I. Introdução: Os cheques no atual cenário brasileiro
Teriam os cheques, em pleno 2023, alguma relevância na economia brasileira? Tal pergunta decorre do cenário que vemos em comentários na mídia, posts de redes sociais, conversas em sala de aula, que por vezes tratam tal título como uma figura extinta e inútil. Mas será que tal percepção encontra respaldo na realidade? Estaria tal título em completo desuso, como muitos afirmam? Seu estudo, por consequência, seria desnecessário?
No nosso entender, a resposta é negativa para tais questões. Continua o cheque a ter seu espaço na economia brasileira, e consequente repercussão jurídica. No entanto, nessa discussão, o que não se pode é levar a questão a extremos. Se é certo que o cheque perdeu muita importância nas últimas décadas, também é exagerado dizer que ele não tem mais nenhum uso. Vejamos alguns números, que ilustram tal cenário.
De um lado, a queda na utilização, ano após ano, é evidente, com natural agravamento no contexto da pandemia, que estimulou o uso de soluções eletrônicas e um movimento acelerado de descartularização de documentos. Dados da Febraban1 relatam uma redução de 94% na utilização em relação a 1995 (quando a movimentação anual era de 3,3 bilhões de cheques).
No entanto, mesmo com substancial queda, o número de cheques compensados ainda representa volume considerável, tanto de documentos, quanto de dinheiro. Não à toa, não é desprezível que, em 2022, também conforme dados da Febraban, foram compensados 202,8 milhões de documentos, movimentando a quantia de R$ R$ 666,8 bilhões. Assim, é um número a se considerar, envolvendo mais de 200 milhões de relações creditícias, com repercussões jurídicas que não podem ser ignoradas. Ademais, aspecto curioso é que se constatou um aumento no valor médio dos cheques emitidos, agregando maior interesse econômico em tais operações.
Essa queda na utilização dos cheques, como um todo, é um fenômeno natural, pela própria evolução dos meios de pagamento, do mesmo modo que se observa em relação a outros institutos em diversos setores econômicos. O cheque, cartular, foi figura central da economia brasileira, como instrumento de ordem de pagamentos a partir de contas bancárias, além de, por adaptação do comércio, ter desempenhado também um papel relevante de concessão de crédito (mediante a improvisação decorrente do chamado “cheque pré datado”, que viabilizou a concessão direta de crédito pelo comércio aos consumidores, suprindo eventual falta de oferta pelas instituições financeiras). Mas, por evidente, o cheque acabou sendo substituído, em grande medida, por outros instrumentos que se mostraram mais eficientes ou vantajosos, e que mesmo entre eles vão perdendo espaço dia a dia frente a inovações. Foi o caso do DOC, depois da TED, sucedidos agora pelo PIX, além de cartões de crédito, débito etc. Mas essa redução no uso do cheque, ainda que substancial, não elimina completamente a relevância do instituto, da mesma forma que se verifica em outras áreas, em que institutos outrora muito relevantes perderam participação nos negócios (como ocorrido, por exemplo, com a hipoteca, substituída em grande medida pela alienação fiduciária em garantia).
No entanto, nota-se uma mudança de segmentação do cheque. Se antes ele era figura muito comum nas mais diversas áreas, hoje passou a ser um produto destinado a alguns nichos econômicos. Enquanto alguns setores (como postos de gasolina, lojas de shopping etc), em grande parte não aceitam mais o recebimento de cheques, observa-se que em outros tal figura mantém alguma relevância, como ocorre em negociações imobiliárias, bem como em setores específicos (construção, indústria de móveis, prestadores de serviços autônomos etc).
Também existe um fator cultural e regional. Enquanto em grandes centros urbanos tal figura foi em grande medida substituída por instrumentos mais tecnológicos, não se pode ignorar que em diversas regiões do Brasil ainda é costume arraigado a utilização de cheques (bem como, também, pagamento em dinheiro). Ora, não se pode desconsiderar que o Brasil, país de proporções continentais, comporta várias realidades em seu território, sendo ilusório querer criar um cenário único e homogêneo para tamanha amplitude.
Assim, é certo que o cheque, em razão de suas características, ainda pode oferecer eventuais vantagens aos agentes econômicos, como será tratado a seguir.
II – Características gerais e possíveis aspectos estratégicos dos cheques
O cheque, como título de crédito que é, apresenta ainda hoje características que podem ser úteis, mesmo na sociedade atual, tão tecnológica.
De início, destaque-se ser ele título executivo extrajudicial, o que corresponde a instrumento apto a gerar maior segurança nos negócios, ao facilitar, sob a ótica processual, a cobrança de um eventual crédito. Ainda, embora concebido originalmente para pagamentos à vista, a sua executividade representa fator interessante também para negócios a prazo (mediante o uso do ¨pré-datado¨), oferecendo a corporificação do crédito em um título, de fácil circulação, compensação e viabilizando eventual execução judicial, se necessária.
Ademais, tanto aqui como acolá são inúmeros os casos de utilização dos tipos variados de cheques, tais como, o visado, o administrativo, cheque de viagem, e o cruzado.
O cheque visado ocorre quando o sacado (instituição financeira), declara haver fundos para o adimplemento do título, quando apresentado para pagamento. O visto acaba sendo solicitado pelo emitente do cheque quando pretende demonstrar a solvabilidade do título.
