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Apreensão do celular por força de mandado e a inexistência de relação com os rigores da lei 9.296/96

A apreensão do aparelho celular por força do cumprimento de mandado de busca e apreensão pressupõe a existência de decisão judicial devidamente fundamentada, e o acesso aos dados contidos no smartphone não se sujeita aos rigores da lei 9.296/96.

28/5/2023

A apreensão do aparelho celular por força do cumprimento de mandado de busca e apreensão, isto é, em obediência a pretérita decisão judicial, quando fundamentada em elementos capazes de justificar a imprescindibilidade da medida - uma vez que os dados contidos no celular dizem respeito à intimidade e à privacidade da pessoa - não é ilegal, pois o inciso XII do art. 5º da Constituição Federal admite a violação judicial do sigilo de dados, por ordem judicial:

“XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”

Importante destacar que a extração dos dados existentes no aparelho celular da pessoa submetida ao cumprimento do mandado de busca e apreensão não se confunde com interceptação de comunicação telefônica e, portanto, não se subordina à lei 9.296/96, pois os dados existentes no telefone celular já estão incorporados no próprio hardware apreendido (base fixa), e a interceptação telefônica ou telemática diz respeito aos dados que não foram incorporados no aparelho celular.

“Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do art. 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados. (HC 91867, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 24/4/12, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-185 DIVULG 19/9/12 PUBLIC 20/9/12)”

Como a finalidade da busca e apreensão do aparelho celular não está relacionada ao próprio aparelho celular, mas aos dados existentes no smartphone, consolidou-se o entendimento no âmbito do Superior Tribunal de Justiça que a apreensão do telefone pressupõe o acesso aos dados nele armazenados:    

“Este Tribunal Superior já assentou que "na pressuposição da ordem de apreensão de aparelho celular ou smartphone está o acesso aos dados que neles estejam armazenados, sob pena de a busca e apreensão resultar em medida írrita, dado que o aparelho desprovido de conteúdo simplesmente não ostenta virtualidade de ser utilizado como prova criminal"

(AgRg no HC 675.582/PE, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/8/21, DJe de 30/8/21.)

Aliás, como o mandado de busca e apreensão é autorizado através de fortes indícios da prática de crimes, ou seja, não há certeza do que poderá ser encontrado por ocasião do cumprimento da medida, prevalece o entendimento que não se considera genérica a decisão judicial que não faz a pormenorização de todos os bens que deverão ser apreendidos:

“A pormenorização dos bens somente é possível após o cumprimento da diligência, não sendo admissível exigir um verdadeiro exercício de futurologia por parte do Magistrado, máxime na fase pré-processual (Precedentes).

(RHC 59.661/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 3/11/15, DJe de 11/11/15.)”

Com efeito, quando o acesso aos dados do aparelho celular é feita ao consectário da oportunidade e da conveniência, sem autorização judicial pretérita, por ocasião de eventual prisão em flagrante, as provas colhidas a partir da insurgência constitucional serão consideradas ilícitas, pois, conforme sustentado, a obtenção de dados no aparelho celular exige prévia autorização judicial:

“Ambas as Turmas da Terceira Seção deste Tribunal Superior entendem ilícita a prova obtida diretamente dos dados constantes de aparelho celular, decorrentes de mensagens de textos SMS, conversas por meio de programa ou aplicativos (WhatsApp), mensagens enviadas ou recebidas por meio de correio eletrônico, decorrentes de flagrante, sem prévia autorização judicial.

(AgRg no HC 499.425/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 6/6/19, DJe de 14/6/19.)”

No julgamento do HC 672.688/MS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/6/22, DJe de 20/6/22 foi concedida ordem de habeas corpus para anular uma condenação lastreada em produção probatória ilícita, onde o policial responsável pela prisão em flagrante da paciente atendeu o telefone da pessoa e se passou por traficante para forjar a comercialização de entorpecente.

“No caso, por ocasião da própria prisão em flagrante - sem, portanto, a prévia e necessária autorização judicial -, o policial atendeu o telefone do réu e afirmou que a ligação tratava de um pedido de venda de substância entorpecente. [...] 3. A denúncia se apoiou em elementos obtidos a partir da apreensão do celular pela autoridade policial, os quais estão reconhecidamente contaminados pela forma ilícita de sua colheita.

Não tendo a autoridade policial permissão, do titular da linha telefônica ou mesmo da Justiça, para ler mensagens nem para atender ao telefone móvel da pessoa sob investigação e travar conversa por meio do aparelho com qualquer interlocutor que seja se passando por seu dono, a prova obtida dessa maneira arbitrária é ilícita.

No caso, a condenação do paciente está totalmente respaldada em provas ilícitas, uma vez que, no momento da abordagem ao veículo em que estavam o paciente, o corréu e sua namorada, o policial atendeu ao telefone do condutor, sem autorização para tanto, e passou-se por ele para fazer a negociação de drogas e provocar o flagrante.

Ordem concedida a fim de reconhecer a ilicitude da prova produzida por meio do atendimento policial da ligação da paciente para o celular do corréu no momento do flagrante, bem como de todas as dela decorrentes, com a consequente anulação da condenação da paciente.”

Assim, de acordo com o que foi fundamentado nesse estudo, se pode concluir que: a) A apreensão do aparelho celular por ocasião do cumprimento de mandado de busca e apreensão pressupõe a existência pretérita de ordem judicial devidamente fundamentada; b) Não se aplicam as regras contidas na lei 9.296/96 na apreensão do aparelho celular, uma vez que a interceptação telefônica diz respeito à comunicação dos dados, e não aos dados já incorporados no aparelho celular; c) O mandado de busca e apreensão do aparelho celular pressupõe o acesso aos dados existentes no hardware; d) Não se considera genérica a decisão judicial que não faz a pormenorização de todos os bens que deverão ser apreendidos no mandado de busca e apreensão; e) É ilícito o acesso aos dados existentes no aparelho celular sem prévia autorização judicial.

_______________

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Lei 9.296, de 24 de julho de 1996.

HC 91867, Relator(a): GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 24/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-185 DIVULG 19-09-2012 PUBLIC 20-09-2012.

AgRg no HC n. 675.582/PE, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 24/8/2021, DJe de 30/8/2021.

RHC n. 59.661/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 3/11/2015, DJe de 11/11/2015.

AgRg no HC n. 499.425/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 6/6/2019, DJe de 14/6/2019.

HC n. 672.688/MS, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 20/6/2022.

AgRg nos EDcl no REsp n. 1.957.639/PR, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 15/3/2022, DJe de 18/3/2022.

RHC n. 75.800/PR, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 15/9/2016, DJe de 26/9/2016.

RE 418416, Relator(a): SEPÚLVEDA PERTENCE, Tribunal Pleno, julgado em 10/05/2006, DJ 19-12-2006 PP-00037  EMENT VOL-02261-06 PP-01233.

HC n. 283.151/SP, relator Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 26/5/2015, DJe de 24/6/2015.

HC n. 142.205/RJ, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 4/11/2010, DJe de 13/12/2010.

Ricardo Henrique Araujo Pinheiro
Advogado especialista em Direito Penal. Sócio no Araújo Pinheiro Advocacia.

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