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Funrural e a legitimidade do adquirente para repetir o indébito, após o julgamento da ADI 4.395

O entendimento adotado pelo Fisco não condiz com a realidade e nem com a previsão legal.

15/6/2023

Após diversas reviravoltas, ao longo das décadas, sobre o Funrural, estamos caminhando para mais uma página na jurisprudência.

Em que pese ainda a não haver a proclamação do resultado do julgamento da ADI 4.395, é possível verificar todos os votos no site do STF.

O último a juntar o seu voto foi o ministro Dias Toffoli. O placar ficou em 6x5, entendendo o STF pela constitucionalidade do Funrural e pela inconstitucionalidade da sub-rogação prevista no art. 30, IV da Lei n° 8.212/91.

Com este cenário, os adquirentes de mercadorias de produtores rurais pessoas físicas iniciaram uma corrida para o Poder Judiciário para ter o seu direito líquido e certo de não se sujeitarem à sub-rogação reconhecido. Nas ações distribuídas, os adquirentes ainda requerem a repetição do indébito.

Todavia, nas manifestações das autoridades coatoras, é possível ver que elas arguem a impossibilidade da repetição do indébito dos “valores relativos a contribuições previdenciárias descontadas de produtores rurais pessoa física”.

Analisando o fundamento comumente utilizado pelo Fisco, podemos extrair o seguinte argumento:

“quando do pagamento ao produtor rural pessoa física que contrata empregados, a empresa adquirente de sua produção deve reter as contribuições em tela, mediante desconto, e recolher o valor retido, em favor do Erário. Ou seja, a adquirente pessoa jurídica é responsável pelo recolhimento de tais tributos, na condição de sub-rogada, mas sem sofrer a oneração, uma vez que o contribuinte destas contribuições é o produtor rural, sobre quem pesa o ônus econômico de suportá-las.” (no original não há destaques)

Pode-se dizer que a autoridade coatora faz uma afirmação sobre o negócio realizado entre os adquirentes e os produtores rurais pessoas físicas sem qualquer fundamento, ou seja, ela presume como se dá o negócio realizado entre o adquirente e o produtor rural. Ela simplesmente afirma que o adquirente retém os valores dos produtores rurais pessoas físicas, e, tendo em vista tal retenção, não é onerada pela responsabilidade tributária que tem como substituta.

Pela análise do art. 30, IV, da lei 8.212/91, a lei, em nenhum momento, determina que o adquirente retenha os valores dos produtores rurais pessoas físicas. Ela apenas sub-roga as obrigações do produtor rural pessoa física. Se haverá repasse ou não no preço, não interessa para o direito tributário, pois isso será uma negociação entre o adquirente e o produtor rural, ou seja, trata-se de relação jurídica estranha ao direito tributário, afeta ao direito privado.

O ordenamento jurídico, ao prever a sub-rogação, conforme o art. 30, IV da lei 8.212/91, em nenhum momento determina que haja a retenção do montante correspondente à contribuição previdenciária na nota fiscal.

O que está previsto na lei é a atribuição de responsabilidade pelo recolhimento do Funrural ao adquirente, conforme o art. 30, IV da lei 8.212/91. Ou seja, conforme já dito, a lei não prevê que o adquirente deve reter o valor da contribuição do produtor rural, portanto, essa criação feita pelo Fisco é estranha à lei que trata da cobrança da mencionada contribuição.

Frise-se que o fato de ter havido ou não retenção do valor da contribuição é fato que não tem relevância na relação jurídico-tributária entre o Fisco e o contribuinte; trata-se, pois, de relação de direito privado, relação comercial, entre o produtor rural e o adquirente.

À toda evidência, quando a lei sub-roga as obrigações do produtor rural para o adquirente, ela também sub-roga o direito desses produtores rurais.

É completamente ilógico o entendimento de que, para se caracterizar a legitimidade de repetir o indébito, é necessário o destaque nas notas fiscais do montante do tributo descontado do produtor rural, pois, como já dito, trata-se de relação de direito privado; tal relação é estranha ao direito tributário.

Caso assim não fosse, como poderia haver a certeza de que o produtor rural, sabendo que seria descontado o valor do Funrural em nota com destaque do tributo, não embutiria o valor do tributo na mercadoria? Assim, no final das contas, o ônus ainda seria efetivamente sustentado pelo adquirente e, com o entendimento do Fisco, ainda assim não haveria a legitimidade do adquirente para repetir o indébito, pois seria impossível fazer prova de que o produtor rural embutiu o tributo no preço da mercadoria, já que o Fisco faz a presunção seletiva. Por este argumento é que deve haver a distinção das relações do direito tributário com as relações de direito privado. Tais suposições não são afetas ao direito tributário.

Corroborando este entendimento, o STJ entende que a relação entre produtor e adquirente é de direito privado “e, res iter alios em relação ao fisco e suas entidades arrecadadoras a Fazenda não pode eximir-se de restituir o que percebeu indevidamente, figurando a sub-rogação legal como a autorização a que se refere o art. 166, do CTN.”

