbio, seguros e transferência de valores”, embora seja competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre: “direito tributário, financeiro, consumidor e procedimento em matéria processual”, com as conhecidas regras da generalidade atribuídas à União, e do direito de sumplementariedade atribuído aos Estados e ao DF, conforme o art. 24, da mesma CF/88.
Além disso, o tema das criptomoedas envolve importantes institutos ligados à liberdade da iniciativa privada, mas que não possuem o condão de revogar as disposições constitucionais da soberania nacional, conforme o art. 1º, I, e de acordo com o art. 170, I, ambos da Constituição de 1988.
Aliás, recentemente a Revista Forbes noticiou a seguinte chamada: “Mercado cripto ultrapassa US$ 1 trilhão pela primeira vez em meses”. Cuida-se de notícia que menciona os altos e baixos de um mercado extremamente promissor e complexo, com cifras estratosféricas (de lucro ou de prejuízo).
Cryptocurrency, criptomoeda ou cripto é uma moeda digital projetada para funcionar como um meio de troca por meio de uma rede de computadores que não depende de nenhuma autoridade central, como um governo ou banco, para sustentá-la ou mantê-la.
Em outros termos, são moedas virtuais, ou um meio de pagamento totalmente digital e descentralizado que usa criptografia para garantir seu valor em transações, sendo originadas via algoritmo computacional, e cujas transações financeiras acontecem diretamente entre os usuários, através da tecnologia blockchain.
A seu turno, blockchain é conhecido como “o protocolo da confiança”, vale dizer, é uma tecnologia de registro distribuído que busca estabelecer a descentralização como medida de segurança, sendo base de registros e dados distribuídos e compartilhados, que possuem a função de criar um índice global para todas as transações que ocorrem em um determinado mercado.
Falemos então do Bitcoin, melhor esclarecendo, pois, através da “Cryptoenciclopédia” de Patrick Schueffel, Nikolaj Groeneweg e Rico Baldegger: “Bitcoin é um instituto (baseado em blockchain), sendo uma criptomoeda, um meio de pagamento digital inventado por um desconhecido com o pseudônimo de Satoshi Nakamoto.
Já o “Bitcoin Cash” (BCH) seria uma criptomoeda resultante de um “hard fork” do Bitcoin, que entrou em vigor para aumentar o tamanho dos blocos do Bitcoin.
Um “hard fork”, por sua vez, no contexto das criptomoedas, seria “aquilo que ocorre quando um blockchain se divide em dois caminhos distintos que coexistem de modo paralelo, similar, por exemplo, ao que acontece em sistemas de controle de versão como o Git onde um repositório pode possuir várias cópias distintas que existem de forma simultânea e podem ser alteradas sem afetar nenhuma das outras”. Um “Git”, assim sendo, é um sistema de controle de versões distribuído, usado principalmente no desenvolvimento de software, mas pode ser usado para registrar o histórico de edições de qualquer tipo de arquivo.
O Marco Legal das moedas virtuais
No caso brasileiro, a proposição legislativa original, de 2015, apenas realizava modificação no inciso I do art. 9º da lei 12.865/2013 (sobre os arranjos de pagamento e as instituições de pagamento integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro -SPB, entre outras), além de acrescentar um § 4º ao art.11 da lei 9.613/98 (lavagem de dinheiro).
Após longos 8 (oito) anos de discussão legislativa, o projeto foi profundamente alterado em sua versão final, inserindo diversas disposições em seus 14 artigos.
Podemos dizer que o “Marco Legal das Moedas Virtuais” no Brasil supostamente busca proteger usuários ao criar tipos penais no código penal e na lei de lavagem de dinheiro, e, ainda, ao aplicar o Código de Defesa do Consumidor (no que couber), estabelecendo obrigatoriedade de fiscalização e controle, submetendo agências de moedas virtuais privadas ao controle público estatal por um “órgão ou entidade da Administração Pública federal”, além de estabelecer alguns preceitos principiológicos.
O art. 1º menciona os aspectos de abrangência, dizendo que a lei deve ser observada: “na prestação de serviços de ativos virtuais e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais”, enquanto o parágrafo único menciona a abrangência negativa: “não se aplica aos ativos representativos de valores mobiliários sujeitos ao regime da lei 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e não altera nenhuma competência da Comissão de Valores Mobiliários”.
Já o art. 2º estabelece diretrizes de funcionamento das prestadoras de serviços de ativos virtuais: “As prestadoras de serviços de ativos virtuais somente poderão funcionar no País mediante prévia autorização de órgão ou entidade da Administração Pública federal”, enquanto o parágrafo único menciona os aspectos simplificados de autorização: “Ato do órgão ou da entidade da Administração Pública federal a que se refere o caput estabelecerá as hipóteses e os parâmetros em que a autorização de que trata o caput deste artigo poderá ser concedida mediante procedimento simplificado”.
