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TSE acerta na decisão que declarou a inelegibilidade de Dallagnol

É preciso lembrar a dogmática jurídica existe para controlar nossos juízos de prudência (cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr.), bem como a posição hegemônica no mundo do Direito ser um caso especial de argumentação prática geral, a argumentação jurídica é limitada pela lei, pelos precedentes e pela dogmática jurídica (cf. Alexy).

8/6/2023

O Tribunal Superior Eleitoral acolheu recurso para declarar a inelegibilidade do Deputado Deltan Dallagnol, por violação ao art. 1º, I, “q”, da LC 64/90, com a redação que lhe foi dada pela lei da Ficha Limpa. Em síntese, o dispositivo afirma que pessoa que renunciar a cargo de integrante do Ministério Público com processo administrativo disciplinar (PAD) pendente que possa futuramente gerar sua inelegibilidade se tornará inelegível pelo prazo de oito anos, como se nele condenado tivesse sido. A Corte entendeu que Dallagnol incorreu em fraude à lei, porque após condenado em dois PADs a penas de advertência e censura, era alvo de sindicâncias e reclamações que poderiam vir a se tornar processos administrativos disciplinares, os quais poderiam gerar condenação que geraria sua inelegibilidade. Por juízo de verossimilhança (probabilidade), o TSE entendeu-se que houve fraude à lei porque, pelo teor das sindicâncias e reclamações (15 no total), era altamente provável que viesse a sofrer tal condenação, donde entendeu que a renúncia visou evitar isso. Em suma, o TSE entendeu violado o princípio da boa-fé objetiva por Dallagnol, enquanto padrão de conduta imponível à pessoa prudente, por incorrer em abuso de direito enquanto ato ilícito (cf. art. 187 do Código Civil), que afirma ilícita a conduta de invocar um direito formalmente garantido por lei para fim diverso da sua finalidade social e à boa-fé; no caso, fugir de responsabilização funcional que poderia gerar sua demissão e inelegibilidade. Essa é a síntese do essencial da decisão.

Entendo que o TSE acertou, ante interpretação histórica e teleológica da emenda parlamentar que gerou o dispositivo legal em questão, pela Vontade do Legislativo ter pretendido que qualquer procedimento administrativo que possa futuramente gerar inelegibilidade se convertido em PAD-em-sentido-estrito e houver a condenação – o que está em consonância com o entendimento do STF sobre a elegibilidade não ser um “direito”, mas uma prerrogativa criada por lei a cujo regime jurídico a pessoa deve se adequar para poder nele ingressar, que será constitucional desde que respeite os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (STF, ADC 29 e 30 e ADI 4578). Então, cabível a clássica técnica hermenêutica da interpretação extensiva, que desde sempre estende o significado semântico de textos normativos a casos considerados idênticos, mas por um lapso não abarcados na semântica positivada,2 a partir da ideia de que “a lei disse menos do que queria”,3 em razão dos valores que quis prestigiar Cito valores no sentido da célebre teoria tridimensional do Direito de Miguel Reale, pela qual a norma é fruto de um fato ao qual se atribui um valor (a famosa tríade “fato, valor e norma”, no sentido da norma ser um fato valorado positiva ou negativamente pelo Legislativo, donde, como defendo em doutrina, norma = fato + valor).4

Analisemos os temas separadamente – Vontade do Legislativo x natureza jurídica da elegibilidade, à luz do entendimento do STF. Pontue-se que sei de críticas que dizem que o TSE poderia declarar inelegibilidade a partir do conceito de fraude à lei, mas que tal fraude não estaria comprovada no processo. Neste texto, eu me aterei apenas à questão puramente de Direito da possibilidade de declaração judicial de inelegibilidade por fraude á lei, por ser a que gerou mais polêmica na comunidade jurídica.

