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Emendas de orçamento impositivo prejudicam as contas públicas?

A EC 126/22 aumentou a margem de receita corrente líquida vinculada às emendas de orçamento impositivo. Isso é bom ou ruim?

14/6/2023

A Emenda Constitucional 126/22 aumentou a margem de receita corrente líquida vinculada às emendas orçamentárias de execução obrigatória. Notadamente, a Emenda ajustou § 9º do art. 166 da Constituição Federal para elevar de 1,2% para 2% da receita corrente líquida (RCL) o limite de aprovação das emendas individuais ao projeto de lei orçamentária (PLOA). No mesmo artigo da Constituição, houve a inserção do § 9º-A, para dispor sobre a repartição desse limite, sendo 1,55% para as emendas de Deputados e 0,45% para as de Senadores.

Outrossim, dá-se nova redação ao § 17, para ampliar para 1% da RCL o limite dos restos a pagar de programações provenientes de emendas individuais e de bancada estadual que poderão ser considerados para fins de cumprimento da execução financeira. Na prática, isso significa um aumento da margem de poder decisório dos parlamentares sobre o orçamento púbico.

1. A expansão da impositividade de emendas é algo prejudicial?

Sim e não. Depende da perspectiva adotada. Se estivermos falando da questão referente ao planejamento da administração pública, a impositividade das emendas é algo negativo porquanto dispersa recursos conforme interesses provincianos distintos de grupos de parlamentares. Por outro lado, a impositividade das emendas traz seriedade à lei Orçamentária Anual ao limitar contingenciamentos temerários de recursos pelo Poder Executivo. Ressalta-se que não há possibilidade de, por si só, o sistema de emendas orçamentárias de execução obrigatória causar desequilíbrio orçamentário.

2. O orçamento impositivo segundo José Maurício Conti

Inicialmente, cabe esclarecer que o chamado “orçamento impositivo”, na visão de José Maurício Conti, nada mais é do que “a denominação que se atribui à obrigatoriedade de cumprir a lei orçamentária”. O autor defende que o termo seria um pleonasmo, porquanto “o orçamento público é lei, e toda lei, obviamente, existe para ser cumprida”1.

O autor compreende, no entanto, o contexto do “Orçamento impositivo”, porquanto a “obrigatoriedade” da lei orçamentária nem sempre é observada. Conforme Conti, a frequência com a qual os Poderes Executivos de todas as esferas de governo abusam de instrumentos de flexibilidade acarreta o esvaziamento da lei orçamentária. Isso porque o Executivo frequentemente contingencia dotações (isto é, limita o desembolso de recursos) de modo a impedir que sejam executadas as despesas antes de findo o exercício, realocando recursos com base em margens de remanejamento pré­aprovadas e de forma excessiva, e utilizando­se de outras tantas manobras orçamentárias2.

O orçamento impositivo é uma resposta a essa prática do Poder Executivo. A disputa de poder político motivou a aprovação de várias emendas constitucionais. O instituto das emendas parlamentares impositivas, de execução obrigatória pelo Poder Executivo, foi acolhido pela Constituição Federal após as Emendas 86/15 e 10019. Essa impositividade, entrementes, representa exceção à natureza autorizativa da lei orçamentária, subtraindo relevante parcela de atribuições da Chefia daquele Poder, inclusive em termos de planejamento e gestão pública.

Na EC n. 105, fixaram-se regras próprias para as emendas que contemplem transferências de recursos do orçamento federal para os Estados, Distrito Federal e Municípios, criando-se as “transferências especiais”. Seria um esforço dos parlamentares para fazer chegar às suas bases eleitorais os recursos captados do orçamento federal. José Maurício Conti observa que, ao mesmo tempo, a emenda “envolve questões orçamentárias relevantes, como a efetividade da lei orçamentária, a disputa de poder entre o Executivo e o Legislativo, e as relações federativas em matéria fiscal”3.

