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Patentes essenciais e licenças FRAND na União Europeia*

A Comissão Europeia apresentou, no último dia 27 de abril, uma proposta de regulação do Parlamento Europeu e do Conselho sobre Standard Essential Patents - SEP, e a iniciativa já gerou burburinho no exterior.

13/6/2023

O documento parte de 52 premissas expressas em seu preâmbulo, que, no item 3, apresenta a definição de patentes essenciais como aquelas que "protegem tecnologia que está incorporada a um padrão", de modo que a “implementação do padrão demanda o uso das invenções compreendidas pelas patentes essenciais”. O mesmo item também define, como compromisso FRAND (acrônimo em inglês para “justo, razoável e não-discriminatório”), o “compromisso contratual voluntário fornecido pelo titular da patente essencial em benefício de terceiros” no sentido de "licenciar aquelas patentes em termos e condições FRAND aos implementadores que escolheram utilizar o padrão".

Em seu conteúdo normativo, a Proposta conta com 72 artigos subdivididos entre 10 títulos. Dentre eles, estão a criação de um “Centro de Competência” pelo EUIPO (Escritório de Patentes da União Europeia, equivalente ao nosso INPI) (Título II) e a definição da natureza e conteúdo das informações que deverão ser disponibilizadas por esse Centro, incluindo os padrões existentes e os royalties agregados, assim como a realização do registro próprio dessas respectivas patentes essenciais (Título III). Além disso, destacam-se a exigência de verificações de essencialidade efetiva daquelas patentes declaradas como essenciais ao padrão técnico (Título V) e, principalmente, ao longo de 24 artigos, o desenvolvimento de regras específicas e procedimentos detalhados para a definição dos termos FRAND (acrônimo em inglês para “justos, razoáveis e não-discriminatórios”) de uma possível licença (Título VI).

As normas incluídas no texto sugerido para a Regulação buscam a ampliação do licenciamento de patentes essenciais e a adoção irrestrita de padrões técnicos, especialmente pela indústria da Internet das Coisas (“Internet of Things – IoT”), uma vez que a padronização é imprescindível para que haja interoperabilidade entre os produtos de diferentes empresas e setores da cadeia produtiva nesse cenário tecnológico.

Embora proponha uma Regulação densa, a Comissão Europeia reconhece que há relações comerciais e práticas de licenciamento bem-estabelecidas em alguns casos e, quanto a eles, considera que determinadas normas não devem ser aplicadas, desde que não sejam observadas ineficiências ou dificuldades substanciais (item 4 do preâmbulo). Caso contrário, inclusive nas hipóteses de padrões e negociações anteriores à sua entrada em vigor, a Regulação deve se fazer valer por completo, promovendo mais transparência nessas tratativas negociais e, assim, cumprindo com seu objetivo principal.

A normativa proposta é resultado de amplo debate. Ainda no final de 2020, a Comissão Europeia publicou um Plano de Ação em Propriedade Intelectual1 salientando a "necessidade de uma estrutura muito mais clara e previsível” para o licenciamento de patentes essenciais, projetando sua iniciativa nas numerosas propostas dos membros do "Grupo de Peritos em Licenciamento e Avaliação de Patentes Essenciais Padrão" da Comissão.

A Proposta surge nesse contexto, objetivando, de maneira indireta, (i) assegurar que os usuários finais, incluindo as pequenas empresas e os consumidores2, beneficiem-se, a partir de preços razoáveis, de produtos baseados nas tecnologias padronizadas, (ii) tornar a UE um local atraente para a inovação e o desenvolvimento de padrões, e (iii) assegurar que titulares e implementadores inovem, fabriquem e vendam produtos na UE e sejam competitivos nos mercados mundiais3.

De acordo com o Relatório de Avaliação de Impacto4 da proposta, os tribunais europeus têm analisado as questões relacionadas com os termos FRAND em litígios nacionais com base nas leis dos Estado-Membros e das especificidades dos litígios que lhes são apresentados. Esses processos revelam abordagens diferentes no que diz respeito às determinações dos termos FRAND às patentes essenciais, muito decorrentes da falta de transparência e da complexidade das questões que são centrais para isso, como a essencialidade das patentes, a comparabilidade entre as licenças e o cumprimento dos requisitos dos termos FRAND. Por isso, se aceita, a Proposta deverá impactar na uniformização jurisprudencial ao menos entre os países da União Europeia.