Na Justificativa da emenda parlamentar que criou o dispositivo que declara a inelegibilidade de integrante do MP que renuncia para evitar risco de condenação em PAD que possa gerar sua inelegibilidade, é textualmente explicado que o que se pretendeu foi “evitar que pedido de exoneração seja realizado para afastar eventual inelegibilidade de membro do MP, o que seria verdadeira burla ao espírito desse Projeto de lei” (que gerou a lei da Ficha Limpa).5 Nesses termos, entendo correta a decisão por interpretação histórica e teleológica da lei, em fusão de horizontes,6 à luz da sua occasio legis, ou seja, do fato concreto que gerou sua propositura e aprovação. Pois a occasio legis é elemento fundamental para definir a ratio legis, a saber, a razão de ser da lei, o fundamento determinante que aponta qual a finalidade que ela pretendeu proteger.7 Logo, o princípio imanente ao art. 1º, I, “q”, da LC 64/90 na norma que este texto normativo quis criar é evitar que se peça exoneração para evitar a demissão, geradora de inelegibilidade, e não “processo administrativo disciplinar” em um sentido estrito do termo,  (cf. infra). Em outras palavras, o princípio imanente ao art. 1º, I, “q”, da LC 64/90 é aquele segundo o qual toda pessoa que renunciar a cargo no Ministério Público ou na Magistratura para evitar uma possível condenação geradora de inelegibilidade deve ser considerada inelegível, sob pena de burla ao espírito da lei, de notório intuito moralizante das candidaturas (cf. STF, ADC 29 e 30 e ADI 4578).

Como se vê, o que o Legislativo de fato pretendeu8 foi que qualquer pedido de exoneração realizado para afastar eventual inelegibilidade de integrante do MP deve gerar a inelegibilidade, porque do contrário se estaria burlando (fraudando) o espírito da lei. Sendo que tal espírito da lei notoriamente foi o de concretizar o princípio da moralidade nas candidaturas a eleições em geral, como expressamente pontua o art. 14, §9º, da CF/88, para que só pessoas que cumprissem os requisitos de idoneidade moral considerados mínimos, enquanto inerentes a uma candidatura a cargo eletivo pudessem se candidatar.  Ou seja, o Legislativo não se preocupou com algum tipo específico de processo ou procedimento; ele se preocupou com a conduta de quem renuncia a um cargo para não ser declarado inelegível se, eventualmente, nele sofresse condenação.

Para finalizar essa análise hermenêutica infraconstitucional, analisemos a concretização legal (o “Direito Posto”) sobre fraude à lei como ato ilícito O pressuposto lógico do abuso de direito como ato ilícito e do correlato conceito de fraude à lei, invocados pelo TSE, é o de usar uma prerrogativa que a lei formalmente concede para finalidade social distinta daquela para a qual foi imaginada ou contrariamente à boa-fé objetiva (cf. art. 187 do Código Civil e teorias do abuso de poder e de direito abstratamente consideradas, com ampla recepção na história institucional de nossa jurisprudência). O direito subjetivo de renúncia obviamente não foi criado com a finalidade de evitar futura condenação geradora de inelegibilidade. Daí a correção da conclusão do TSE de que Dallagnol incorreu em fraude à lei e abuso de direito enquanto ato ilícito ao renunciar no contexto em que renunciou, numa análise à luz do princípio da boa-fé objetiva, enquanto padrão de conduta imponível à pessoa mediana, pelo critério da pessoa prudente. Como não estamos em seara penal criminalizadora, não há nenhum óbice a decisões judiciais concluírem por fraude à lei e abuso de direito enquanto ato ilícito à luz do princípio da boa-fé objetiva, sem ingressar na seara de culpabilidade subjetiva (por dolo direto ou eventual).9

Agora, é preciso verificar se essa Vontade do Legislativo é constitucional ou não.

O ponto principal da crítica ao TSE tem um pressuposto que parece estar sendo tratado como suposto dado incontestável e não um construído dependente das compreensões e pré-compreensões de quem o defende (cf. Gadamer e sua hermenêutica filosófica): o pressuposto de que a elegibilidade é um direito fundamental que estaria sofrendo uma restrição pelos dispositivos inconstitucionais criadores de hipóteses de inelegibilidade, de sorte que, considerada como uma restrição a direito fundamental, deveria ser interpretada de maneira estrita (ou, para alguns/mas, restritiva). Ocorre que a compreensão da elegibilidade como direito fundamental que sofre restrição pelas normas legais de inelegibilidade foi rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal precisamente no julgamento que declarou a constitucionalidade da lei da Ficha Limpa, no julgamento das ADCs 29 e 30 e da ADI 4578, em 2012. Em síntese, o STF entendeu que a elegibilidade é uma prerrogativa criada pela lei (conceito menos amplo que o de direito), lei esta que tem ampla liberdade para condicionar o seu exercício ao cumprimento de requisitos, desde que respeitem os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, caso no qual (entendeu o STF) isso não pode ser considerado “restrição” a direito fundamental ou infraconstitucional. Daí ter entendido pela ausência de violação do princípio da vedação ao retrocesso social pela lei da Ficha Limpa.

