A imunidade tributária é um tema de grande relevância no direito brasileiro, especialmente quando se trata do Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis (ITBI). Prevista na Constituição Federal, a imunidade do ITBI é um direito garantido às pessoas jurídicas que incorporam bens imóveis ao seu patrimônio para a realização de capital social. Daí nosso interesse maior em tratar sobre esse assunto dentro do planejamento patrimonial e sucessório.
O art. 156, § 2º, I, da Constituição Federal estabelece que o ITBI não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.
A título de esclarecimento, será preponderante a receita superior a 50% de toda a operação obtida pela empresa, que será medida de acordo com o previsto no art. 37, do Código Tributário Nacional:
“Art. 37. O disposto no artigo anterior não se aplica quando a pessoa jurídica adquirente tenha como atividade preponderante a venda ou locação de propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua aquisição.
§ 1º Considera-se caracterizada a atividade preponderante referida neste artigo quando mais de 50% (cinqüenta por cento) da receita operacional da pessoa jurídica adquirente, nos 2 (dois) anos anteriores e nos 2 (dois) anos subseqüentes à aquisição, decorrer de transações mencionadas neste artigo.
§ 2º Se a pessoa jurídica adquirente iniciar suas atividades após a aquisição, ou menos de 2 (dois) anos antes dela, apurar-se-á a preponderância referida no parágrafo anterior levando em conta os 3 (três) primeiros anos seguintes à data da aquisição.
§ 3º Verificada a preponderância referida neste artigo, tornar-se-á devido o imposto, nos termos da lei vigente à data da aquisição, sobre o valor do bem ou direito nessa data.”
Ocorreu que essa previsão constitucional foi objeto de discussão no Judiciário, especialmente no julgamento do Tema 796 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). No caso concreto levado à Corte a operação de integralização do capital social foi repartida: parte do patrimônio foi destinada à formação do capital social e outra parte fora destinada à reserva de capital, pretendendo o interessado que a imunidade fosse aplicada à totalidade da operação, e não somente na parte que compôs o capital social.
No julgamento, o STF decidiu, por maioria de votos, que a imunidade do ITBI não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado (a exemplo da reserva de capital). Esta foi a tese fixada no STF, interpretando exatamente o que está descrito na regra constitucional.
No caso concreto, portanto, pela inabilidade da operação realizada pela empresa, a parte do patrimônio destinada à conta de reserva de capital jamais poderia ser alcançada pela imunidade prevista na Constituição.
Entretanto, em que pese essa matéria não ser objeto de discórdia perante a administração pública municipal até então, os Municípios, após encerramento do julgamento, passaram a adotar a seguinte postura: cobra-se o ITBI entre a diferença do valor da integralização do capital (feita com base no valor declarado no Imposto de Renda, como autoriza o art. 142, do Regulamento do Imposto de Renda, Decreto 9.580/2018) e o valor de mercado daquele patrimônio.
Adotando esse entendimento, os Municípios desvirtuaram aquilo decidido pelo STF, uma vez que o caso concreto tratava da diferença de ITBI entre capital social e reserva de capital, e não da diferença de capital social e valor de mercado.
Não bastasse isso, outro ponto decidido pelo STF é que a imunidade do ITBI em integralização do capital é incondicionada, não se levando em consideração a preponderância de sua atividade.
É que no voto do relator, Ministro Alexandre de Morais, foi feita uma análise minuciosa do dispositivo legal em discussão (art. 156, §2º, I, da CF), onde, numa leitura mais atenta, fica claro que a questão da atividade preponderante – fator que impediria o gozo da imunidade – somente está relacionada à transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica. Vejamos o trecho do voto:
“Em outras palavras, a segunda oração contida no inciso I - “ nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos , a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil” - revela uma imunidade condicionada à não exploração, pela adquirente, de forma preponderante, da atividade de compra e venda de imóveis, de locação de imóveis ou de arrendamento mercantil. Isso fica muito claro quando se observa que a expressão “nesses casos” não alcança o “outro caso” referido na primeira oração do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF.
[...]
Reitere-se, as hipóteses excepcionais ali inscritas não aludem à imunidade prevista na primeira parte do dispositivo. Esta é incondicionada, desde que, por óbvio, refira-se à conferência de bens para integralizar capital subscrito.
Revelaria interpretação extensiva a exegese que pretendesse albergar, sob o manto da imunidade, os imóveis incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica que não fossem destinados à integralização do capital subscrito, e sim a outro objetivo - como, no caso presente, em que se destina o valor excedente à formação de reserva de capital.”
Em outras palavras, ficou consignado no voto que conduziu o entendimento firmado pelo STF, que a imunidade prevista na Constituição para fins de integralização de capital social é incondicionada, não se limitando à receita operacional preponderante da empresa. Sendo assim a exigência do IBTI sobre a diferença de valor entre o capital social e o valor mercado, por parte dos Municípios, seria abusiva, passível de correção pelo Poder Judiciário. Da mesma forma, obrigar o contribuinte a comprovar a não preponderância da receita operacional antes dos prazos previstos no art. art. 37, do Código Tributário Nacional, não nos parece razoável.
No entanto, as Prefeituras têm estabelecido algumas barreiras para a concessão da certidão de imunidade no âmbito administrativo, causando uma avalanche de processos judiciais (em sua maioria, Mandados de Segurança) para fazer valer o que o próprio Tema 796, do STF já havia garantido: imunidade incondicionada.
E a resistência das Prefeituras se dá em duas frentes distintas. Primeiro, entendem que a imunidade para fins de integralização não é incondicionada, estando atrelada à parte final do inciso I, §2º, do art. 156, da Constituição, a saber, a não preponderância da exploração de atividade imobiliária. Segundo, em verdadeira prática de ‘futurologia’, nega preliminarmente a imunidade do ITBI ao argumento de que, pela mera análise de seu objeto social (CNAE), já vislumbra que haverá preponderância da receita operacional advinda da atividade imobiliária.