Contudo, embora a Regulação sugerida pareça estar atenta aos interesses de todos os envolvidos, em ambos os lados da equação e no entorno dela, e apesar de ter sido festejada por alguns em razão de seus ideais de transparência e equilíbrio5, a Proposta também gerou repercussão negativa, inclusive entre implementadores. Parte disso se relaciona com a remoção do dispositivo que normatizava o conceito básico de que o compromisso FRAND deve ser irrestrito6, como ressaltado pela App Association7.

Do outro lado, alguns titulares de patentes identificaram que a proposta estabeleceria novos obstáculos à sua proteção, incluindo um atraso de até nove meses para promover ações judiciais cabíveis nos cenários em que o licenciamento não foi possível, uma vez que este seria o prazo máximo para o procedimento de definição dos termos FRAND, que deve ocorrer antes da judicialização (Art. 37).

Ainda pelas titulares, embora o texto faça referência às determinações globais do compromisso FRAND (item 8 do preâmbulo), também há preocupações de que a sua orientação geral seja fortemente favorável à aplicação da fixação da taxa de royalties FRAND numa base regional. Tal resultado fático estaria alinhado à posição das empresas chinesas, que estão entre as implementadoras mais proeminentes de patentes essenciais em diversas áreas da indústria, e que alegam que as taxas globais não refletiriam as diferentes margens praticadas por elas em cada país.

Tudo isso teria causado desconforto nos Estados Unidos8, em razão de sua disputa comercial global com a China, e também na própria Europa, tendo o Instituto Europeu de Normas de Telecomunicações (tradução livre de ETSI – European Telecommunications Standards Institute) manifestado seu receio quanto à possível perda da posição de prestígio alcançada pelos Tribunais europeus nas discussões sobre as patentes essenciais e o licenciamento FRAND9.

Afinal, ao criar procedimentos obrigatórios para as discussões travadas no âmbito da União Europeia, existe o risco de que não haja uma direta redução dos litígios sobre o tema, mas tão somente a migração daquelas demandas que, inicialmente, seriam propostas na Europa para uma outra jurisdição10, como Estados Unidos, a própria China11 ou, até mesmo, o Brasil. As cortes brasileiras já foram acionadas, por diversas vezes, especialmente a partir de 2020, para dirimir os reflexos nacionais de disputas que possuem natureza global, como aquelas entre DivX e Netflix, Samsung, TCL ou, por último, a Amazon, ou entre Ericsson e Apple, que, inclusive, chegou ao Superior Tribunal de Justiça12.

Para nós, a atenção não decorre apenas da possibilidade de recepção de novos casos judiciais que outrora seriam movidos na Alemanha, por exemplo, mas sim do fato de que a Proposta da Comissão Europeia pode vir a se tornar, em breve, um marco para a possível regulação nacional do tema, cuja discussão a respeito já existe13, a exemplo do que ocorreu com o GDPR – General Data Protection Regulation, que, da Europa, inspirou a edição da Lei Geral de Proteção de Dados no Brasil.

A Proposta deverá ser acordada com os países da União Europeia e o Parlamento Europeu antes de se tornar lei e pode ser alterada.

__________

*Agradecemos a participação de Vitória Cristina Gonçalves Costa, que contribuiu para a produção deste texto a partir da realização das pesquisas iniciais sobre o assunto.

1 Agradecemos a participação de Vitória Cristina Gonçalves Costa, que contribuiu para a produção deste texto a partir da realização das pesquisas iniciais sobre o assunto.

