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Gestão comunitária e descentralizada dos recursos naturais

Na experiência relacionada com a escassez dos recursos hídricos, conforme verificado, ganharam destaques a gestão descentralizada e comunitária do aludido recurso essencial.

15/6/2023

No contexto contemporâneo, de consumismo desenfreado, causador de poluição, escassez de recursos naturais e mudanças climáticas – em especial pela emissão de gases na atmosfera, como o dióxido de carbono (CO2), que provocam o efeito estufa1 -, a preocupação com o meio-ambiente - no qual estamos inseridos, dele fazemos parte, e dele extraímos todos os elementos essenciais à nossa subsistência - passou a ser objeto de proteção jurídica no âmbito interno de cada país, mas também no âmbito internacional.

Contudo, o tempo mostrou que não bastam previsões normativas genéricas e abstratas para mudar a realidade. São necessários, a bem da verdade, mecanismos efetivos de combate e conscientização sobre a escassez e essencialidade destes recursos naturais. A análise dos instrumentos e mecanismos criados para tal fim permite-nos verificar que as experiências exitosas passam justamente pela noção de gestão comunitária e descentralizada dos recursos naturais.

Vale destacar que a experiência exitosa perpassa, muitas vezes, por antecedentes desastrosos na gestão dos recursos naturais, o que foi verificado em relação aos recursos hídricos no Brasil. Contudo, são estas circunstâncias que propiciam a criação de mecanismos efetivos, os quais são passíveis de serem replicados na gestão de outros recursos naturais, como no controle da degradação dos biomas brasileiros.

Sobre a gestão de recursos hídricos, entre os anos de 2013/15 verificou-se, como consequência das mudanças climáticas e outras circunstâncias, profunda diminuição dos índices pluviométricos, principalmente na região sudeste do Brasil, culminando num cenário de grave escassez hídrica, no ano de 20152, em especial na região metropolitana de São Paulo. Tal quadro fez com que medidas eficazes fossem implementadas para gestão deste recurso essencial.

Importante destacar que a essencialidade dos recursos hídricos já havia motivado o constituinte de 1988 a superar o paradigma anterior - dos recursos hídricos como objeto de domínio privado -, vez que os recursos hídricos são considerados atualmente bens de domínio público, conforme se extrai do artigo 20, III, e artigo 26, I, ambos da CF/88 - que tratam, respectivamente, dos bens de domínio da União e dos Estados.

Vale destacar ainda que a Constituição de 1988, em seu art. 21, XIX, aponta para a competência da União “instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. Por outro lado, no que tange à competência legislativa, nossa Carta Republicana, no art. 22, IV, dispôs ser competência privativa da União legislar sobre água.

Neste contexto, sobreveio a lei 9.433/97, que regulamentou o artigo 21, XIX da CF/88, instituindo a Política Nacional de Recursos Hídricos – doravante denominada LPNRH. Aponta a LPNRH, no seu art. 1º, dentre os seus fundamentos, que a água é um bem de domínio público, em conformidade com o estabelecido na CF/88.

A compreensão acerca do domínio público deste recurso natural deu-se por duas razões, essencialmente: 1) escassez do recurso (relacionado ao consumo desenfreado, bem como às mudanças climáticas, que alteram regime regular de chuvas), e 2) riscos da poluição (vide artigo 11, lei 9.433/97) .

Desta forma, frente à dominialidade pública, passou a ser necessária a prévia outorga para a exploração dos recursos hídricos (artigo 12, lei 9.433/97). Apenas excepcionalmente a outorga de uso é dispensada, como para uso em “pequenos núcleos populacionais, em meio rural” (artigo 12, §1º, lei 9.433/97), dentre outras situações.

Verifica-se, com isto, a instituição da gestão pública dos recursos hídricos, medida que, por si só, mostrou-se ineficaz, conforme destacamos e verificamos em outros momentos históricos.