José Maurício Conti enumera, no entanto, alguns problemas referentes à impositividade de emendas ao orçamento anual: (1) O orçamento impositivo “engessa” a atuação do governo e compromete a eficiência da administração; (2) As emendas parlamentares atendem apenas a interesses paroquiais, desorganizam o planejamento e o orçamento, prejudicam a gestão e comprometem as políticas públicas; e (3) A PEC do Orçamento Impositivo é um casuísmo.4

Pondera o autor, contudo, que o orçamento impositivo vem valorizar a lei orçamentária, tem por finalidade conferir maior efetividade a seus dispositivos e, razão pela qual, devem ser apoiadas as ações no sentido de implementá­lo.5

No tocante ao planejamento, não há dúvidas de que o sistema de obrigatoriedade de execução de emendas prejudique sua eficácia. Isso porque a flexibilidade faz parte da atividade planejadora. Nas palavras de José Maurício Conti:

[...] a atividade planejadora é abrangente, podendo-se nela constatar, entre suas várias características, a complexidade, dada a “multiplicidade de elementos que a onstituem, de seu procedimento, dos diversos interesses que envolvem e dos inúmeros sujeitos que dela participam”, a orientação finalística, “na medida em que intenciona concretizar finalidades públicas e objetivos específicos”, a seletividade, dada a necessidade de seus resultados dependerem de um objeto bem definido, que deve ser claro, específico e exequível, a flexibilidade, com a “possibilidade de alteração e correção contínua do processo de planejamento e dos produtos desse processo”, que “permitirá retificar efeitos indesejados do planejamento e corrigir seus rumos no intuito de atingir os objetivos públicos esperados”, de tal modo que preserve “uma proteção mínima de segurança jurídica dos afetados pelo plano e, de outro lado, um grau adequado de discricionariedade decisória da autoridade pública para atingir os objetivos públicos que dependam do planejamento estatal”6.

Resta saber como funcionam as emendas orçamentárias na prática.

3. Como funciona hoje o sistema de emendas orçamentárias?

Há atualmente 4 (quatro) modalidades de emendas parlamentares ao orçamento público devidamente registradas com identificadores de resultado primário (RP) na lei Orçamentária Anual (LOA): emendas parlamentares individuais (identificador RP 6); emendas parlamentares de bancada estadual ou do Distrito Federal (identificador RP 7); emendas parlamentares de comissão (identificador RP 8); e emendas de relator-geral, que é o parlamentar que organiza e ajusta o projeto de lei orçamentária (identificador RP 9).

O que são esses identificadores “RP”? O identificador de resultado primário (RP), de caráter indicativo, tem como finalidade auxiliar a apuração do resultado primá-rio previsto, devendo constar no projeto de lei orçamentária e na respectiva lei em todos os grupos de despesa. No caso, ele também é utilizado para fazer a marcação orçamentária dos recursos destinados às emendas parlamentares7.

Em regra, somente as emendas parlamentares individuais e as emendas parlamentares de bancada podem ser formalmente classificadas como impositivas, em virtude dos §§ 9º e 12 do artigo 166 da Constituição.

Reconhece-se, entretanto, que há uma dificuldade prática de estabelecer limites para a impositividade das demais modalidades de emendas (as de comissão e as do relator geral). Rodrigo Faria esclarece essa questão:

A Emenda Constitucional 100, de 27 de junho de 2019, todavia, não somente trouxe a obrigatoriedade de execução das emendas de bancada, mas, também, outra inovação paradigmática: o estabelecimento do dever de execução das programações orçamentárias. Na sequência, a Emenda Constitucional nº 102, de 26 de setembro de 2019, complementou o disposto no § 10 do art. 165, aclarando o alcance do dispositivo, ao estabelecer que o “dever de execução” aplicar-se-ia exclusivamente às “despesas primárias discricionárias8.

Cabe perquirir agora qual o efeito que essas emendas possuem sobre as despesas fixadas no orçamento público.

4. Emendas de orçamento impositivo podem prejudicar o equílibrio das contas públicas?

O autor da emenda decide apenas sobre gastos específicos e não sobre o montante total das despesas do orçamento público. A primeira coisa que se deve ter em mente é que o parlamentar não aumenta as despesas previstas no orçamento, porquanto as emendas ao projeto de lei orçamentária não são propriamente despesas, mas sim instrumentos constitucionais para defini-las. Sujeitam-se, logo, a inúmeras normas de origem constitucional, legal e regimental.

