Interessante questão diz respeito a possibilidade de processamento de incidentes processuais no âmbito dos tribunais, incluindo os superiores.
A atuação dos tribunais pátrios de segundo grau e das cortes de vértice, desenvolve-se, quase que majoritariamente, na seara recursal.
As cortes ordinárias consubstanciam-se em verdadeiros órgãos revisores, repisando o acerto ou desacerto de determinada decisão de primeiro grau, reanalisando, revalorando e rejulgando a demanda.
O cenário altera a sua natureza quando estamos tratando das cortes de vértice, as quais detém missões constitucionais diversas daquelas, principalmente no que diz respeito ao Superior Tribunal de Justiça.
O aludido tribunal detém a missão constitucional de interpretação da melhor aplicabilidade da legislação federal infraconstitucional, além da uniformização da jurisprudência dos tribunais pátrios de segundo grau, sejam eles tribunais de justiça ou tribunais regionais federais.
No que diz respeito ao incidente de desconsideração da personalidade jurídica, é instrumento processual que amplia o objeto da demanda. É uma ação incidental que tem o desiderato de responsabilizar sócio ou pessoa jurídica que esteja ocultando patrimônio no cumprimento de determinada obrigação.
Por tratar-se de incidente processual, ou ação incidental, suspende-se o processo originário até o seu julgamento.
Grande parcela da doutrina apenas estuda e faz menção à aplicabilidade do incidente processual em graus ordinários de jurisdição.1
Inúmeras são as passagens acerca da desconsideração da personalidade jurídica no regimento interno do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos territórios. A título de exemplo cito o artigo 69, VII, 87, IV, além de uma seção especial a partir do artigo 388.
Pois bem. O regimento interno do STJ, positivou o processamento de alguns incidentes processuais, como da Suspensão de Segurança, de Liminar e de Sentença; da Suspensão de processos em incidente de resolução de demandas repetitivas; do incidente de Assunção de competência; dos Impedimentos e da Suspeição; da Habilitação Incidente; da Tutela Provisória; da mediação e da desconsideração da personalidade jurídica.
Em razão disso, inexistem maiores dificuldades acerca do cabimento do incidente no âmbito dos tribunais.
Outrossim, os artigos 136, parágrafo único, 516, I e 932, VI, do CPC, reforçam o aludido e não deixam margem para dúvidas acerca da instauração do incidente no âmbito jurisdicional dos tribunais.
Porém, um questionamento deve ser levado em consideração: o processamento do incidente é permitido apenas em ações originárias ou também em grau recursal?
Respeitável doutrina atesta que o incidente poderá ocorrer na fase de cumprimento de decisões proferidas no próprio âmbito do tribunal, ou seja, por meio de decisões respeitantes a ações de competência originária das cortes.2
Por uma análise perfunctória, tem-se que são nas ações originárias de tribunais o momento adequado para o requerimento, processamento e julgamento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica.
O regimento interno do TJDFT, no artigo 339, atesta que o incidente será processado perante o órgão julgador originário e sempre que possível distribuído ao respectivo relator, já a lei interna do STJ, em seu artigo 288-D, aduz que o incidente é cabível em todas as fases da ação de competência originária.
Pela leitura dos artigos do CPC, anteriormente mencionados, tem-se que o relator terá poderes para conduzir o incidente de desconsideração da personalidade jurídica no interior dos tribunais, mas não é possível se ter a certeza de qual competência estar-se-á referir.
Ora, os artigos 136, parágrafo único, 516, I e 932, VI, do CPC, fazem menção aos poderes do relator para julgamento do incidente, mas sem aclarar se em grau recursal ou competência originária.
Sanando tal omissão, os regimentos internos acima aludidos atestam que deverá ser instaurado perante o órgão julgador originário, além de que será cabível em qualquer fase de ações originárias de tribunal.
