Migalhas de Peso

Marco temporal e segurança jurídica: por que e para quem?

Os direitos dos povos indígenas valem tanto quanto os direitos dos descendentes de colonos que foram aquinhoados pela república brasileira ou os estados federados.

2/6/2023

O “marco temporal” para aferição da tradicionalidade da ocupação de um povo indígena em sua terra é uma ideia – que no Direito comumente chamamos de tese e que no caso concreto constituiu mais propriamente um “obiter dictum”, como acaba de notar o colega Max Telesca –, expressada pelo ínclito ministro do STF Carlos Augusto Ayres de Freitas Britto, em seu voto como relator no âmbito de uma ação contra a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, na década de 2000. Não se trata de norma cogente (imperativa a todos, ou erga omnes) no ordenamento jurídico brasileiro e não se trata, como alegou o autor de um parecer da Consultoria-Geral da União (da Advocacia-Geral da União), em 2017, de uma “lei” para a Administração Pública Federal, mesmo que assim tenha sido imposta, por força da chancela do Presidente Michel Temer.

A tese do Min. Ayres Britto seria a de que a Constituição de 1988, ao inaugurar um novo Estado, teria estabelecido um marco definitório da posse indígena em uma terra tradicionalmente ocupada por uma comunidade. O ministro chega a falar em “data certa” em seu voto, quando na verdade não há data alguma. Mas o magistrado, claramente pró-indígena e não anti-indígena, insere a antítese, alertando no mesmíssimo voto, que seria sempre notória a não aplicabilidade do “marco temporal” quando aquele povo específico tivesse sofrido o “renitente esbulho”, fazendo uma espécie de trocadilho conceitual com o instituto jurídico do esbulho renitente, dentro do direito possessório clássico. Pois bem. E qual a síntese?

No regime jurídico das terras indígenas, no Brasil, elas pertencem à União. De acordo com a Constituição da República, seu usufruto é exclusivo aos indígenas, mas há limitações, justamente para defender o direito de propriedade, que é da União. Evidentemente essa construção jurídica foi entabulada para evitar a alienação (venda) e contratos leoninos contra os próprios indígenas, na fruição de sua posse.

O “marco temporal” que a Câmara dos Deputados quer alçar a lei não é constitucional, pois ele fere de morte o direito territorial dos povos indígenas do Brasil, que não tem caráter civil/civilista, mas originário. E o que significa isto? Um grande ministro e jurisconsulto da transição do século XIX para o XX, João Mendes de Almeida Junior (1856-1923), sistematizou aquilo a que batizou de indigenato. O indigenato mendesiano é a tese que foi abraçada, recepcionada e entronizada nas constituições políticas do Brasil, desde a de 1934. Ele preceitua que as terras dos indígenas não são: terras devolutas, isto é, nacos de terra sem uso agrícola e provenientes de antigas sesmarias coloniais ou doações imperiais que deveriam voltar ao domínio pleno da União; que não são terras derelictas, isto é, terras abandonadas por seus donos e sem nenhum interesse de retomá-las; não são terras de posse comum/civil, necessitadas de comprovação por títulos cartorários, não se enquadrando, portanto, na tipologia dos direitos reais e possessórios.

João Mendes de Almeida Junior definiu que as terras indígenas são terras de posse indigenata, decorrente dos direitos originários que aos nativos compete sejam reconhecidos, por força do domínio que sobre elas exerciam antes da chegada dos povos europeus à chamada América. Jurista católico, monarquista, abolicionista e radicalmente favorável aos direitos dos povos indígenas, ele recorria em suas longas ruminações não somente ao próprio direito reinol lusitano e ibérico de modo geral para lastrear sua teoria, como também ao direito comparado, quando elencava os dissabores da colonização inglesa e depois estadunidense, em relação à posse indígena na América anglófona.

E por que a sanha do marco temporal tem avançado? Porque os parlamentares brasileiros, que espelham a nossa sociedade, ignoram quase que por completo não somente a história do Brasil, a história dos povos indígenas, a história do esbulho possessório das terras dos antigamente chamados “silvícolas”. Muitos desses homens e mulheres que legislam contra os direitos dos povos indígenas provêm, eles mesmos, da imigração itálica, germânica ou de qualquer outra matriz, que não data senão do XIX e do XX. São descendentes dos colonos que receberam benesses da República brasileira para se estabelecer nos interiores do Brasil e se tornarem os “novos bandeirantes”. É fora de dúvida que o neobandeirantismo alimenta o imaginário dos ilustres deputados, vereadores, prefeitos e governadores que se mostram anti-indígenas ferozes. É palavra corrente entre eles que qualquer terra pode ser declarada indígena no Brasil, “até a Praia de Copacabana”. Já tive oportunidade de demonstrar, em texto publicado pela Associação Nacional de Procuradores da República, que Copacabana é nome Quechua ou Aymará. Deriva da imagem de Nossa Senhora de Copacabana, levada ao Rio de Janeiro por bolivianos... e portanto nada tem a ver com a história dos indígenas brasileiros. Um pouquinho de conhecimento histórico não faz mal a ninguém.

Mas o que mais importa, segundo os parlamentares e lobistas anti-indígenas, é que a segurança jurídica, uma espécie de dogma aos operadores do direito, não seja turbada. Segurança jurídica para quem? Pergunto-me desde há muito. Para todos os brasileiros ou somente para os proprietários de terra que possuem suas fazendas justamente dentro de terras indígenas que foram esbulhadas dos “naturais senhores delas”, como dizia João Mendes de Almeida Junior?

Não são necessárias idealizações, romantizações ou militâncias extremadas para abordar esse tema. Os direitos dos povos indígenas valem tanto quanto os direitos dos descendentes de colonos que foram aquinhoados pela república brasileira ou os estados federados. Chega de insensatez. Que o Senado, ou o Supremo Tribunal Federal, coloquem uma pedra sobre a disputa, para o bem do país.

Bruno da Silva Antunes de Cerqueira
Advogado, historiador, especialista em Relações Internacionais, indigenista da Funai, gestor cultural.

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