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A razoabilidade na fundamentação da pena-base da sentença penal condenatória

Se, por um lado, o artigo 59 do Código Penal concede certa subjetividade na exasperação da pena-base, por outro, deve haver justificativa concreta para que esse aumento no preceito secundário seja considerado válido.

2/6/2023

Proferir uma sentença condenatória de forma isenta não é tarefa simples para o julgador, uma vez que a subjetividade na imposição da pena-base deve ser feita de acordo com as peculiaridades do caso.

Motivar adequadamente a pena-base da sentença penal condenatória não é tarefa simples, na medida em que os conceitos preconcebidos ou as opiniões pessoais do julgador, de alguma forma, fazem parte da fundamentação da condenação criminal.

O art. 68 do Código Penal estabelece que a pena-base será fixada de acordo com as diretrizes estabelecidas pelo art. 59 do Código Penal, isto é, conforme a subjetividade do julgador, pois o legislador ordinário não estabeleceu critérios objetivos para a fixação da reprimenda-base, e deixou a critério do juiz a fórmula para que a aplicação da penalidade seja proporcional ao fato delituoso praticado:

“Art. 59 - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (Redação dada pela lei 7.209, de 11/7/84)”

Ocorre que a subjetividade na aplicação da pena traz insegurança jurídica, pois fatos semelhantes poderão ter penas completamente distintas dependendo do Juízo em que o processo foi distribuído.

Diante dos inúmeros casos enviados ao Superior Tribunal de Justiça, que tem como objeto a correção da pena aplicada sem adequação proporcional ao fato delituoso praticado, a jurisprudência tem orientado como critério ideal para individualização da pena-base o aumento na fração de 1/8 por cada circunstância judicial negativamente valorada, a incidir sobre o intervalo de pena abstratamente estabelecido no preceito secundário do tipo penal incriminador.

Em outras palavras, por exemplo, se o mínimo do preceito secundário (pena) é de 03 (três) anos e o máximo é de 11 (onze) anos, o intervalo entre a pena mínima e máxima é de 08 (oito). Logo, de acordo com o STJ, o critério ideal para o aumento da pena-base será de 01 (um) ano para cada circunstância judicial negativamente valorada. Nesse sentido, se a única circunstância desabonadora for a reincidência, a pena-base ideal será de 04 (quatro) anos:

“Diante do silêncio do legislador, a jurisprudência e a doutrina passaram a reconhecer como critério ideal para individualização da reprimenda-base o aumento na fração de 1/8 por cada circunstância judicial negativamente valorada, a incidir sobre o intervalo de pena abstratamente estabelecido no preceito secundário do tipo penal incriminador. No caso, considerando a presença de uma vetorial desabonadora, bem como o intervalo de apenamento previsto no art. 168 do CP, que corresponde a 3 anos, deve ser tida como excessiva a fixação da pena-base em 2 anos e 4 meses de reclusão, sendo mais razoável estabelecer a pena-base com o aumento na fração ideal de 1/8, calculada sobre o intervalo entre as penas mínima e máxima cominadas ao delito.

(HC 731.732/SP, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 6/9/22, DJe de 13/9/22.)”

No julgamento do AgRg nos EDcl no HC 803.261/GO, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 16/5/2023, DJe de 19/5/23, onde se analisou caso que envolveu grande apreensão de drogas, e que a pena-base fixada na sentença condenatória foi aumentada em patamar desproporcional, foi concedida ordem de habeas corpus para fazer a correta readequação na reprimenda-base, reduzindo-a ao patamar de 1/3 sobre o pena mínima:

“A pena-base do agravado foi exasperada, em 4/5 sobre o mínimo legal, pelo desvalor atribuído à circunstância da quantidade e natureza da droga apreendida. No caso, trata-se da apreensão de mais de duas toneladas de maconha (e-STJ fl. 60). (...)

Contudo, não está legitimada a fração empregada na origem, que é desproporcional.