Portanto, será cabível seja na fase de conhecimento originária de tribunal ou em execuções provisórias ou definitivas de decisões monocráticas ou acórdãos.
Pode-se questionar acerca dos dizeres do artigo 134, do CPC, atestando o cabimento do incidente em qualquer fase do processo de conhecimento.
Ora, os recursos consubstanciam-se em uma etapa do processo de conhecimento, que só se encerra com o trânsito em julgado da demanda.
Porém, a fase recursal não é dotada de efeitos executivos ou probatórios, os quais devem ser dirimidos em primeiro grau de jurisdição, sob pena de preclusão, durante a fase instrutória do processo de conhecimento.
Em decorrência disso, via de regra, decisões em ações com produção probatória defeituosa ou inexistente tendem a ser anuladas, para renovação ou realização adequada do procedimento.
O que ocorre, a fase recursal é o rejulgamento da demanda, atestando o órgão revisor o acerto ou desacerto da decisão atacada.
Muitos poderiam questionar a natureza jurídica acerca da possibilidade de conversão do julgamento em diligência pelo tribunal, mas esse procedimento é aquele no qual o julgador, na maioria das vezes de ofício, remete os autos ao primeiro grau de jurisdição para cumprimento de ordem, logo a instauração do incidente, mesmo que a requerimento da parte, não costuma ser realizada no âmbito do tribunal.
Além disso, a instauração do procedimento incidental de ofício vai de encontro a lei, que exige prévio requerimento.
Por óbvio, existirão exceções nas quais o relator poderá, se constatar fato superveniente a decisão recorrida, intimar as partes para que se manifestem, podendo, desse modo, requerer a desconsideração da personalidade jurídica.
A aplicabilidade do artigo 933, do CPC, já foi por mim defendida, ao passo que os tribunais não devem ficar à margem de fatos novos ocorridos após a interposição do recurso.3
Contudo, não faz parte da atividade recursal das cortes a realização de diligências ou atividade probatória, tampouco o processamento do aludido incidente em grau recursal.
Ademais, os efeitos devolutivo e translativo dos recursos, em segundo grau, por si só, ratificam o fato de que há a possibilidade de reanálise dos fatos e provas constantes nos autos, mas não da instauração do procedimento de desconsideração em grau de reanálise, como corroborado pelos próprios regimentos internos acima mencionados.
A fase instrutória processual, desenvolve-se e fica a cargo do juízo de primeiro grau, como bem atesta o artigo 370, do CPC, localizado topograficamente em capítulo concernente a tramitação processual em primeiro grau de jurisdição.
Por certo que a legislação de regência fraqueia ao relator a possibilidade de produção de provas, mas aquelas na maioria das vezes documentais, no intuito de sanar um vício sanável, mas não instaurar um incidente que configura verdadeira ação incidental.
Há de se ter um certo cuidado e impor limites a atividade probatória em segundo grau (recursal), ao passo que não se pode permitir a prática de atos processuais pelos tribunais os quais caberiam ao juízo singular, o que usurparia a sua competência e configuraria manifesta supressão de instância.
Os vícios que podem e devem ser sanados em grau de recurso são aqueles meramente formais, mas não a anterior correção da causa ao julgamento, tampouco irresignações que deveriam ter sido opostas em momento processual anterior.
Portanto, a meu sentir, quaisquer diligências que possam interferir no rejulgamento da demanda devem ser remetidas ao juízo singular, possibilitando-se, além de tudo, um perfeito contraditório.
Elucidativo enunciado, 646 do Fórum Permanente dos Processualistas Civis, atesta que constatada a necessidade de produção de prova em grau de recurso, o relator tem o dever de conversão do julgamento em diligência.
E isso se dá, com a remessa dos autos para a primeira instância, sendo o ambiente mais adequado para a produção de prova, além do que aos tribunais não seria adequado sobrecarregar as suas atividades recursais, para a concretização de diligências, ante as quais os juízos singulares são competentes e estruturados.