Para compreender o precedente, é preciso entender que o que estava em jogo era a interpretação do art. 15, III, da CF/88, pelo qual a cassação de direitos políticos só pode se dar por condenação criminal transitada em julgado. Assim, a lei da Ficha Limpa foi considerada constitucional pelo STF unicamente porque ele entendeu que ela não restringiu direito fundamental nenhum, por não ter entendido a elegibilidade como tal. Os votos vencidos afirmaram a elegibilidade como um direito fundamental objeto de restrição pelas hipóteses de inelegibilidade. Mas os votos vencedores afirmaram que a natureza jurídica da elegibilidade não é de um “direito”, mas de uma “prerrogativa” que para ser exercida depende do atendimento de requisitos legalmente criados – por isso, consideraram constitucionais normas que permitiram a inelegibilidade de pessoas condenadas por 2ª instância e conselhos de classe, por exemplo. E o STF disse que tais requisitos da lei da Ficha Limpa respeitam os princípios da razoabilidade, por ausência de arbitrariedade, e da proporcionalidade – adequação a finalidade constitucionalmente legítima (concretização do princípio da moralidade administrativa, cf. art. 14, §9º, da CF/8810); necessidade por ausência de meio menos gravoso para atingir tal finalidade e proporcionalidade estrita pela existência de benefícios socialmente desejados em termos de moralidade e probidade (princípio da moralidade eleitoral), pela ponderação mostrar que superam os inconvenientes da frustração do interesse individual de candidatura (cf. item 6 da ementa das ADCs 29 e 30 e ADI 4578).

Veja-se fundamentos determinantes do voto vencedor, do Relator para acórdão, Min. Fux, ao desempatar votação que se encontrava em 5x5:

Demais disso, é sabido que o art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal preserva o direito adquirido da incidência da lei nova. Mas não parece correto nem razoável afirmar que um indivíduo tenha o direito adquirido de candidatar-se, na medida em que, na lição de GABBA (Teoria della Retroattività delle Leggi. 3. edição. Torino: Unione Tipografico-Editore, 1981, v. 1, p. 1), é adquirido aquele direito ‘[...] que é conseqüência de um fato idôneo a produzi-lo em virtude da lei vigente ao tempo que se efetuou, embora a ocasião de fazê-lo valer não se tenha apresentado antes da atuação da lei nova, e que, sob o império da lei vigente ao tempo em que se deu o fato, passou imediatamente a fazer parte do patrimônio de quem o adquiriu’ (Tradução livre do italiano). Em outras palavras, a elegibilidade é a adequação do indivíduo ao regime jurídico – constitucional e legal complementar – do processo eleitoral, consubstanciada no não preenchimento de requisitos ‘negativos’ (as inelegibilidades). Vale dizer, o indivíduo que tenciona concorrer a cargo eletivo deve aderir ao estatuto jurídico eleitoral. Portanto, a sua adequação a esse estatuto não ingressa no respectivo patrimônio jurídico, antes se traduzindo numa relação ex lege dinâmica. É essa característica continuativa do enquadramento do cidadão na legislação eleitoral, aliás, que também permite concluir pela validade da extensão dos prazos de inelegibilidade, originariamente previstos em 3 (três) , 4 (quatro) ou 5 (cinco) anos, para 8 (oito) anos, nos casos em que os mesmos encontram-se em curso ou já se encerraram. Em outras palavras, é de se entender que, mesmo no caso em que o indivíduo já foi atingido pela inelegibilidade de acordo com as hipóteses e prazos anteriormente previstos na lei Complementar 64/90, esses prazos poderão ser estendidos – se ainda em curso – ou mesmo restaurados para que cheguem a 8 (oito) anos, por força da lex nova, desde que não ultrapassem esse prazo. Explica-se: trata-se, tão-somente, de imposição de um novo requisito negativo para a que o cidadão possa candidatar-se a cargo eletivo, que não se confunde com agravamento de pena ou com bis in idem. Observe-se, para tanto, que o legislador cuidou de distinguir claramente a inelegibilidade das condenações – assim é que, por exemplo, o art. 1º, I, “e”, da lei Complementar 64/90 expressamente impõe a inelegibilidade para período posterior ao cumprimento da pena. [...] Demais disso, tem-se, como antes exposto, uma relação jurídica continuativa, para a qual a coisa julgada opera sob a cláusula ‘rebus sic stantibus’. A edição da Lei Complementar nº 135/10 modificou o panorama normativo das inelegibilidades, de sorte que a sua aplicação, posterior às condenações, não desafiaria a autoridade da coisa julgada. Portanto, não havendo direito adquirido ou afronta à autoridade da coisa julgada, a garantia constitucional desborda do campo da regra do art. 5º, XXXVI, da Carta Magna para encontrar lastro no princípio da segurança jurídica, ora compreendido na sua vertente subjetiva de proteção das expectativas legítimas. Vale dizer, haverá, no máximo, a expectativa de direito à candidatura, cuja legitimidade há de ser objeto de particular enfrentamento. Para tanto, confira-se a definição de expectativas legítimas por SØREN SCHØNBERG (Legitimate Expectations in Administrative Law. Oxford: Oxford University Press, 2003, p. 6): ‘[...] Uma expectativa é razoável quando uma pessoa razoável, agindo com diligência, a teria em circunstâncias relevantes. Uma expectativa é legítima quando o sistema jurídico reconhece a sua razoabilidade e lhe atribui conseqüências jurídicas processuais, substantivas ou compensatórias’. (Tradução livre do inglês) [...] A rigor, há de se inverter a avaliação: é razoável entender que um indivíduo que se enquadre em tais hipóteses qualificadas não esteja, a priori, apto a exercer mandato eletivo. (STF, ADCs 29 e 30 e ADI 4578, Tribunal Pleno, Relator p/acórdão Min. Fux, DJe 29.06.2012. P. 5-16 do Voto, P. 18-29 do PDF do acórdão. Grifos nossos)

Como se vê, o fundamento determinante do STF nas ADCs 29 e 30 e na ADI 4578 foi o de não ter considerado a elegibilidade um direito fundamental objeto de restrições por leis de inelegibilidade, mas prerrogativa que deve atender requisitos impostos pela lei, que serão constitucionais desde que respeitem os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Por isso, na exegese legal de inelegibilidades pelo art. 1º, I, “q”, da LC 64/90, cabível não só exegese de fraude à lei se adotado conceito estrito de PAD, mas mesmo interpretação extensiva que adote sentido amplo de “processo administrativo disciplinar” para nele entender qualquer “procedimento disciplinar”. Tal interpretação é coerente tanto com a Vontade do Legislativo no que tange às razões históricas e teleológicas que geraram o art. 1º, I, “q”, da LC 64/90 (cf. supra) quanto com a posição do STF sobre a natureza jurídica da elegibilidade (cf. trecho transcrito). Pois se a elegibilidade não é um direito fundamental, mas uma prerrogativa que deve respeitar requisitos legais que nada restringem em termos de direitos, devendo apenas respeitar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (cf. STF), então não incide a regra hermenêutica de que restrições de direitos se interpretam de maneira estrita (base da crítica à decisão), porque não era de “direito” que se tratava, mas de prerrogativa que deve atender tais requisitos legais. Disso se conclui que a jurisprudência tradicional do TSE que interpretava as inelegibilidades de maneira estrita ou restritiva era inconstitucional, por imputar à elegibilidade uma natureza jurídica (de direito fundamental) que o STF não lhe atribuía enquanto guardião da Constituição,11 no sentido daquele que o texto constitucional atribui a sua guarda precípua e, assim, a palavra final na interpretação constitucional (CF, 102).

