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A "McDonaldização" do remédio heróico: por um retorno à doutrina suprema do habeas corpus

Muito embora o atual momento histórico seja testemunha de que o habeas corpus vem sendo apequenado pela jurisprudência defensiva dos tribunais, com limitação dos aspectos de seu conhecimento e julgamento, as linhas mestras projetadas pelo grande D’Aquino e Castro, então presidente do STF ainda no nascedouro da república, recomenda um retorno à doutrina suprema do remédio heroico.

5/6/2023

Recentemente os juristas Anna Maria Reis, Bruno Espiñeira Lemos, Luis Eduardo Colavolpe e Maurício Mattos Filhos organizaram um belo livro sobre o habeas corpus em homenagem ao min. Nilson Naves1, obra na qual pudemos participar num dos diversos e excelentes textos em coautoria com Airto Chaves Jr. e Jefferson Carús Guedes2. Este breve escrito, também sobre o habeas corpus, é minha singela homenagem a todos eles, e, por conseguinte, uma segunda laudatio ao homenageado originário. Mas também é uma homenagem ao sentido e amplitude inicial do habeas corpus sob a perspectiva maiúscula de esquecido texto D’Aquino e Castro, do Supremo Tribunal.

Alexandre Moraes da Rosa3 (e outros) vêm alertando de há muito que “a busca da condenação “fast-food” implicou nos últimos anos na ‘McDonaldização’ do Direito Processual Penal: Sentenças que são prolatadas no estilo “Peça Pelo Número”. A “Standartização” da acusação, da instrução e da decisão. Tudo em nome de uma ‘McPena-Feliz’”. O fenômeno também se fez notar na “McDonaldização do Habeas Corpus”, uma vez que o remédio heroico, atualmente, conta com detratores os mais diversos, que buscam limitar seu escopo e amesquinhar seu alcance.

O habeas corpus possui, como evidente, histórias plurais atreladas às tradições político-jurídicas distintas, existindo famosas raízes romanas e inglesas, que se perdem nas brumas dos tempos4. Sobre o tema, famosas são as palavras de William Blackstone que denominou o habeas corpus de “o baluarte de nossas liberdades”. Atravessando o atlântico, o Congresso Norte-Americano declarou que o privilégio de habeas e o direito a julgamento por júri estavam entre os direitos mais importantes em uma sociedade livre, “sem os quais as pessoas não podem ser livres e felizes.”

Alguns anos depois, ao promover a ratificação da Constituição dos EUA, Alexander Hamilton, em “o Federalista”, celebrou o privilégio do habeas corpus como uma das “grandes garantias à liberdade e republicanismo” conhecidas. Assim como outro participante da ratificação constitucional afirmou, o pedido de habeas corpus tem sido visto como “essencial à liberdade”5.

No Brasil, conhecida é a atual quadra histórica de crescente limitação e estrangulamento do escopo do habeas corpus, valendo recordar que entre 1891 e a reforma constitucional de 1926, pudemos observar a denominada “doutrina brasileira do habeas corpus”, pois inexistia ainda o mandado de segurança, com a fundamental atuação dos ministros Pedro Lessa e Enéas Galvão, no Supremo Tribunal Federal, que permitiram a utilização do habeas corpus para defesa de direitos não propriamente vinculados ao direito de locomoção (de ir, vir e permanecer), mas a outros direitos, mais ampliados6.

No entanto, a maior e mais densa abordagem do habeas corpus em formulação brasileira e progressistas é devida à Olegário Herculano de Aquino e Castro (1828-1906), grande ministro do Supremo Tribunal Federal (de 1890 até seu falecimento), e, antes dele, do Supremo Tribunal de Justiça do Império (a partir de 1886).

Permanece quase inédito nos dias de hoje, se perdendo nas melhores bibliotecas jurídicas, e, principalmente, ausente das principais discussões sobre o tema, o clássico texto “O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal”, publicado em 1891 na antiga revista “O Direito”, v. 19, n. 55, com inegável importância e inescondível atualidade. Precisa ser revisitado.7

Costumo sempre dizer que o referido texto, se lido atentamente, evitaria a ‘McDonaldização’ do remédio heroico, pois representa a verdadeira “doutrina suprema do habeas corpus”, reconhecendo sua importância mastodôntica para a ordem jurídica e para o Estado Democrático de Direito.

