Espera-se que, em poucos dias, o Supremo Tribunal Federal volte ao julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/SP, no qual se discute a constitucionalidade do art. 28 da lei 11.343/06, que criminaliza o porte e a produção de drogas para uso próprio. Em síntese, se a maioria dos Ministros entender que o consumo de drogas é uma autolesão e esse comportamento diz respeito exclusivamente ao consumidor, a declaração de inconstitucionalidade do art. 28 impedirá qualquer tipo de sanção criminal ao usuário. Não obstante ser uma discussão que não deveria sair do plano jurídico, a repercussão política pode ser muito mais ampla.
Afinal, por que é crime portar drogas para uso próprio? A pergunta é pertinente porque, a depender do bem jurídico tutelado, a criminalização pode ser ilegítima. Normalmente, doutrina e jurisprudência costumam afirmar que todos os tipos penais da Lei de Drogas tutelam a saúde pública. No entanto, não há uma definição satisfatória sobre o que seja saúde pública e como um comportamento individual pode colocá-la em perigo. O único argumento aplicado é que, por ser um crime de perigo abstrato, o risco ao bem jurídico é presumido e não precisa de demonstração.
Ressalta-se que o delito não é usar drogas e praticar uma conduta lesiva sob efeito de entorpecente. O porte para uso, por si só, já basta para sua consumação. Alegar que o usuário, com seu estado psíquico alterado, pode provocar danos posteriores não é suficiente. Se assim o fosse, o consumo de álcool também deveria ser proibido, considerando que em grande parte dos acidentes de trânsito o causador encontra-se alcoolizado. Apenas para ilustrar, segundo dados oficiais da Secretaria Nacional de Trânsito, em 2022, 325 mil acidentes envolveram condutores embriagados1. Seria uma alternativa, para reduzir os acidentes viários, criminalizar o consumo de bebidas alcoólicas?
Compreendendo a questão das drogas como um imbróglio pertinente à saúde pública, outros temas também deveriam ser pautados pela lei penal. Um exemplo é a obesidade, considerada pela Organização Mundial da Saúde como um problema de saúde pública, que impacta direta ou indiretamente quase 50% da população brasileira2. Ora, não seria razoável fazer uso das leis penais para obrigar essa parcela das pessoas a ter uma alimentação mais saudável e praticar exercícios físicos regularmente. Uma medida dessas é a imposição, pelo Estado, de um padrão de comportamento contra a vontade do indivíduo que se quer beneficiar.
A descriminalização do uso é apenas o primeiro passo rumo à legalização. Em etapa posterior, deve-se regulamentar a produção, o comércio e a aquisição das substâncias entorpecentes, investindo-se na informação e na fiscalização, pois somente assim o tráfico ilegal poderá ser reduzido. Mas a mera descriminalização já será um passo largo para diminuir a utilização do aparato repressor criminal que deve se preocupar com conflitos mais graves. Se o usuário for dependente químico, ele precisa de assistência, não de um carimbo de criminoso na testa. Por outro lado, se for consumidor eventual, seu momento de recreação não diz respeito a mais ninguém.
Não nos esqueçamos de que todos somos usuários de drogas, lícitas ou ilícitas. Droga é toda substância que provoca alteração física ou psíquica, mesmo que não haja dependência do usuário. Não se pode ignorar que há muitas famílias que enfrentam desgraças motivadas por estupefacientes ilícitos, especialmente quando há o envolvimento do vício. Entretanto, também há inúmeros familiares sofrendo com o alcoolismo de pessoas queridas ou com tratamento de câncer provocado pelo uso de nicotina. É hipocrisia demonizar algumas substâncias e, ao mesmo tempo, glamorizar outras também nocivas.
Defender a descriminalização do uso de drogas não é estimular seu consumo. Da mesma forma que não apoiar a criminalização de bebidas alcoólicas não significa reconhecer o alcoolismo como algo bom. O proibicionismo só é interessante a quem lucra com a clandestinidade: traficantes e autoridades corruptas. Essa é a raiz de toda violência gerada pela disputa de território, que sempre atinge quem está na base da pirâmide. O sistema de justiça é historicamente seletivo e dificilmente busca aqueles que estão no topo da estrutura.
O STF tem a oportunidade de avançar com a política de drogas no Brasil, uma vez que os demais Poderes da República preferem dar continuidade à falida “guerra” iniciada nos anos 1980. Talvez seja a chance de a sociedade acordar para um problema sério e complexo, que, por isso, não se resolve com medidas superficiais e simplistas. As drogas sempre existiram e continuarão a fazer parte de nosso corpo social. O essencial é saber como reduzir os danos sem julgamentos meramente morais.
----------
1 https://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2023/04/04/motoristas-com-suspeita-de-embriaguez-provocaram-mais-de-325-mil-acidentes-em-todo-o-pais-em-2022.ghtml
2 https://portal.cfm.org.br/artigos/a-obesidade-e-problema-de-saude-publica/