A tradução de res iter alios é perfeita para definir a presente situação, pois a expressão significa “um assunto entre outros não é da nossa conta”, exatamente a distinção entre assuntos que está sendo exposta no presente caso. Ou seja, a relação e os negócios realizados entre produtor rural e adquirente não têm importância para o direito tributário.

As relações tributárias e negociais não se misturam, pois, além de se tratarem de relação do direito privado, a questão sobre quem de fato suportou o encargo tem relevância apenas para a ciência das finanças.

Nas lições de Geraldo Ataliba:

“Esta verificação também enseja reconhecer que o criterium discriminationis que permite classificar o direito em setores ou ramos é sempre baseado na matéria substancial da problemática posta como ponto de referência dos comportamentos e interesses humanos e sociais, e nunca qualquer peculiaridade intrínseca das próprias normas, consideradas no seu conjunto.”

Posto isto, não se pode presumir que houve o repasse do tributo ao produtor rural, como entende o Fisco, impondo regra não prevista em lei, qual seja, a retenção do valor da contribuição na nota fiscal.

Não existe na doutrina autorizada nenhuma dissidência quanto ao entendimento de que, na substituição tributária, no caso do Funrural, denominada de sub-rogação, a relação jurídica tributária se dá entre o Fisco e o responsável substituto.

Segundo Bernardo Ribeiro de Moraes, a sujeição passiva indireta por substituição verifica-se sempre que a norma jurídica coloca pessoa diversa no lugar do contribuinte (sujeito passivo direto), passando ela a ocupar o polo negativo da relação jurídica tributária. No caso, o único devedor passa a ser o substituto legal tributário, que ocupa o lugar do contribuinte (pessoa substituída). Substituto legal tributário, ou apenas substituto tributário, assim, vem a ser a pessoa que, por força de lei, toma o lugar do contribuinte no polo negativo da obrigação tributária.

A substituição se dá “...quando, em virtude de uma disposição expressa em lei, a obrigação tributária surge desde logo contra uma pessoa diferente daquela que esteja em relação econômica com o ato, ou negócio tributado: nesse caso, é a própria lei que substitui o sujeito passivo direto por outro indivíduo.” (Rubens Gomes de Sousa)

Ou ainda, nas palavras de Fábio Fanucchi, “a obrigação tributária surge desde logo contra pessoa diferente daquela que esteja em relação econômica direta com o ato, fato ou negócio tributado. A própria lei substitui o sujeito passivo direto por outro indireto”.

Diante de tais considerações, percebe-se que o substituto tributário não substitui ninguém (a denominação da figura apresenta-se enganosa). O substituto tributário, na relação jurídica, apenas ocupa o lugar do contribuinte (este nem chega a fazer parte da relação jurídica respectiva), sem o substituir (o substituto tributário aparece, na relação jurídica respectiva, como devedor originário e único). Em verdade, a obrigação tributária já nasce com a pessoa do substituto tributário como devedora.

Sendo assim, não há dúvida de que o substituto tributário paga dívida própria e não dívida alheia. Por força de lei, o encargo da prestação tributária não é do contribuinte, mas sim do substituto.

Tanto é verdade que o STJ, em diversas vezes, já entendeu que a legitimidade para contestar o tributo é do substituto, e é este quem sofre o ônus da imposição fiscal, como se pode ver dos julgados transcritos:

“TRIBUTÁRIO – ICMS – COMERCIANTE ATACADISTA – DISTRIBUIDORA DE BEBIDAS – LEGITIMIDADE AD CAUSAM – O substituto tributário, em sofrendo o ônus da imposição fiscal, tem interesse de agir e legitimidade ad causam para discutir judicialmente a exigência tributária que sobre ele recai.” (STJ – REsp 173907 – RS – 1ª T. – Rel. Min. Humberto

Gomes de Barros – DJU 21.06.1999 – p. 80)

“TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO SOBRE COMERCIALIZAÇÃO DE COMBUSTÍVEIS – COMERCIANTES VAREJISTAS – LEGITIMIDADE AD CAUSAM – 1. A contribuição social instituída pela Lei Complementar nº 70/91 é devida pelos distribuidores de derivados de petróleo e álcool etílico hidratado para fins carburantes, a título de substituição dos comerciantes varejistas. 2. O substituto tributário, vem sofrendo o ônus da imposição fiscal, tem interesse de agir e legitimidade ad causam para discutir judicialmente a exigência tributária que sobre ele recai.” (STJ – REsp 140204 – PR – 1ª T. – Rel. Min. Humberto Gomes de Barros – DJU 14.12.1998 – p. 98)

Ou seja, o entendimento adotado pelo Fisco não condiz com a realidade e nem com a previsão legal. Portanto, tendo em vista o entendimento da Receita Federal do Brasil, a discussão sobre o Funrural ganhará um novo capítulo. Fazendo ressalvas à proclamação do resultado.

Gustavo Leite
Advogado.

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