Tendo em vista que a lei 9.433, cumprindo com o mandamento constitucional, destacou dentre os seus objetivos a necessidade de assegurar à atual e futuras gerações a disponibilidade de águas, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos, fez-se necessário, na situação de escassez, o estabelecimento de mecanismos de gerenciamento deste recurso, sendo que o artigo 5º da LPNRH menciona os denominados Planos de Recursos Hídricos, como um dos instrumentos de gerenciamento.

Ainda no gerenciamento, promoveu a LPNRH a descentralização da atividade de gestão e regulativa, pois, conforme disposto no artigo 1º, V, lei 9.433, ficou estabelecido que a bacia hidrográfica é a unidade territorial base para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e a atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

É importante esclarecer que, por Bacia Hidrográfica ou Bacia de Drenagem entende-se “a extensão de escoamento de um rio central e seus afluentes”4. Podemos exemplificar e elucidar com a Bacia do Paraná, que é composta pelo rio central, isto é, pelo Rio Paraná (cujo curso passa pela divisa entre Estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul, descendo pelo oeste da região sul, passando pelas fronteiras dos Estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul com Paraguai e Argentina), compondo ainda esta bacia todos os demais rios que no rio central deságua (Podemos citar como exemplos os Rios Grande, Tietê, dentre outros), e os afluentes destes rios.

Desta forma, as decisões pertinentes a regulação e gerenciamento (como prioridades de uso, em caso de escassez de recursos) serão tomadas por Bacia Hidrogáfica, sendo que, no âmbito de cada uma destas será constituído um Comitê de Bacia5, que conta com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades envolvidas6.

Estes comitês7 irão elaborar, de forma descentralizada, e por Bacia Hidrográfica, os Planos de Recursos Hídricos, os quais visam orientar e viabilizar a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e o gerenciamento dos recursos hídricos. Estes planos são elaborados por Bacia Hidrográfica, por Estado e para o País (artigo 8º, PNRH); são planos de longo prazo, com horizonte de planejamento compatível com o período de implementação de seus programas e projetos, com análise da situação atual, metas de uso racional, disponibilidade futura etc. (vide artigo 7º, PNRH).8

Neste quadro, a divisão da análise dos recursos hídricos por Bacia Hidrográfica (descentralização), com a criação de Comitês no âmbito de cada uma delas (com composição dos mais diversos setores de uso dos recursos hídricos, em especial participação comunitária) permitiu o melhor gerenciamento do uso múltiplo da água, bem de domínio público, e escasso. Possibilitou, inclusive, um amplo e completo monitoramento sobre a atual situação dos recursos hídricos no país (cf. verificado pelo monitor de secas9, amplamente disponível para consultas, administrado de forma nacional pela Agência Nacional de Águas – ANA)10.

Em conclusão, na experiência relacionada com a escassez dos recursos hídricos, conforme verificado, ganharam destaques a gestão descentralizada e comunitária do aludido recurso essencial, de modo a permitir, atualmente, o mais amplo e completo acesso às informações para a tomadas de decisões importantes a assegurar a disponibilidade do recurso essencial para as mais diversas atividades.

Trata-se de uma experiência exitosa, que permite a própria tomada de medidas eficazes, e que pode ser replicada, por exemplo, na gestão dos biomas brasileiros, igualmente essenciais para estabilidade ecológica e climática, por meio da implementação de uma descentralização da gestão, controle e fiscalização dos biomas (por Biomas), com o auxílio de Comitês de Biomas (especialmente comunitários), para contribuição no estabelecimento de uma Política Nacional de Proteção dos Biomas.11

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1 De acordo com o último relatório sobre a lacuna de emissões 2021 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), os novos compromissos climáticos apresentados na COP 26 ficam muito aquém do que é necessário para cumprir as metas do Acordo de Paris, deixando o mundo no caminho para um aumento da temperatura global de pelo menos 2,7°C ainda neste século. UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME (2021). Emissions Gap Report 2021: The Heat Is On – A World of Climate Promises Not Yet Delivered. Nairobi. Disponível em:< https://www.unep.org/emissions-gap-report-2021>. Acesso em: 15/07/2022.