Ordem concedida, de ofício, para readequar o quantum de elevação da reprimenda a 1/3 sobre a pena mínima.”

Aliás, o art. 93, IX, da Constituição Federal estabelece que as decisões judiciais devem ser fundamentadas, sob pena de nulidade e, nos termos da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como não há critérios objetivos definidos em lei para a exasperação da pena-base, quando os critérios subjetivos desenvolvidos pelo julgador na aplicação da pena são feitos com fulcro em fundamentação genérica, há ofensa reflexa ao princípio da individualização da pena, tornando-a desproporcional:

“No caso, a pena-base do agravado foi exasperada em 6 anos pela valoração negativa da culpabilidade, dos antecedentes, da personalidade, dos motivos do crime e consequências do crime. Entretanto, o julgador deixou de indicar elementos concretos dos autos pelos quais entendeu serem reprováveis tais circunstâncias judiciais do art. 59 do CP, tendo se valido de elementos genéricos ou próprios do tipo penal incriminador, em manifesto desacordo, portanto, com o disposto no art. 93, IX, da Constituição Federal.

(AgRg no HC 629.109/ES, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 15/2/22, DJe de 21/2/22.)

Nesse sentido, quando a exasperação da pena-base é fundamentada em circunstâncias inerentes ao próprio tipo penal incriminador, por exemplo, a pena-base estabelecida para o delito de lesão corporal foi aumentada em razão da ofensa a integridade física da vítima, como a afronta ao corpo do sujeito é característico da lesão corporal, a orientação jurisprudencial é no sentido de que a sentença incorreu em flagrante ilegalidade, pois não é possível agravar a pena-base com suporte em parâmetros vinculados ao próprio delito:

“In casu, o Tribunal de origem valorou negativamente a culpabilidade, os antecedentes, a personalidade, as consequências do delito e o comportamento da vítima, sem adequação ao caso concreto, de modo que os fundamentos exarados refletem elementos ínsitos ao dispositivo violado, existindo, portanto, flagrante ilegalidade a justificar a concessão da ordem de ofício. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que considerações genéricas e desvinculadas do contexto fático dos autos, assim como elementos inerentes ao próprio tipo penal, não servem para a exasperação da pena.

(AgRg no HC 700.412/PB, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado do TJDFT), Quinta Turma, julgado em 15/3/22, DJe de 21/3/22.)”

Importante destacar que nos termos do art. 33, §3º, do Código Penal, o regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância ao art. 59 do Código Penal. Logo, ainda que a pena fixada na sentença condenatória seja inferior a 08 (oito) anos, é possível que diante das peculiaridades do caso ocorra o agravamento do regime inicial de cumprimento da reprimenda. No julgamento do AgRg no HC 804.809/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 15/5/23, DJe de 18/5/23, que analisou o crime de tráfico de drogas, a grande quantidade de entorpecente apreendida justificou a fixação do regime inicial fechado:

“As instâncias ordinárias mantiveram a fixação do regime inicial fechado, com base, justamente, nas peculiaridades do caso analisado, notadamente a natureza e a quantidade de drogas apreendidas e os materiais apreendidos relacionados à traficância, elementos que, de fato, justificam a imposição de regime prisional mais gravoso do que o cabível em razão da reprimenda aplicada, nos termos do art. 33, § 3º, c/c o art. 59 do CP.

Consoante entendimento desta Corte Superior de Justiça, a fixação da pena-base no mínimo legal não impede a aplicação de regime mais gravoso, desde que devidamente justificado com base nas peculiaridades do caso analisado, conforme feito na hipótese dos autos.”

Como visto, proferir uma sentença condenatória de forma isenta não é tarefa simples para o julgador, uma vez que a subjetividade na imposição da pena-base deve ser feita de acordo com as peculiaridades do caso, e não por critérios de oportunidade e de conveniência. Se, por um lado, o art. 59 do Código Penal concede certa subjetividade na exasperação da pena-base, por outro, deve haver justificativa concreta para que esse aumento no preceito secundário seja considerado válido.

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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