E, dentro do planejamento, o patrimonialista poderá adotar pelo menos 3 estratégias para buscar a imunidade do ITBI: i) criar uma receita de baixo risco para a Holding Familiar que seja preponderante (ex.: consultoria empresarial) para garantir a imunidade do ITBI de forma administrativa; ii) pleitear judicialmente, via Mandado de Segurança ou Ação Ordinária, a imunidade do ITBI, demonstrando a distinção (distinguishing) com o caso concreto do Tema 796 (realização de capital x reserva de capital) conforme diversos precedentes () ou iii) em pedido subsidiário, caso o Tribunal não aceite a imunidade incondicionada, requerer que a fiscalização quanto a preponderância da exploração da atividade imobiliária seja realizada após 2 ou 3 anos da aquisição do imóvel, exatamente como determina no art. 37, §§ 1º e 2º, do Código Tributário Nacional.
Aliás, recentemente, tivemos dois precedentes importantes sobre a matéria, envolvendo exatamente as duas estratégias judiciais referidas.
O primeiro precedente, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, trata do Incidente de Arguição de Inconstitucionalidade Cível nº 0705115-03.2021.8.07.0018 (DJe de 27/04/2023), que contestava lei distrital sobre imunidade do ITBI:
“INCIDENTE DE ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 3º, §1º, LEI DISTRITAL Nº 3.830/2006 E ART. 2º, §1º, DECRETO DISTRITAL Nº 27.576/2006. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA. ART. 156, §2º, I, CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL. IMUNIDADE INCONDICIONADA. ARGUIÇÃO PARCIALMENTE ACOLHIDA.
1. Arguição de inconstitucionalidade suscitada em Apelação e acolhida pela eg. 6ª Turma Cível, tendo como objeto o §1º do art. 3º da lei Distrital 3.830/06 e o §1º do art. 2º do Decreto Distrital nº 27.576/2006, que regulam a exigência do ITBI no âmbito do Distrito Federal, frente ao art. 156, §2º, I, da Constituição da República.
2. O art. 156, §2º, I, da Constituição da República estabelece duas hipóteses de imunidade relativamente ao ITBI, a primeira delas incondicionada e a segunda, condicionada. São elas: a) não incide ITBI sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital; b) não incide ITBI sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.
4. No julgamento do Tema 796 da Repercussão Geral, RE 796.376/SC, o Supremo Tribunal Federal consignou, nas razões de decidir do voto condutor do acórdão, que “a exceção prevista na parte final do inciso I, do § 2º, do art. 156 da CF/88 nada tem a ver com a imunidade referida na primeira parte desse inciso”. Assim, sedimentou a interpretação de que a imunidade do ITBI relativa à integralização de capital social é incondicionada e a condição de não exercer atividade preponderantemente para se beneficiar dessa imunidade alcança apenas as hipóteses de transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica.
5. Arguição de inconstitucionalidade parcialmente acolhida. Declarada a inconstitucionalidade parcial do § 1º, do art. 3º, da lei 3.830/2006 e do § 1º, do artigo 2º, do decreto Distrital 27.576/2006.”
Já o segundo precedente, que foi considerando pelos mais desatentos como uma vitória no caminho da imunidade, represente, na verdade, um entendimento intermediário, onde o Município não pode exigir antecipadamente o pagamento do ITBI sem esperar a quarentena imposta pelo Código Tributário, independentes da escolhe do objeto social da Holding. Foi o que decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo nos autos da Apelação Cível 1004573-48.2022.8.26 (DJe de 23/05/2023):
“APELAÇÃO CÍVEL Mandado de Segurança – ITBI – Integralização de imóveis do sócio ao capital social da impetrante – Pretendida não incidência do tributo municipal, nos termos do art. 156, § 2º, inciso I, da Constituição Federal – Sentença que denegou a segurança almejada – Reforma do r. decisório – Conquanto seu objeto social seja a administração de bens imóveis próprios e no seu cadastro nacional de pessoas conste a compra e venda de imóveis como atividade econômica, trata-se de empresa constituída recentemente, em 2021 – Impossibilidade de se aferir a atividade preponderante da impetrante, nos termos do art. 37, § 2º, do Código Tributário Nacional – Não incidência do tributo – Ordem concedida – Recurso provido.”
Em suma, a previsão constitucional de imunidade do ITBI é um tema relevante e que merece atenção por parte das empresas e dos profissionais do direito tributário. A decisão do STF no Tema 796 ampliou a proteção aos contribuintes, mas é importante que as empresas estejam atentas aos requisitos estabelecidos pela Constituição Federal e pela jurisprudência para garantir a aplicação legítima da imunidade.
A imunidade do ITBI é uma garantia constitucional importante para as empresas que incorporam bens imóveis ao seu patrimônio, a exemplo das holdings patrimoniais usualmente implementadas nos planejamentos sucessórios, pois evita a incidência de um imposto que pode representar um grande ônus financeiro.
Além disso, é fundamental que as empresas estejam atentas aos requisitos estabelecidos pela Constituição Federal e pela jurisprudência do STF para que possam usufruir da imunidade do ITBI de forma legítima. Caso contrário, podem estar sujeitas a autuações fiscais e ações judiciais que podem gerar prejuízos financeiros e reputacionais.
Por isso, é importante contar com o apoio de profissionais especializados em planejamento patrimonial para garantir o cumprimento das obrigações fiscais e a correta aplicação das normas tributárias. Esses profissionais podem auxiliar as empresas na elaboração de estratégias tributárias adequadas e na defesa de seus interesses perante os órgãos fiscalizadores e judiciais.