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O regime de separação de bens é realmente obrigatório para pessoas com mais de 70 anos?

Em resposta à pergunta que deu título a este artigo, concluímos a possibilidade de inaplicabilidade do regime de separação legal de bens aos maiores de 70 anos.

18/6/2023

O Código Civil de 1916, em seu art. 258, parágrafo único, inciso II, impôs o regime de separação obrigatória de bens para homens com mais de sessenta anos e mulheres maiores de cinquenta anos.

A edição original do Código Civil de 2002 basicamente trouxe a mesma redação, determinando a adoção do regime supramencionado para os maiores de sessenta anos, de ambos os gêneros. Posteriormente, houve a alteração do texto pela lei 12.344/10, modificando o critério etário para setenta anos.

A intenção legislativa para imposição de referido regime fundado na idade dos nubentes, foi proteger o patrimônio dos idosos porventura ludibriados a contrair matrimônio motivado por interesses meramente financeiros. Ou seja, a única razão para o óbice legal por questão etária fora o eventual locupletamento do patrimônio alheio por motivos escusos.

Ora, se o objetivo dessa imposição fora proteger os idosos de relacionamentos fundados unicamente em interesses financeiros, desaparece o fundamento para manutenção dessa imposição àqueles que já vivem em união estável por tempo razoável e resolvem se casar após a idade limite.

Nessas situações, o fundamento para manutenção da obrigação legal do regime de separação de bens não subsiste, nem poderia, visto que a entidade familiar já estava formada antes mesmo de qualquer deles (ou ambos) possuírem mais de 70 anos de idade – ou, se o casamento à época se deu na vigência das legislações anteriores, 50 ou 60 anos de idade. Portanto, nesta situação, o regime de bens poderá ser livremente escolhido. Ressalvando-se que, no silêncio, deverá ser adotado no regime de comunhão parcial de bens, nos termos do art. 1.640 do Código Civil.

Atualmente já existem decisões no Superior Tribunal de Justiça no sentido de afastar a obrigatoriedade do regime de separação obrigatória de bens para idosos, quando verificado que o casamento foi precedido de união estável iniciada antes de completarem a idade restritiva, vide REsp 12/0071382-0, de relatoria da Exma. Ministra Maria Isabel Gallotti.

Na referida decisão colegiada, tomada em julgamento de processo judicial envolvendo casal que manteve união estável por 15 anos, vindo a se casar em 1999, quando o marido contava com 61 anos de idade (vigente do Código Civil de 1916), a Exma. Ministra Relatora bem asseverou que manter o regime de separação obrigatória de bens seria uma verdadeira “incoerência jurídica”.1

Em trecho da ementa – “proteção do idoso em relação a relacionamentos fugazes por interesse exclusivamente econômico” – evidencia-se que a única razão para imposição de tal regime é a proteção do patrimônio do(s) nubente(s) contra casamentos por interesse meramente financeiro.

Vide ainda o REsp 918.643/RS julgado pela Terceira Turma do STJ em 26 de abril de 2011 e os precedentes dos tribunais pátrios em consonância com este entendimento: TJ/SP. AC 10031789220208260048. 3ª Câmara de Direito Privado. Relatora Viviani Nicolau. 30/07/2021; TJSP - AC 1005793-20.2019.8.26.0071 SP 1005793-20.2019.8.26.0071. 8ª Câmara de Direito Privado. Relator Theodureto Camargo. Julgado: 15/12/21. Publicado: 17/12/21; e TJ/PE - APL 0000032-57.2015.8.17.0510 PE. 3ª Câmara Cível. Relator Francisco Eduardo Goncalves Sertorio Canto. Julgado: 18/5/17. Publicado: 29/5/17.

Destaque-se também o enunciado 261 da III Jornada de Direito Civil do Conselho de Justiça Federal que diz: "A obrigatoriedade do regime da separação de bens não se aplica a pessoa maior de sessenta anos [hoje, setenta], quando o casamento for precedido de união estável iniciada antes dessa idade".

É interessante notar, ainda, que o art. 45 da Lei de Divórcio (lei 6.515/77) prevê que “quando o casamento se seguir a uma comunhão de vida entre os nubentes, existentes antes de 28 de junho de 1977 [data da promulgação da EC 9 da Constituição Federal de 1967], que haja perdurado por 10 (dez) anos consecutivos ou da qual tenha resultado filhos, o regime matrimonial de bens será estabelecido livremente, não se lhe aplicando o disposto no art. 258, parágrafo único, II, do Código Civil”.