Escrito pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal, D’Aquino e Castro, aquele que foi nosso “Marshall brasileiro” (ou Tropical)8, seu texto começa registrando que, na transição da queda da monarquia e com o surgimento das instituições republicanas, a dita reorganização política, que buscava “firmar em mais seguras bases as indispensáveis garantias dos direitos do cidadão” não poderia esquecer “a primeira e a mais importante dessas mesmas garantias, consagrada nos Códigos das nações cultas como gloriosa e porfiada conquista da liberdade sobre os erros do obscurantismo e deploráveis excessos da autoridade prepotente”: o habeas corpus.

Observa, de saída, o simbolismo histórico que remonta ao Rei João Sem Terra, passando pela magna data, que fez notar, em 1679, ao tempo de Carlos II, quando “foi publicado o celebre Acto do Habeas-Corpus, com razão chamado pelos ingleses de o palladium da liberdade individual”9, sendo certo que paládio se relacionava ao objeto sagrado ao qual era confiada a defesa de uma cidade ou país, ligando-se especialmente à Estátua de Palas (Minerva) que se encontrava em Troia, onde era venerada como penhor de conservação da cidade. É que do habeas corpus depende a inteira conservação de uma cidade, estado ou sociedade.

Fazendo verdadeiro exercício daquilo que modernamente denominamos de “transplante de ideias”, mapeia a transição do habeas corpus da Inglaterra para os Estados Unidos, e de lá para a América do Sul (Bolívia, Peru, Chile, Uruguai e Argentina), ingressando no Brasil pelos braços da Constituição imperial de 1824, e por diversas normas, como o Código Criminal do Império, o Código de Processo e o antigo Regulamento das Relações.

Desvinculado da única proteção da imediata restrição à liberdade individual do direito de ir e vir, prossegue D’Aquino e Castro: “As últimas reformas de 1841 e 1871 ainda procuram favorecer e ampliar a proteção devida à liberdade, declarando expressamente a L. n. 2033: que o pedido e a concessão de Habeas-Corpus têm lugar ainda quando o impetrante não tenha chegado a sofrer constrangimento corporal, mas se veja dele ameaçado”10.

Preocupado em registrar que os tribunais já reconheciam certa flexibilidade antes das mencionadas reformas, observa: “não só se havia entendido que era ele aplicável ao caso de efetiva prisão do paciente, e ao de simples ameaça de constrangimento, como que se estendia ao da prisão administrativa, qualquer que fosse a autoridade que a houvesse decretado, e fosse a ordem requerida por nacional ou estrangeiro, sem distinção de sexo, idade ou condição”, e tal se justificava porque o habeas corpus era destinado “a dar ao homem ilegalmente preso, ou ameaçado de um constrangimento ilegal, meios prontos e vigorosos de evitar a incomunicabilidade, recobrar a liberdade, e fazer punir o abuso de uma prisão violenta e arbitraria”11.

De fato, também cuidou da competência (que devia ser ampla), e do recurso (igualmente amplo), para os fins a que se destinava: “Quanto à competência da autoridade para a concessão da ordem de Habeas Corpus, não podia ser mais ampla do que era, conferida como estava pela legislação em vigor a todos os juízes de direito e Tribunais de Justiça, nos limites de sua jurisdição”, e, ainda, “a superioridade do grau na ordem da jurisdição judiciaria o único limite imposto à competência da respectiva autoridade para resolver sobre as prisões feitas por mandado das mesmas autoridades judiciarias”12.

O fim do processo perante a jurisdição dos juízes e tribunais dos Estados não punha impedimento ao manejo do habeas corpus, por expressa disposição legal do art. 61 da CF/1891, o que é absolutamente caracterizador da importância e dignidade do remédio heroico, como mencionado por D’Aquino e Castro: “no art. 61 declarou que as decisões dos juízes ou tribunais dos Estados, nas matérias de sua competência, porão termo aos processos e às questões - salvo quanto ao Habeas Corpus - caso em que é facultado recurso voluntario para o Supremo Tribunal Federal”, e, ainda, no Regulamento, estabelecendo: “que o Supremo Tribunal Federal e os juízes de secção farão dentro dos limites de sua jurisdição respectiva passar de pronto a ordem de Habeas-Corpus solicitada, nos casos em que a lei o permita, seja qual for a autoridade que haja decretado o constrangimento ou ameaça de o fazer”13.

