A Constituição Federal estabelece como cláusula pétrea, ou seja, como direito fundamental que não pode ser mitigado ao consectário da oportunidade e da conveniência, a inviolabilidade da vida privada da pessoa, conforme disposto no artigo 5º, X, da Carta Magna:
“são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Nesse sentido, o artigo 5º, XII, da CF/88 estabelece que os sigilos de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas também são invioláveis, mas como qualquer direito fundamental não pode ser utilizado para justificar ações que prejudiquem a coletividade, uma vez que os direitos fundamentais não são absolutos, quando o cidadão utiliza expedientes não republicanos para praticar crimes, e essa suspeita é baseada em juízo de verossimilhança, o referido dispositivo constitucional autoriza o afastamento da citada cláusula pétrea:
“é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”
Sendo assim, nas apurações de crimes financeiros, quando a investigação é lastreada em juízo documental de probabilidade criminosa, a orientação jurisprudencial que prevalece no âmbito do Superior Tribunal de Justiça tem interpretado que o sigilo das comunicações telefônicas possui maior relevância constitucional que os sigilos bancário (movimentações financeiras) e fiscal (declarações fiscais), uma vez que representa a livre expressão do pensamento durante a comunicação verbal:
“No cotejo das garantias constitucionais protetoras da intimidade e privacidade do indivíduo, pode-se dizer que o sigilo das comunicações telefônicas constitui uma das liberdades públicas mais importantes do indivíduo, pois representa a exigência de livre expressão do pensamento externado durante a comunicação verbal, portadora dos segredos mais íntimos da pessoa humana.
A seu turno, a proteção do sigilo bancário objetiva salvaguardar informações pessoais estáticas, em regra unipessoais, referentes à movimentação de fluxos monetários, de conhecimento das instituições financeiras e de seus prepostos. Pela dicção constitucional, há uma forte proteção às comunicações telefônicas, de modo que seu fluxo somente pode ser interceptado para fins penais, o que não ocorre com o sigilo bancário, em que se permite até o compartilhamento de informações entre instituições financeiras.
(HC n. 349.945/PE, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 6/12/2016, DJe de 2/2/2017.)”
Isso não quer dizer que a violação ao sigilo bancário e fiscal dispense fundamentação lastreada em juízo de probabilidade da medida invasiva, isto é, dos motivos que levaram a invasão ao direito da privacidade do cidadão. Trocando em miúdos, é ilegal a decisão que autoriza o afastamento de sigilo bancário e fiscal quando não há justificativa antecedente que permita concluir pela indispensabilidade da medida. No julgamento do RMS n. 25.174/RJ, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/2/2008, DJe de 14/4/2008 foi provido recurso que vindicava o desentranhamento de provas obtidas a partir da quebra desarrazoada de sigilo bancário e fiscal. Confira trechos da parte final do voto exarado pela eminente Ministra Relatora:
“Neste ponto, cumpre anotar que a quebra de sigilo bancário e fiscal é medida violenta, que não pode servir ao perigoso intuito de devassa injustificada, sob pena de tornar vazia a garantia constitucional da privacidade do cidadão, somente afastada diante da demonstração de motivos suficientemente hábeis e no mínimo de indícios concretos da conduta supostamente delituosa.
Ante o exposto, conheço do recurso e lhe dou provimento, para o fim de impedir a quebra dos sigilos fiscal e bancário dos recorrentes, determinando-se, em face disso, o desentranhamento de eventuais documentos já colhidos na origem; sem prejuízo de nova postulação na qual seja concretamente descortinada a ligação dos mesmos com as organizações suspeitas de participar do suposto esquema delituoso.”
Portanto, quando a causa provável não é fundamentadamente indicada na decisão que autoriza o afastamento do sigilo bancário e fiscal, há ruptura reflexa a intimidade da pessoa, e a prova produzida a partir dessa inadequação constitucional é considerada nula:
“A quebra do sigilo inerente aos registros bancários, fiscais e telefônicos, por traduzir medida de caráter excepcional, revela-se incompatível com o ordenamento constitucional, quando fundada em deliberações emanadas de CPI cujo suporte decisório apóia-se em formulações genéricas, destituídas da necessária e específica indicação de causa provável, que se qualifica como pressuposto legitimador da ruptura, por parte do Estado, da esfera de intimidade a todos garantida pela Constituição da República.