Em suma, à luz da regra hermenêutica da interpretação extensiva, deve-se interpretar a expressão “processo administrativo disciplinar” cuja eventual decisão condenatória gerará a inelegibilidade da pessoa condenada enquanto “procedimento administrativo que possa gerar responsabilidade disciplinar” que tenha como efeito a inelegibilidade. Essa foi a Vontade do Legislativo, tal como positivada na Justificativa da emenda parlamentar que gerou o dispositivo legal em comento (art. 1º, I, “q”, da LC 64/90) – vontade esta constitucional, ante o entendimento do STF enquanto guardião da Constituição (art. 102 da CF) sobre a natureza jurídica da elegibilidade não ser de direito, de sorte que normas de elegibilidade não restringem direito nenhum e, por isso, não estão sujeitas a interpretação estrita. Assim que defendo a decisão, exclusivamente pelos fundamentos técnico-jurídicos deste texto e sintetizados nesta conclusão, até seu antepenúltimo parágrafo.

Em sede de conclusão, é preciso lembrar a dogmática jurídica existe para controlar nossos juízos de prudência (cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr.), bem como a posição hegemônica no mundo do Direito ser um caso especial de argumentação prática geral, a argumentação jurídica é limitada pela lei, pelos precedentes e pela dogmática jurídica (cf. Alexy). Nesse sentido, as críticas feitas até aqui à decisão do TSE no “caso Dallagnol” incorrem em omissão sobre os seguintes temas relevantes: (a) o precedente do STF no “caso Ficha Limpa (ADCs 29 e 30 e ADI 4578), que estabeleceu que normas legais de inelegibilidade não restringem direito nenhum, por ela ser prerrogativa criada por lei e não um “direito”; (b) sobre o critério hierárquico na solução de antinomias aparentes, a saber, este precedente do STF este hierarquicamente superior à jurisprudência do TSE que adotava compreensão diversa e via normas de inelegibilidade como restritivas de direitos, sendo por isso que o TSE as interpretatva de forma restritiva, mas num entendimento que violava posição do STF; e (c) a dogmática relativa aos requisitos necessários para que se reabra discussão no controle abstrato e concentrado de constitucionalidade recentemente ratificados na decisão da ADI 6630 – mudança da valoração social sobre o tema, efeitos sociais prejudiciais não antevistos pela decisão e/ou mudança do Direito Objetivo acerca do tema (algo relevante porque é notório que não se pode mudar posição do Tribunal apenas pela mudança de sua composição ou mera discordância sobre ela). Como as críticas tanto querem se escudar na correta divisão de argumentos técnico-jurídicos para argumentos de conveniência política, para se protegerem de críticas de suposto apoio a Dallagnol, têm a obrigação técnico-jurídica de analisar esses pontos, até porque toda teoria da argumentação jurídica e moral fala do dever de enfrentar fundamentos contrários apresentados. Ficam, assim, a respeitosa provocação doutrinária por este texto, mediante os constrangimentos epistemológicos (cf. Streck).

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1 Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Advogado e Professor Universitário.

2 Quanto à interpretação extensiva e diferença da analogia: “[...] o pressuposto do processo analógico é a existência reconhecida de uma lacuna na lei [enquanto] Na interpretação extensiva, ao contrário, parte-se da admissão de que a norma existe, sendo suscetível de ser aplicada ao caso, desde que estendido o seu entendimento além do que usualmente se faz. É a razão pela qual se diz que entre uma e outra há um grau a mais na amplitude do processo integrativo” (REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, 27.ª Ed., 4.ª tir., SP: Saraiva, 2004, p. 298).

3 Em tempo de inépcias generalizadas e fake news, é preciso dizer que a expressão “a lei disse mais do que queria” é clássica no Direito e consta de livros clássicos de hermenêutica jurídica. Igualmente, a interpretação extensiva quando prega que “a lei disse menos do que queria” (sic), igualmente clássica. Então, não é algo que se inventou agora para este contexto, sendo triste a necessidade de se explicar questões tão basilares em um texto jurídico.