2 Disponível em . Acesso em: 06.06.2023.

3 Disponível em . Acesso em: 06.06.2023.

4 Segundo Heloisa Carpena, “Pela mesma ratio, os objetivos e o alcance da licença em condições e termos FRAND devem ser determinados pelo critério da máxima efetividade dos direitos previstos no CDC, com vistas à maior eficiência do mercado. Esta eficiência está imbricada com o bem estar do consumidor (consumer welfare)e se concretiza não apenas no aspecto do acesso ao consumo, através da prática de preços menores, como também pelo aspecto puramente técnico, pela melhoria da qualidade dos produtos e serviços e consequente redução dos riscos. (...) O interesse dos consumidores dos aparelhos comercializados no Brasil, concretizado no direito de acesso ao consumo, deve ser contemplado no reconhecimento dos deveres do licenciador, titular de patente essencial, de modo a prevenir o abuso de posição dominante e assim garantir a eficiência do mercado.” (CARPENA, Heloisa. Diálogos entre direito do consumidor e propriedade intelectual: o caso das patentes essenciais. Revista da ABPI, São Paulo, n. 177, mar./abr. 2022, p. 100-101).

5 Disponível em . Acesso em: 25.05.2023.

6 Idem.

7 Mercedes e Volkswagen reconheceram que a regulação proposta ofereceria mais transparência e equilíbrio nas negociações de licenciamento.

8 WILD, Joff, “There is still time for a rethink on the EU’s proposed SEP licensing regulation”. Disponível em . Acesso em: 25.05.2023.

9 O trecho cuja remoção do texto final causou preocupações à App Association é o seguinte: “If  a patent owner makes this promise (called ‘FRAND commitment’), it cannot refuse to license its SEPs to a party who is willing to agree to FRAND terms and conditions”. Disponível em . Acesso em 06.06.2023.

10 Disponível em . Acesso em: 25.05.2023.

11 Disponível em . Acesso em: 25.05.2023.

12 Kluwer IP Law, “A Short Summary of the Recently Leaked EU Regulation Proposal on Standard Essential Patents”. Disponível em . Acesso em: 25.05.2023.

13 A postura dos Tribunais chineses de conceder “anti-suit injunctions” em desfavor de titulares de patentes essenciais, para que estas estivessem impedidas de realizar o enforcement de seus títulos em outros países, e de não publicar ou viabilizar acesso a determinadas decisões judiciais chinesas levou a União Europeia a solicitar, em 07.12.2022, o estabelecimento de um painel perante o órgão de resolução de disputas da Organização Mundial do Comércio – OMC em razão das alegadas violações a dispositivos de tratados internacionais, em especial do Acordo TRIPS. O painel foi estabelecido em 27.01.2023, tendo o Brasil como um dos terceiros interessados (ao todo, são 19), e composto em 28.03.2023 (Disponível em . Acesso em 06.06.2023). Não houve desdobramentos desde então, mas a disputa existente já revela o incômodo causado pelo posicionamento de Tribunais chineses.

14 Em guerra de liminares entre Apple e Ericsson, STJ reforça proteção de patente. Acesso em 01.6.2023.

15 Os caminhos da regulação do tema das patentes essenciais e do licenciamento FRAND já vem sendo discutidos no Brasil e foram objeto de estudo no âmbito dos Diálogos Técnicos do Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual. Sobre o tema: “Na questão relativa a patentes essenciais (SEps) e termos FRAND (fair, reasonable and non-discriminatory), o grupo, que teve a coordenação da ABPI, também esteve dividido. Na apresentação feita por Gabriel Leonardos, as propostas incluíam, entre outros, a promoção de debates públicos em torno do tema, a produção de guias orientando sobre as SEPs e termos FRAND, bem como apoio a debates sobre o tema no âmbito de organizações multilaterais como a OMPI e a OMC.” (Disponível em . Acesso em 01.06.2023).

Gabriel Leonardos
Advogado, sócio do escritório Kasznar Leonardos | Propriedade Intelectual, Mestre em Direito (USP), LLM (Munique), MBA (FGV) e atual presidente da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual - ABPI.

Viviane Trojan
Advogada, sócia do escritório Kasznar Leonardos.

Gabriel Oliveira Guilherme
Advogado inscrito na OAB desde 2019.

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