(MS 25668, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 23/03/2006, DJ 04-08-2006 PP-00027 EMENT VOL-02240-03 PP-00410 RTJ VOL-00200-02 PP-00778 RCJ v. 20, n. 129, 2006, p. 55-66)”
Com efeito, para que seja justificado o afastamento do sigilo das comunicações telefônicas, que visa à apuração de crimes financeiros, é indispensável que a investigação policial seja feita de maneira crescente, isto é, iniciando-se pela colheita de provas menos invasiva, podendo ser estendida até a fase da interceptação telefônica, nos termos do artigo 2º, II, da lei 9.296/96:
“Art. 2° Não será admitida a interceptação de comunicações telefônicas quando ocorrer qualquer das seguintes hipóteses:
II - a prova puder ser feita por outros meios disponíveis;”
Destarte, nas investigações de crimes financeiros, onde a prova documental é mais importante que a prova oral, se a investigação é feita de forma decrescente ou de maneira inversa (mais invasiva para menos invasiva), isto é, originando-se de interceptação telefônica para se chegar ao afastamento do sigilo bancário e fiscal, há ofensa direta ao disposto no artigo 2º, II, da lei 9.296/96 e, conseqüentemente, há violação reflexa ao artigo 5º, XII, da Constituição Federal:
“Ao dispor que "é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal", o art. 5º, XII, da Constituição estabeleceu uma regra geral de proteção ao sigilo das comunicações telefônicas e criou a possibilidade excepcional da sua relativização, na forma da lei. Vale dizer, enquadrar-se nos termos da lei (no caso, a lei 9.296/96) é um requisito para que a quebra do sigilo de comunicações telefônicas seja válida, como ressalva à regra geral de inviolabilidade, pois é só dentro dos limites legais que se admite a relativização da garantia fundamental. Em contrapartida, violar esse sigilo fora das hipóteses previstas pelo legislador implica a ilicitude da diligência, e não a sua validade.
(HC n. 695.895/MS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 8/11/22, DJe de 16/11/22.)”
Em conclusão, se, por um lado, prevalece o entendimento no sentido de que o relatório de inteligência financeira produzido pelo COAF pode justificar o afastamento do sigilo bancário e fiscal, por outro, nas apurações de crimes financeiros, a validade da prova produzida por interceptação telefônica dependerá da análise do binômio razoabilidade e necessidade, uma vez que a livre expressão do pensamento durante a comunicação verbal tem maior relevância constitucional que o sigilo bancário e fiscal.
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Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996.
https://www.migalhas.com.br/depeso/386856/a-forca-probatoria-dos-relatorios-de-inteligencia-financeira.
HC n. 349.945/PE, relator Ministro Nefi Cordeiro, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 6/12/2016, DJe de 2/2/2017.
RMS n. 25.174/RJ, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 19/2/2008, DJe de 14/4/2008.
MS 25668, Relator(a): CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 23/03/2006, DJ 04-08-2006 PP-00027 EMENT VOL-02240-03 PP-00410 RTJ VOL-00200-02 PP-00778 RCJ v. 20, n. 129, 2006, p. 55-66.
HC n. 695.895/MS, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 8/11/2022, DJe de 16/11/2022.
HC n. 137.349/SP, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 5/4/2011, DJe de 30/5/2011.
HC n. 375.683/SP, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 19/10/2017, DJe de 8/11/2017.
RMS n. 35.410/SP, relatora Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, julgado em 22/10/2013, DJe de 5/11/2013.
HC n. 191.378/DF, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 15/9/2011, DJe de 5/12/2011.
RMS n. 52.677/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 27/4/2017, DJe de 5/5/2017.
RHC n. 45.207/PA, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, relator para acórdão Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 26/8/2014, DJe de 3/2/2015.
RHC n. 119.342/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 20/9/2022, DJe de 6/10/2022.
HC n. 88.825/GO, relator Ministro Arnaldo Esteves Lima, Quinta Turma, julgado em 15/10/2009, DJe de 30/11/2009.