Na prática, emendas parlamentares não aumentam o total de despesas em razão dos cancelamentos que devem ser realizados em outras programações constantes do projeto do orçamento como condição para emendar o projeto de lei orçamentária, na forma do inciso II do §3º do artigo 166 da Constituição9.

Há, nessa situação, um efeito-substituição, com a troca de despesas propostas pelo Executivo por despesas propostas pelo Legislativo, deslocando-se parcela do poder decisório sobre o orçamento do Executivo para o Legislativo em um montante fixo de recursos. Observa-se que, embora haja percentuais mínimos de execução obrigatória10, inclusive o montante total de emendas de orçamento impositivo poderia diminuir nos casos extremos em que não houvesse despesas primárias discricionárias passíveis de anulação11.

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1 Doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP). Mestre em Direitos Humanos (UFMS). Extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck. Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul.

2 CONTI, José Mauricio. A luta pelo Direito Financeiro. São Paulo: Blucher, 2022 (item 3.1. – “Disputa de poder traz o orçamento impositivo de volta ao debate”, pp. 85-89).

3 Ibid.

4 Ibid.

5 CONTI, José Maurício. Levando o Direito Financeiro a sério. 3ª ed. São Paulo: Blucher, 2019 . “Aprovação do ‘orçamento impositivo’ é insuficiente para dar credibilidade à Lei Orçamentária”, pp. 235-240.

6 Ibid.

7 CONTI, José Maurício. O planejamento orçamentário da administração pública no Brasil. São Paulo: Blucher, 2020. Cap. 2, pp. 80.

8 Segundo Rodrigo Faria, uma das primeiras alterações nas regras centrais de funcionamento das instituições orçamentárias no âmbito congressual “remonta aos exercícios financeiros de 2007/2008, portanto, no período de transição do primeiro para o segundo mandato do presidente Lula, e é representada pela criação  e utilização do identificador de resultado primário (RP) para finalidades distintas daquelas que originaram sua instituição. A finalidade central do identificador de resultado primário, existente desde a edição da Lei nº 10.266, de 24.07.2001 (LDO-2002), é a de auxiliar a apuração do resultado primário do governo federal. Todavia, o governo Lula, por intermédio da criação do RP-3 para identificação do Projeto-Piloto de Investimentos Públicos (PPI), redirecionou o instrumento RP para fazer a marcação orçamentária de projetos prioritários para o governo. [...] Ademais, tais mudanças normativas repercutiram na elaboração de emendas parlamentares por intermédio de regras específicas aos pareceres preliminares do PLOA, no âmbito da CMO, e, principalmente, por intermédio da atribuição da competência fundamental de fechamento e definição da carteira prioritária do RP-3, no âmbito congressual, ao relator-geral do PLOA”. Fonte: FARIA, Rodrigo. O redesenho das instituições orçamentárias, a explosão das emendas de relator-geral RP-9 e o julgamento do orçamento secreto pelo STF. Revista Brasileira de Planejamento e Orçamento (RBPO), Volume 13, e2302. RBPO: Brasília, 2023, p. 5-8.

9 Ibid , p. 10-11.

10 Art. 166. [...]. § 3º As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso:[...]; II - indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os provenientes de anulação de despesa [...].

11 No caso, 2% (dois por cento) para emendas individuais e 1% (um por cento) para emendas de bancada, calculados sobre receita corrente líquida do exercício anterior (§§ 9º e 12 do artigo 166 da Constituição).

12 Inteligência da interpretação conjunta do II do §3º do artigo 166 com os §§ 3º e 4º do artigo 107 do ADCT. Nesse sentido: BRASIL. Senado Federal. Nota Técnica 42/2019. Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle. Assunto: PEC 34/2019, que “altera os arts. 165 e 166 da Constituição Federal, para tornar obrigatória a execução da programação orçamentária que especifica”. Senado Federal: Brasília, 2019.

Caio Gama Mascarenhas
Doutorando em Direito Econômico e Financeiro (USP). Mestre em Direitos Humanos (UFMS). Extensão em federalismo comparado pela Universität Innsbruck. Procurador do Estado do Mato Grosso do Sul.

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