Com efeito, o art. 3º disciplina os tipos que podem ser considerados ativos virtuais e seus meios de processamento, além de dispor que ato normativo federal irá dispor “quais serão os ativos financeiros regulados, para fins desta lei”: “Para os efeitos desta lei, considera-se ativo virtual a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento”, mencionando de forma negativa os que não estão incluídos: “não incluídos: a) moeda nacional e moedas estrangeiras; b) moeda eletrônica, nos termos da lei 12.865, de 9 de outubro de 2013; c) instrumentos que provejam ao seu titular acesso a produtos ou serviços especificados ou a benefício proveniente desses produtos ou serviços, a exemplo de pontos e recompensas de programas de fidelidade; e d) representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação esteja prevista em lei ou regulamento, a exemplo de valores mobiliários e de ativos financeiros”.
Para efeito de disposição principiológica, conforme estabelecidas práticas internacionais, o art. 4º estabelece: “A prestação de serviço de ativos virtuais deve observar as seguintes diretrizes, segundo parâmetros a serem estabelecidos pelo órgão ou pela entidade da Administração Pública federal definido em ato do Poder Executivo”: 1) livre iniciativa e livre concorrência; 2) boas práticas de governança, transparência nas operações e abordagem baseada em riscos; 3) segurança da informação e proteção de dados pessoais; 4) proteção e defesa de consumidores e usuários; 5) proteção à poupança popular; 6) solidez e eficiência das operações; e 7) prevenção à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo e da proliferação de armas de destruição em massa, em alinhamento com os padrões internacionais.
A seu turno, o art. 5º dispõe sobre a perspectiva conceitual das prestadoras de serviços de ativos virtuais: “Considera-se prestadora de serviços de ativos virtuais a pessoa jurídica que executa, em nome de terceiros, pelo menos um dos serviços de ativos virtuais, entendidos como: a) troca entre ativos virtuais e moeda nacional ou moeda estrangeira; b) troca entre um ou mais ativos virtuais; c) transferência de ativos virtuais; d) custódia ou administração de ativos virtuais ou de instrumentos que possibilitem controle sobre ativos virtuais; ou e) participação em serviços financeiros e prestação de serviços relacionados à oferta por um emissor ou venda de ativos virtuais, além de autorizar que o “órgão ou a entidade da Administração Pública federal indicado em ato do Poder Executivo poderá autorizar a realização de outros serviços que estejam, direta ou indiretamente, relacionados à atividade da prestadora de serviços de ativos virtuais de que trata o caput deste artigo”.
Os artigos 6º e 7º, por sua vez, disciplinam aspectos de funcionamento e fiscalização, e suas atribuições: “i) autorizar funcionamento, transferência de controle, fusão, cisão e incorporação da prestadora de serviços de ativos virtuais; ii) estabelecer condições para o exercício de cargos em órgãos estatutários e contratuais em prestadora de serviços de ativos virtuais e autorizar a posse e o exercício de pessoas para cargos de administração; iii) supervisionar a prestadora de serviços de ativos virtuais e aplicar as disposições da lei 13.506, de 13 de novembro de 2017, em caso de descumprimento desta lei ou de sua regulamentação; iv) cancelar, de ofício ou a pedido, as autorizações de que tratam os incisos I e II deste caput; e v) dispor sobre as hipóteses em que as atividades ou operações de que trata o art. 5º desta lei serão incluídas no mercado de câmbio ou em que deverão submeter-se à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no País.
O seu parágrafo único dispõe sobre aspecto relevante acerca da hipótese de cancelamento: “O órgão ou a entidade da Administração Pública federal de que trata o caput definirá as hipóteses que poderão provocar o cancelamento previsto no inciso IV do caput deste artigo e o respectivo procedimento”.
Sequencialmente o art. 8º complementa as disposições de funcionamento exclusivo ou cumulativo: “As instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil poderão prestar exclusivamente o serviço de ativos virtuais ou cumulá-lo com outras atividades, na forma da regulamentação a ser editada por órgão ou entidade da Administração Pública federal indicada em ato do Poder Executivo federal”.
O art. 9º, neste sentido, menciona que após a criação do órgão ou a entidade da Administração Pública federal de que trata o caput do art. 2º, “estabelecerá condições e prazos, não inferiores a 6 (seis) meses, para adequação das prestadoras de serviços de ativos virtuais que estiverem em atividade às disposições desta Lei e às normas por ele estabelecidas”.
Já o art. 10° altera o Código Penal e cria o tipo penal do art. Art. 171-A, sobre “Fraude com a utilização de ativos virtuais, valores mobiliários ou ativos financeiros”, com o preceito incriminador primário versa sobre as seguintes condutas: “Organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento”, preconizando, neste ponto, pena de “reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa”, como prefeito incriminador secundário.
O art. 11 modifica o art. 1º, parágrafo único, da Lei 7492/86 (crimes contra o sistema financeiro nacional) para incluir “a pessoa jurídica que ofereça serviços referentes a operações com ativos virtuais, inclusive intermediação, negociação ou custódia”.
