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A biografia do “Rei”

Notícias de jornais (o processo corre em segredo de justiça. Segredo de justiça?) dão conta de que o livro-biografia de uma das maiores celebridades nacionais, quiçá a maior das últimas quatro décadas, foi, por ordem da Justiça, e, claro, a pedido do biografado, retirado de circulação.

8/5/2007


A biografia do "Rei"

Eliane Abrão*

Não li e não gostei.

Notícias de jornais (o processo corre em segredo de justiça. Segredo de justiça?) dão conta de que o livro-biografia de uma das maiores celebridades nacionais, quiçá a maior das últimas quatro décadas, foi, por ordem da Justiça, e, claro, a pedido do biografado, retirado de circulação. Lançado em fins do ano passado vendeu relativamente bem, cerca de 22 mil exemplares, até que o biografado, com algum retardo, recorreu à Justiça, que o atendeu. O que podia, agora não pode mais.

A questão é emblemática e sugere algumas considerações.

A primeira delas, diz respeito ao embate público versus privado. Até que ponto uma figura pública, celebridade artística, política, ou acadêmica, tem o direito de retirar do público, que o alçou a essa condição, o desejo de acessar as entranhas de sua psiquê ou de seu comportamento, além daquilo que mostra a objetiva trajetória de vida, por todos conhecida. Correntes doutrinárias há que defendem que, uma vez pessoa pública, derrogada está qualquer ação dessa mesma pessoa pública que impeça terceiros de interpretar livremente os fatos e notícias de sua vida pessoal, aprove ele/ela ou não. Outras correntes entendem que toda pessoa pública tem direito à privacidade. Portanto, biografias só as consentidas, vulgarmente conhecidas como “chapa branca”. Nosso Código Civil (clique aqui), para desgosto principalmente dos jornalistas, literatos e artistas performáticos, e a despeito da atecnicidade de alguns artigos, perfilhou-se ao lado da última corrente, de modo ainda mais conservador. Os arts. 20 e 21 tornam praticamente indevassável a fronteira, e proibe qualquer exposição indireta de pessoas, maxime sendo os fins comerciais.

A segunda ordem de considerações reside no reconhecimento das duas ordens de direitos – uma do autor do escrito, da biografia, e outra do biografado. Do ponto de vista estritamente jurídico, tratam-se de órbitas distintas: exerce o autor do escrito direitos morais e patrimoniais sobre a obra (o livro), direitos de cunho real, enquanto que o biografado (o tema) é titular de seu direito de personalidade que inclui, além da privacidade, direitos ao nome civil (a publicação ostenta no título o nome civil do intérprete biografado), à voz, à imagem, à honra, entre outros. Existiria prevalência de um sobre outro? Não, configurando ambos direitos garantidos constitucional e infraconstitucionalmente pela Lei 9610/98 (clique aqui), que regula os direitos de autor, e pelos arts. 11 a 21 do Código Civil Brasileiro. Ora, no embate entre os dois direitos qualquer um pode levar a melhor, dependendo da avaliação subjetiva dos magistrados preventos.

Mas, quem leva a pior, quase sempre, é a sociedade. Quase sempre porque o Judiciário, no mais da vezes, atende ou ao pedido do biografado ou ao dos concorrentes autor/editora, e a conseqüência é a retirada de livros de circulação. Reserva feita a menores, desconheço atentado maior à liberdade de expressão, a terceira garantia constitucional atraída para a discussão, não necessariamente nessa ordem. A busca e apreensão de livros deve ser examinada com muita cautela pelos Juizes para não se transformar ato justo em ato censório, o que macula o estado democrático de direito. Há outros meios de reparação, inclusive no direito de resposta pela mesma mídia, seja por meio de notícia no mesmo veículo, seja por meio de outro livro que deve a editora ficar encarregada de lançar e de divulgar. Pessoalmente – capaz e cidadã – dispenso qualquer tutela sobre minha liberdade de ler os livros que eu escolher, desde as teorias marxistas às nazistas, das islâmicas às cristãs, das fascistas às liberais, do romance ao holocausto. Temos todos o direito de usufruir das mais diversas fontes de informações que a sociedade dita civilizada tem o dever de disponibilizar, porque necessárias ao crescimento intelectual e à formação do espírito crítico. Educação é isso, e não simplesmente assentar na escola ou na faculdade.

Voltando ao livro recém cassado, há um tema recorrente entre os que lidam com a lei de imprensa (leia-se meios de comunicação) que é o da definição do que seria interesse público. E passaram a distinguir interesse público de interesse do público. Acaciana a diferença para casos semelhantes porque biografia de celebridade aguça somente a curiosidade pública. Teria o Juiz do litígio a obrigação de atender ao pedido do biografado? À luz do Código Civil, sim, o que redireciona a discussão aos dez artigos que zeraram avanços jurisprudências e doutrinários, até porque o rei do ié, ié, ié, brasileiro sempre resguardou a sua privacidade, mantendo a aura do inatingível romântico, sua grande ferramenta mercadológica.

Entretanto duas sombras pairam sobre o episódio. Uma, a desculpa de que a biografia não autorizada tiraria o impacto da biografia “chapa branca”, que vem sendo preparada há mais de cinco anos. Como se esta não fosse vender centenas de milhares de exemplares, talvez tanto quanto os CDs do biografado-intérprete, argumento esse de cunho puramente mercantilista, e que destrói toda a argumentação fundada nos direitos da personalidade. E a outra, de pasmar, sobre a atuação do MP nos autos do processo. Noticia publicada no Estadão de 04/05/2007, Caderno Metrópole, informa que os promotores “propuseram que, doravante, o autor deveria se abster de fazer comentários sobre o livro, mas ele não consentiu”. Inacreditável o “cala-a-boca”. Um atentado vergonhoso às liberdades civis, no caso, à pessoa do autor do livro. Termino por aqui. Parabéns ao autor.

P.S. Acredito na informação jornalística porque aspeada e sem desmentidos até hoje.

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*Advogada do escritório Eliane Y. Abrão, Advogados Associados. Ex-presidente da Comissão de Propriedade Imaterial da OAB/SP






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