Barbosa Moreira, sempre elucidativo, ensina que a regra do trâmite recursal é a não inovação, ou seja, não é o momento de se inovar ou trazer elementos para uma nova causa de pedir, somente sendo lícito trazer questões de fato supervenientes ou que a parte deixou de trazer ao juiz singular por questões de força maior, devidamente comprovadas.4
Não por outra razão os regimentos internos do TJDFT e do STJ, são expressos em permitir a instauração do incidente em ações originárias, nas quais, por consequência, são os próprios tribunais os juízos competentes para a produção probatória, além de executores de suas decisões.
Interessante passagem, inciso I, do artigo 340, do RITJDFT, diz que o relator poderá indeferir de plano o incidente quando manifestamente incabível a sua instauração.
Creio, em uma análise inicial, estar se referindo o regimento a hipótese inadequada de requerimento de instauração do incidente em grau recursal.
Portanto, a lei autoriza ao relator, no tribunal, a realização de diligências necessárias ao regular deslinde recursal, como o saneamento de vícios, bem como a produção de determinadas provas, não complexas.
Sendo de um certo grau de complexidade as diligencias a serem realizadas, além das provas a serem produzidas, correta a remessa dos autos ao juízo prolator da decisão impugnada, detentor de melhores condições e estrutura técnica para tanto, afinal, a fase instrutória completa deve ser realizada em primeiro grau de jurisdição, sendo cabível ao juízo recursal a complementação ou o saneamento de vícios formais do recurso, jamais a reabertura da fase postulatória e probatória no âmbito do tribunal.
Ora, se sequer é aconselhável a produção complexa de provas naquela instância, no julgamento de recursos, tampouco será a possibilidade de se instaurar incidente dessa natureza.
Importante ressaltar, o fato de que a autorização para o órgão ad quem produzir provas, diz respeito a celeridade e economia processual, sendo de pouca complexidade a prova a ser produzida, ante a se evitar a anulação de determinada decisão, o tribunal poderá produzi-la.
Há de atuar com prudência o relator em tais hipóteses, ao passo que o CPC o defere a direção do processo, ainda quanto a produção de prova, devendo ordenar a produção de questões simples, jamais comprometendo a própria tramitação do recurso, em razão de algo que deveria ou deverá ser produzido no juízo a quo.
Ademais, raras serão as hipóteses em que as partes não formularão requerimento de instauração do incidente em questão na instrução probatória ou em execução.
Não possui o tribunal a envergadura procedimental necessária, com instrumentos para citações e realização de diligências externas, devendo ser o incidente remetido ao primeiro grau, pois compatível com a sua natureza.
Aliás, importante mencionar, no TJDFT e no STJ, os órgãos para se processar os recursos e os incidentes dessa natureza sequer são os mesmos, o que denota a incompatibilidade para a autorizada instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica perante as ações originárias e o grau recursal ordinário.
Por fim, conclui-se que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica pode ser instaurado perante os tribunais, mas jamais em grau recursal, não sendo o momento adequado para tanto, tampouco conveniente que o tribunal paralise a sua função de julgar recursos, para reabrir ou realizar diligencias incidentais dessa magnitude, perfazendo verdadeira ação incidental, fugindo do lastro de competência das cortes julgar incidentes em grau recursal.
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1 TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER, MARIA LÚCIA LINS CONCEIÇÃO, LEONARDO FERRES DA SILVA RIBEIRO e ROGERIO LICASTRO TORRES DE MELLO, Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil, RT, 2015, p. 253
2 HUMBERTO THEODORO JÚNIOR, Curso de Direito Processual Civil, Vol. III, 48ª ed., Forense, p. 779/780
3 Https://www.migalhas.com.br/depeso/377778/o-artigo-933-do-cpc-e-a-sua-aplicabilidade-nos-tribunais-superiores
4 MOREIRA, José Carlos Barbosa, Comentários ao CPC/73, 2009.