Tal previsão não constou no Código Civil de 2002, mas nem por isso caducou. Apesar de inexistir a necessidade de tempo mínimo para reconhecimento de união estável – motivo pelo qual deve ser desconsiderada a estipulação do prazo mínimo de 10 anos acima mencionada – não houve a revogação total da referida legislação, razão pela qual o dispositivo permanece em vigor e deve ser observado.2

Sobre o tema, a professora Maria Helena Diniz pontua em sua obra: 

“(...) se a lei impõe o regime de separação para evitar que o casamento se dê por interesse econômico, logo por isso, parece-nos que, nas hipóteses acima mencionadas, pelos arts. 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, poder-se-ia, ante a omissão do novo Código Civil, para evitar a lacuna axiológica, que se instauraria no sistema mediante a imposição do artigo 1641, admitir a comunhão parcial (art. 5º, da lei 9.278/96 e art. 1725, 2ª parte), que já regra as relações patrimoniais do casal, ou, então, o regime escolhido por eles, anteriormente em pacto anteconcubinário, respeitando-se, assim, ato jurídico perfeito.”3

Importante mencionar que a declaração de ineficácia do regime de bens, aqui tratada, não se confunde com o pleito de modificação de regime de bens, previsto no art. 1.639, §2º do Código Civil, pois para este último se faz necessária a expressa declaração de vontade dos nubentes, além da decisão judicial possuir efeitos meramente ex nunc. Portanto, os fundamentos de um e outro são diferentes.

Para exemplificar, transcrevemos trecho da sentença proferida no processo 1056800-59.2022.8.26.0002 pela douta juíza Vanessa Vaitekunas Zapater, esclarecendo a referida diferença:

“De início, é importante deixar assente que a pretensão é declaratória. Não se confunde o pedido formulado nos presentes autos com a ação de modificação de regime de bens prevista no art. 1.639, §2º, do Código Civil. A modificação do regime de fato depende de pedido motivado formulado por ambos os cônjuges, ou seja, inequívoca manifestação de vontade devidamente motivada.

Na hipótese em apreço, contudo, busca-se declaração para justamente adequar o regime à realidade vivida pelos cônjuges ao tempo do casamento, ocasião em que não tiveram oportunidade de manifestar sua vontade quanto ao regime de bens adotado, por imposição legal.”

Como bem apontado, a declaração de ineficácia de regime de bens visa unicamente a adequação do regime de bens do casal à realidade já vivida, tratando-se de medida justa e legal, em consonância com a doutrina e a jurisprudência nacional, podendo ser realizada tanto pelo casal quanto pelos seus herdeiros, possuindo efeitos retroativos.

Assim sendo, diante desta situação, o que fazer para evitar a imposição do regime de separação obrigatória de bens ou revertê-lo, quando os nubentes tenham se casado sob tal injunção estatal?

Vejamos as possibilidades: (a) antes do casamento, o próprio casal poderá ingressar com ação judicial para obter autorização para a escolha do regime; ou (b) após o casamento, (b.1) o próprio casal poderá ingressar com ação judicial, objetivando a inaplicabilidade do art. 1.641, inciso II do Código Civil (art. 258, §Ú, inciso II do Código Civil de 1916), viabilizando a escolha de outro, tendo  a sentença efeitos ex tunc, ou (b.2) se falecidos, poderão os herdeiros mover referida ação, nos termos do art. 1.851 do Código Civil.

Portanto, em resposta à pergunta que deu título a este artigo, concluímos a possibilidade de inaplicabilidade do regime de separação legal de bens aos maiores de 70 anos – ou, se o casamento à época se deu na vigência das legislações anteriores, 50 ou 60 anos de idade – quando precedido de união estável.

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1 Disponível em: . Acesso em: 05/08/2022.

2 IBDFAM. Reconhecida por avanços, Lei do Divórcio completa 40 anos no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 08/08/2022

3 DINIZ, Maria Helena. Curso de Dreito Civil Brasileiro. V. 5. 20ªed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 187

Aurea Andressa Lacerda Lima
Integrante da área cível, família e Sucessões de De Vivo, Castro, Cunha e Whitaker Advogados.

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