Por sua vez, o art. 12 modifica disposições da lei 9613/98 (crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores), num primeiro momento, para estabelecer causa de aumento de pena: “aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços) se os crimes definidos nesta lei forem cometidos de forma reiterada, por intermédio de organização criminosa ou por meio da utilização de ativo virtual”.
Num segundo momento, estabelecendo a obrigatoriedade de controle e fiscalização para “as prestadoras de serviços de ativos virtuais.”
Num terceiro momento, impondo a determinação de identificação dos clientes e manutenção dos registros: “manterão registro de toda transação em moeda nacional ou estrangeira, títulos e valores mobiliários, títulos de crédito, metais, ativos virtuais, ou qualquer ativo passível de ser convertido em dinheiro, que ultrapassar limite fixado pela autoridade competente e nos termos de instruções por esta expedidas”.
Num quarto momento, incluindo o art. 12-A, sobre “Cadastro Nacional de Pessoas Expostas Politicamente (CNPEP)” em diversos aspectos.
Por fim, o art. 13 determina a aplicação, no que couber, do Código de Defesa do Consumidor: “Aplicam-se às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais, no que couber, as disposições da lei 8.078, de 11 de setembro de 1990”.
Breve apreciação crítica
A presente cisão de ativos (virtuais e mobiliários) talvez sugira que ao invés de criar ou delegar a um órgão ou entidade da Administração Pública federal, (o BC, e.g.), fosse alternativamente desenhada uma espécie de “Comissão de Valores Virtuais”, com adaptação, controle e rigor protetivo, aproveitando a experiência dos pontos bons e ruins da própria CVM, talvez no modelo de uma agência reguladora, mas ao invés disso se optou por delegar ao Banco Central do Brasil a função de regular, autorizar e supervisionar as prestadoras de serviços de ativos virtuais.
São conhecidas, aliás, as críticas iniciais de que a legislação se inicia equivocadamente, ao denominar e conceituar, papel da doutrina, especialmente quanto ao caso dos criptoativos - chamados de ativos virtuais - deixando a desejar quando exclui da virtualidade os valores mobiliários, uma vez que muitos “tokens” podem ser considerados valores mobiliários, pelo fato de que diversos “tokens” de rentabilidade periódica deveriam ser regulados como valores mobiliários, ou ao menos intermediários.
Também pode ser antecipado que muitas pessoas jurídicas buscarão se aproveitar da aparente ambiguidade para tentar o lançamento de ativos virtuais que na verdade representem ativos mobiliários, causando possíveis e aparentes conflitos de atribuições entre a CVM e o BCB.
Igualmente é lamentável a total ausência de qualquer disposição geral sobre a vinculação de escrituração de bens e valores integralizados sobre o volume de atuação da carteira de ativos negociados, incentivando-se um um verdadeiro cassino livre de amarras normativas.
Já sobre o aspecto penal, novamente observamos a expansão do direito punitivo, como se mais uma vez esquecêssemos de que o direito penal deve ser a “ultima ratio”, e de que melhor seria aprimorar os institutos de responsabilização civil, patrimonial e administrativo, inclusive com aprimoramento de mecanismos de proteção probatória sobre os sofisticados aspectos do blockchain e da respectiva cadeia de custódia, que mereceria tratamento mais densificado.
A seu turno, ao se estabelecer o CDC como norma protetiva incidente sobre as atividades relativas aos ativos virtuais, cria o grande problema do direito de arrependimento consumerista, já que segundo o art. 49 do Código do Consumidor, o cidadão comprador de ativos virtuais “pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio. Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados.”
Como ignorar o fato de que neste tipo de transação o intervalo de alguns poucos minutos pode representar a valorização ou depreciação de milhões de dólares, imagine com relação ao prazo de 7 dias, exigindo o caso uma solução protetiva e intermediária, pois pode acontecer de o consumidor querer se valer do direito de arrependimento como uma espécie de “retrovenda de ativo virtual simulada”, ou as corretoras alegarem “não concretização do negócio jurídico”, ambos pleiteando valor de mercado inicial, muito embora também possa ocorrer um arrependimento genuíno ao cabo de poucos dias. Quid iuris?
Provavelmente a solução seja estabelecer um prazo de arrependimento muito menor e com graus percentuais de indenização em certos casos, além de instituir marcos seguros da realização do negócio, buscando prevenir a ocorrência de oscilações artificiais ou de malícia de um dos lados, o que nos leva de volta à Tobias Barreto: “o direito não é um filho das criptomoedas, mas também não é o pai dos algoritmos”. Problemas humanos exigem soluções humanas, demasiadamente humanas.
Alguns Estados, como São Paulo, deveriam inclusive cogitar a instituição de um “Código Paulista Multidisciplinar de Procedimento das Criptomoedas”, abrangendo aspecto tributário, financeiro, consumerista e procedimental da transação de criptoativos no Estado de São Paulo, de modo a assegurar maior segurança e transparência.