2 JACOBI, P. R.; CIBIM, J. C.; SOUZA, A. N. Crise da água na região metropolitana de São Paulo – 2013/2015. GEOUSP Espaço e Tempo (Online), [S. l.], v. 19, n. 3, p. 422-444, 2015. DOI: 10.11606/issn.2179-0892.geousp.2015.104114. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/geousp/article/view/104114. Acesso em: 3 jun. 2023.

3 SANTILLI, Juliana. A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei 9.433/97) e sua Implementação no Distrito Federal. Revista de Direito Ambiental, vol. 24/2001, p. 144 – 169, Out - Dez / 2001

4 Para maiores esclarecimentos, vide: https://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/geografia/o-que-e-bacia-hidrografica.htm. Acessado em 02/06/2023.

5 Sobre todos os órgãos que compõem o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, vide artigo 33, da Lei 9.433. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9433.htm. Acessado em 02/06/2023.

6 Em âmbito nacional, o Dec. 10.000, de 03.09.2019, regulamentou a composição e o funcionamento do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, que é composto por representantes dos Ministérios e Secretarias da Presidência da República relacionados com a gestão da água, indicados pelos Comitês Estaduais, dos usuários dos RH, das organizações civis de RH, dentre outros, conforme artigo 3º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/decreto/D10000.htm. Acessado em 02/06/2023.

7 Sobre estes comitês, com detalhes sobre atribuições, composição, vide: https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/gestao-das-aguas/fortalecimento-dos-entes-do-singreh/comites-de-bacia-hidrografica. Acessado em 02/06/2023.

8 Portal de Ecologia Aquática. Instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos e Ferramentas de Gestão. Disponível em: http://ecologia.ib.usp.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=144&Itemid=423. Acessado em 02/06/2023.

9 Disponível em: https://monitordesecas.ana.gov.br/mapa?mes=4&ano=2023. Acessado em 02/06/2023.

10 Autarquia sob regime especial, agência reguladora, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), e atualmente de Combate às Mudanças Climáticas, criada por meio da Lei Federal 9.984/2000, tem, dentre outras atribuições: a) ser responsável pela implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e pela coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; b) ser responsável pela emissão de outorgas de direito de uso de recursos hídricos em rios sob domínio da União (aqueles que atravessam mais de um Estado, os transfronteiriços e os reservatórios construídos com recursos da União); c) ser responsável por disciplinar a implementação, a operacionalização, o controle e a avaliação dos instrumentos de gestão criados pela Política Nacional de Recursos Hídricos; d) estimular à criação dos comitês de bacias hidrográficas, que de forma descentralizada, permitem uma regulação eficiente. Ver mais em https://www.cnm.org.br/areastecnicas/itemdicionario/ana-agencia-nacional-de-aguas. Acessado em 02/06/2023.

11 Conforme destacado por Carlos Nobre e Thomas E. Lovejoy, em artigo publicado na Revista SCIENCE ADVANCES - AMAZON TIPPING POINT - Volume 4, fevereiro de 2018, o Bioma Amazônico, que possui relevância para equilíbrio climático nacional e global, está próximo do seu chamado ponto de inflexão (ou de não retorno). Segundo os cientistas, depois desse ponto, a Amazônia não conseguirá mais se recuperar da degradação, o que trará impactos devastadores não só para a biodiversidade da região, mas para a própria estabilidade climática. Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.aat2340. Acessado 02/06/2023.

Maicon Natan Volpi
Especialista em Direitos Difusos e Coletivos pela ESMPSP (Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo). Advogado. Atuou em convênio com a Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Atualmente exerce o cargo de Analista Jurídico do Ministério Público do Estado de São Paulo.

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