Essa disposição enseja que D’Aquino e Castro faça uma pergunta, sobre a extensão e amplitude do habeas corpus “Isto posto, pergunta-se: pode o Supremo Tribunal Federal, cuja jurisdição se estende a toda a República, nos termos da lei, tomar conhecimento originariamente de uma petição de Habeas-Corpus, sendo a prisão ordenada pela autoridade local, ou dos Estados, ou somente lhe é dado resolver quando a prisão é decretada pelo juiz federal ou de seção?”14

A resposta, claro, D’Aquino e Castro a fundamenta nos pressupostos filosóficos do remédio heroico, desde a exposição de motivos do Decreto 848/1890: “Independente de petição qualquer juiz ou tribunal federal pode fazer passar uma ordem de Habeas Corpus ex-officio, todas as vezes que no curso de um processo chegue ao seu conhecimento que algum cidadão, oficial de justiça ou autoridade publica tem ilegalmente alguém sob sua guarda ou detenção”15.

Fundamentando a causa da necessidade da amplitude, aponta: “Mal se compreende como e porque, pretendendo-se dar mais seguras garantias á liberdade, pode estar na intenção do legislador restringir o uso de tão importante recurso, especialmente com relação ao primeiro Tribunal judiciário do país, na extensão da jurisdição que sobre ele exerce, e nas condições de habilitação em que é constitucionalmente instituído. Não seria logico, nem liberal; seria retrogradar, e não avançar na conquista das desejadas liberdades”16.

À guisa de observação final, observamos, de fato, que muito embora o atual momento histórico seja testemunha de que o habeas corpus vem sendo apequenado pela jurisprudência defensiva dos tribunais, com limitação dos aspectos de seu conhecimento e julgamento, as linhas mestras projetadas pelo grande D’Aquino e Castro, então presidente do STF ainda no nascedouro da república, recomenda um retorno à doutrina suprema do remédio heroico, para reconhecimento de sua grandeza e dignidade da qual depende o estado de direito, e sob a qual descansa todo nosso edifício constitucional, pois habeas corpus não é fast-food e os pacientes não são só um número.

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1 REIS Anna Maria; LEMOS, Bruno Espiñeira, COLAVOLPE, Luís Eduardo; MATTOS FILHO, Maurício. Habeas Corpus: teoria e prática: estudos em homenagem ao Ministro Nilson Naves. Belo Horizonte: D’Plácido, 2023.

2 CHAVES JR., Airto; PÁDUA, Thiago Aguiar de; GUEDES, Jefferson Carús. O caso do juiz formador da culpa dos inimigos políticos no enigmático Habeas Corpus 26.945/GO perante o Supremo Tribunal Federal. Em: REIS Anna Maria; LEMOS, Bruno Espiñeira, COLAVOLPE, Luís Eduardo; MATTOS FILHO, Maurício. Habeas Corpus: teoria e prática: estudos em homenagem ao Ministro Nilson Naves. Belo Horizonte: D’Plácido, 2023.

3 ROSA, Alexandre Moais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 1-15.

4 Dentre outros: Cfr. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. História e Prática do Habeas-Corpus: direito constitucional e processual comparado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1962; SUANNES, Adauto. O que é habeas corpus. São Paulo: editora brasiliense, 1985.

5 TYLER, Amanda L. Habeas Corpus: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2021, p. 28

6 BOSELLI DE SOUZA, Luiz Henrique. A doutrina brasileira do habeas corpus e a origem do mandado de segurança Análise doutrinária de anais do Senado e da jurisprudência histórica do Supremo Tribunal Federal. Revista de Informação Legislativa, a. 45, n. 177, 2008.

7 D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 5-23.

8 Confira-se, a propósito, nossos dois textos: PÁDUA, Thiago Aguiar de. O “Common Law” Tropical e o “Caso Marbury v. Madison Brasileiro”. Belo Horizonte: D’Plácido, 2023; PÁDUA, Thiago Aguiar de. Ministro Olegário Herculano de Aquino e Castro, o Marshall brasileiro? Conjur de 07/09/2022.

9 D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 6.

10 D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 7.

11 D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 8.

12 D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 9.

13 D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 9.

14 D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 10.

15 D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 10.

16 D’AQUINO E CASTRO, Olegário Herculano de. O Habeas Corpus segundo os princípios da legislação federal. O Direito: revista de legislação, doutrina e jurisprudência, v. 19, n. 55, 1891, p. 11.

Thiago Aguiar de Pádua
Doutor em direito. Professor da Faculdade de Direito da UnB. Ex-assessor de ministro do STF. Autor do livro "O Common Law Tropical: o caso Marbury". Advogado.

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