4 Esta equação é subjacente às lições de REALE, Miguel. Filosofia do direito, 20.a Ed., 5.a tir., SP: Saraiva, 2008, p. 511); ou ainda que “a tridimensionalidade específica do Direito resulta de uma apreciação inicial da correlação existente entre fato, valor e norma no interior de um processo de integração, de modo a abranger, em unidade viva, os problemas do fundamento, da vigência e da eficácia do Direito” (Ibidem, p. 515). Cite-se, ainda, o entendimento do autor no sentido de que “duas são as condições primordiais para que a correlação entre fato, valor e norma se opere de maneira unitária e concreta: uma se refere ao conceito de valor, reconhecendo-se que ele desempenha o tríplice papel de elemento constitutivo, gnoseológico e deontológico da experiência ética; a outra é relativa à implicação que existe entre o valor e a história, isto é, entre as exigências ideais e a sua projeção na circunstancialidade histórico-social como valor, dever-ser e fim. [...] Dizemos que o valor constitui a experiência jurídica porque os bens materiais ou espirituais, construídos pelo homem através da História, são, por assim dizer, ‘cristalizações de valor’ ou ‘consubstanciações de interesses’ (Ibidem, p. 543). No mesmo sentido: REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, 27.ª Ed., SP: Saraiva, 2004, p. 64-65. A equação norma = fato + valor foi assim defendida em IOTTI, Paulo. Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos, 4ª Ed., Bauru: Spessoto, 2022, cap. 3, item 1.3.

5 Assim, descabem críticas tradicionais sobre, em geral, “não ser possível” identificar a Vontade do Legislativo, por cada parlamentar vota pensando em algo (Carlos Maximiliano), pois aqui temos a Justificativa que traz objetivamente a vontade que gerou a criação do dispositivo legal em questão e não há nenhum outro relatório ou debate positivado nos anais do Congresso que denote vontade parlamentar distinta. No Legislativo, a lei é aprovada mediante a votação dos Relatórios de Comissões que as analisam e, em um debate plenário, o que é votado é a emenda parlamentar com sua Justificativa. Assim, um mínimo de racionalidade demanda imputar a “Vontade do Legislativo” a essa Justificativa e eventuais Relatórios existentes.

6 Com José Emilio Medauar Ommati, entendo que deve ser feita uma fusão de horizontes da hermenêutica filosófica gadameriana, entre intérprete e vontade do Legislativo, objetivamente aferida da Justificativa do texto normativo em questão e eventuais Pareceres de Comissões que positivam os fundamentos que foram aprovados pelo Parlamento (OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição, 7ª Ed., RJ: Lumen Juris, 2018, p. 92-94). Pois são tais Relatórios que são votados por parlamentares, nas Comissões e em Plenário, sendo que, quando o Relatório é derrotado, outro é escrito em seu lugar, para expressar a posição da maioria. Então, como já defendi em doutrina, entendo que se deve desconsiderar a vontade do Legislativo apenas se ela denotar uma ideologia inconstitucional, inconvencional ou contrária à interpretação sistemático-teleológica do Direito como um todo, o que não ocorre neste caso (cf. entendimento do STF sobre a natureza jurídica da elegibilidade, cf. infra). Isso pela máxima de que o Direito não se interpreta em tiras (Eros Grau), porque a interpretação ou é sistemática ou não é interpretação (Juarez Freitas) e a posição em prol da prevalência dos critérios sistemático e teleológico sobre os demais. Outrossim, a lei não se limitar àquilo que foi pretendido pelo Legislativo, pelo Judiciário dever prestigiar o conceito que o Legislativo quis proteger e não unicamente a concepção específica que ele teve daquele conceito,  à luz de uma fusão de horizontes entre intérprete e vontade do Legislativo objetivamente positivada nos arquivos dos debates parlamentares – basicamente, Justificativa do Projeto de Lei e da emenda parlamentar, quando o caso, e de Relatórios de Comissões que positivam os fundamentos do texto normativo. 

7 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição, 6ª Ed., SP: Saraiva, 2006, Parte II, cap. 1, itens II e IV.