O uso de cheques visados vem da praxe comum em negócios realizados nas cidades interioranas do país, onde há apenas uma agência de um banco comercial, e assim, o gerente desta agência acaba por se tornar o fiel da balança da confiança sobre um título de crédito emitido.
Embora o cheque visado se aproxime do cheque administrativo, João Eunápio Borges salienta: “fique bem claro: que o visto nunca poderá ter os efeitos que muitos lhe atribuem, de um autêntico aceite cambial, de uma marcação qualificada, acarretando a responsabilidade do sacado sem a exoneração dos demais signatários”2.
As instituições financeiras nas últimas décadas têm desaconselhado a utilização do cheque visado, para a utilização de cheque administrativo (ou ADM, na linguagem coloquial, inclusive por ser este mais rentável a estas), no qual o emitente do título é o próprio banco, que separa antecipadamente o valor pretendido no título previamente da conta do correntista, e emite o cheque neste valor. Assim, a instituição financeira se torna sacador e sacado simultaneamente, cabendo a pessoa destinada ao pagamento ser o tomador do crédito.
Existe a crença no meio empresarial em que o cheque administrativo seria o “cheque bom”, ou seja, o que sempre teria crédito, já que o banco é quem emitiu o título (o que pode não ser verdade caso o banco venha a insolvência). Ressalte-se que a utilização desta modalidade de cheque é bem comum nas transações imobiliárias, e no meio rural. Outrossim, existe também a vantagem que nesta modalidade de cheque não se aplicam os limites comumente encontrados nas transações eletrônicas.
Outra forma ainda comum de se utilizar o cheque, aparece nas viagens internacionais, nas quais as pessoas pretendem levar uma quantidade maior de moeda estrangeira. Estas poderiam utilizar de cartões de crédito internacionais, ou mesmo utilizar da facilidade de abrir uma conta no exterior por meio de aplicativos – APP nos celulares. Acabam não utilizando esta última por ser na maioria das vezes viagens de curta duração (férias ou a trabalho), o que não compensaria manter a conta aberta após o encerramento da mesma. Já os cartões de crédito internacional acabam tendo altas taxas por sua utilização, bem como, sujeitam-se ao pagamento a maior do Imposto de Operações Financeiras – IOF.
Assim, os cheques de viagem (traveller’s checks), acabam sendo uma opção de baixíssimo custo, e com grande segurança para a parte, já que são largamente aceitas no exterior, bem como, é igualmente fácil a sua troca por moeda corrente. Neste tipo de cheque o sacado e o sacador são a mesma instituição financeira internacional, e o adquirente do título é o tomador do crédito, assinando o título uma vez quando da sua aquisição. No exterior, assina novamente o título (ao lado da assinatura inicial), mostrando o passaporte, fazendo assim o endosso do título para o comerciante ou ainda na rede bancária para trocar o título em moeda em espécie3.
A garantia na utilização desta modalidade de título é que o mesmo é numerado e seriado, e na hipótese de qualquer perda do título, basta o adquirente/viajante solicitar a substituição do mesmo, uma vez que sem a sua segunda assinatura o título não se presta ao pagamento/recebimento dos valores neste mencionados.
Por fim, largamente visto nas praças comerciais do interior do país, o cruzamento do título após a sua emissão e entrega para o tomador do crédito (geralmente um comerciante). As duas barras paralelas que transpassam as laterais do título, significam que o cheque ao ser apresentado para pagamento em uma instituição financeira deverá ser depositado em uma conta bancária para o recebimento dos valores, não podendo ser pago diretamente no caixa do banco (pagamento mediante apresentação).
Assim, é usual ver nos caixas dos comércios, o recebimento de cheques, sobretudo nos finais de semana, com a utilização de um carimbo com as barras paralelas, sendo os cheques separados para serem apresentados a uma instituição financeira na segunda-feira subsequente, e depositados na conta corrente do comércio.
III - Conclusões
Em que pese a substancial diminuição na utilização de cheques (e que é, diga-se, tendência a ser mantida), não se pode, também, considerar tal instituto em total desuso, como muitos fazem. Os números revelam que o cheque movimenta quantidade relevante de documentos e de recursos, ainda que ocupe, hoje, nichos da economia.
Tal instituto é também fonte de consideráveis discussões nos tribunais, e mesmo de preocupação regulatória, como observado em recente divulgação, pelo Banco Central, de novos atos normativos destinados a aperfeiçoar o funcionamento do referido título de crédito (Resolução CMN 5.071 e Resolução BCB 314, ambas de 26 de abril de 2023). A notícia de tais inovações regulatórias, inclusive, surpreendeu a muitos, que julgavam tal figura extinta. Mas, como se vê, o cheque ainda resiste...
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1 https://febrabantech.febraban.org.br/temas/meios-de-pagamento/uso-do-cheque-mantem-queda-em-2022-e-reducao-chega-a-94-desde-1995 ; também https://einvestidor.estadao.com.br/ultimas/uso-cheques-brasil-cai-2022/
2 Títulos de Crédito. 2ª ed, 8ª tiragem. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1979, p. 183.
3 Fran Martins indica que o surgimento dos cheques de viagem ocorreu em 1891, “quando o presidente da empresa de turismo americana (mais tarde transformou-se em banco) American Express, realizando uma viagem na Europa, sentiu inúmeras dificuldades na troca de moeda com a utilização de uma carta de crédito circular”. Títulos de Crédito, vol. II, 11 ed., Rio de Janeiro, 1998, p. 108.