8 Descabe dizer aqui que a “Vontade do Legislativo” teria feito uma “ponderação” para adotar o conceito estrito de “processo administrativo disciplinar”, pois a Justificativa da emenda parlamentar aponta precisamente o contrário (cf. supra). Como é basilar, quando se invoca a “vontade” parlamentar, faz-se isso para se decidir qual interpretação a ser dada ao texto objetivo da lei (ao Direito Objetivo), se extensiva, literal ou restritiva. Ao passo que imputar ao Legislativo a vontade de ter feito uma ponderação para escolher determinada expressão ao invés de outra demanda provar que essa foi a vontade real do Legislativo. Creio que um dos principais problemas da invocação da “Vontade do Legislativo” são verdadeiras presunções feitas por puro achismo, que ora querem presumir como um “Legislativo racional” teria pensado ou como “legisladores/as da época teriam pensado à luz dos valores sociais dominantes” ou elucubrações do gênero. Penso que o descrédito desse topos hermenêutico se dá muito por conta dessas imputações arbitrárias de supostas “vontades” por achismos de quem o faz. Por isso, focar na Justificativa e nos Relatórios de Comissões auxilia muito nesse tema (dificuldades restariam em caso de Relatório de uma Comissão indicar algo distinto do de outra, demandando interpretação sistemática, talvez a prevalência do Relatório da Comissão Temática daquele tema etc, mas isso transcende os limites deste texto).

9 Aliás, esse foi o fundamento do voto-desempate da decisão que declarou a constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa: o de que a exigência constitucional de trânsito em julgado de sentença penal condenatória incide apenas para processos penais e não para outros ramos do Direito, por ser esta a literalidade constitucional e não haver razões que o justifiquem para o Direito Eleitoral, na lógica da elegibilidade como prerrogativa que deve respeitar requisitos legais desde que razoáveis e proporcionais e não como “direito subjetivo” supostamente “restringido” pelas hipóteses de inelegibilidade (cf. STF, ADC 29 e 30 e ADI 4578, infra no corpo do texto).

10 Esse entendimento do STF tem total coerência substantiva com o conteúdo do art. 14, §9º, da Constituição, quando estabelece que “§9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta. (Redação dada pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 1994)”. Logo, a crítica à moralização das eleições feitas pela Lei da Ficha Limpa deixa de considerar o texto constitucional positivo, donde é uma crítica constitucional constitucionalmente inválida, no sentido de Canotilho de que uma teoria constitucional só é constitucionalmente válida se coerente com o texto constitucional positivo. Porque parte de uma elegibilidade em uma compreensão suprapositiva, supraconstitucional, que não considera o texto constitucional positivo, que expressamente permite que a lei crie requisitos de inelegibilidade voltados à moralidade para exercício do mandato considerada vida pregressa do candidato (aqui chamada de moralidade eleitoral) – algo que parece de todo razoável e, assim, constitucional, por não-arbitrário. Pode-se criticar politicamente a Constituição, mas não se pode deixar de analisar decisões do TSE e de quem quer que seja sobre inelegibilidade sem considerar a regra constitucional positiva que expressamente permite (por silogismo!) criarem-se normas de inelegibilidade a partir de critérios de moralidade eleitoral à luz da vida pregressa de quem se candidata e da probidade administrativa. Com todo respeito, as críticas não o fazem e incorrem no vício que fez o Ministro Eros Grau dizer que não existe uma separação de poderes do Direito Natural, mas uma separação de poderes tal qual positivada em nossa Constituição (STF, MI 670, 708 e 712), obviamente à luz da interpretação sistemático-teleológica do Direito enquanto conjunto de regras e princípios (cf. Alexy) ou mesmo conjunto de princípios (cf. Dworkin). 

11 Então, o tradicional critério hierárquico de solução de antinomias aparentes resolve facilmente a questão: embora TSE tivesse jurisprudência que interpretava inelegibilidades como “restrição a direito fundamental de elegibilidade” e mereça crítica formal por isso, no critério substantivo essa jurisprudência anterior do TSE contrariava entendimento do STF no precedente do “caso Ficha Limpa”, que não a considerou como tal, mas como prerrogativa fruto de regime jurídico ao qual a pessoa deve se adequar para poder concorrer. Assim, pela hierarquia imanente ao sistema, entre a jurisprudência do TSE enquanto Tribunal Superior e precedente do STF enquanto Suprema Corte com atribuição constitucional de guarda precípua da Constituição (CF, art. 102), obviamente há de prevalecer a posição do STF até que haja superação (overruling) de sua jurisprudência.

Paulo Iotti
Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Advogado e Professor Universitário. Diretor-Presidente do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Integrante da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OABSP. Sócio do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Famílias.

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