Não é novidade que a lei 14.112/20 promoveu substanciais alterações na lei 11.101/05. Muitas das modificações já fazem eco nos Tribunais do País e abrem espaço para interpretações de aplicabilidade.
A análise que aqui se faz, cinge-se especificamente sobre a regra de direito intertemporal inserida na lei 14.112/20, a qual estabelece que:
“Art 5º Observado o disposto no art. 14 da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) , esta lei aplica-se de imediato aos processos pendentes.
§ 1º Os dispositivos constantes dos incisos seguintes somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o início da vigência desta lei:
II - as alterações sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial e sobre a ordem de classificação de créditos na falência, previstas, respectivamente, nos arts. 49, 83 e 84 da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.”
O art 49 não será tratado neste texto, eis que versa sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial. O cerne da discussão posta em debate, volta-se ao art 83 da lei, o qual versa sobre a ordem de classificação dos créditos sujeitos à falência.
A regra de direito intertemporal estabeleceu que as alterações promovidas na ordem de classificação dos créditos inseridas nos Arts. 83 e 84 da LFRJ, serão aplicadas apenas às falências decretadas após o início de vigência da lei 14.112/20 (23/1/21).
O ponto que, em tese, cabe interpretação de aplicabilidade do novo regramento, encontra-se na revogação do § 4 e inserção do § 5 do art 83 da LFRJ, os quais têm as seguintes redações:
“Art. 83, § 4º, da lei 11.101/05 (dispositivo revogado): Os créditos trabalhistas cedidos a terceiros serão considerados quirografários;”
“Art. 85, § 5º, da lei 11.101/05 (texto revogador): Para os fins do disposto nesta lei, os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação.”
Nota-se da literalidade do dispositivo revogado que o legislador não estabeleceu se a hipótese fática imporia aos créditos trabalhistas cedidos a terceiros a perda da natureza, da classificação, ou ambas.
O legislador reformador corrigiu a imprecisão contida na norma revogada, a fim de impossibilitar a transmudação do crédito laboral cedido a terceiro, seja pela natureza ou pela classificação, nomenclaturas estas expressamente utilizadas no texto legal.
Este é o ponto fulcral da presente análise. Se o crédito trabalhista cedido a terceiro não perde mais a natureza, por força de previsão expressa, não há que se falar em reclassificação, de vez que esta decorre daquela. Ou seja, se altera-se a natureza, consequentemente, modifica-se a classificação, mas se a natureza não se troca, fatalmente, não haverá substituição de classe.
Isso importa dizer, objetivamente, que a regra de direito intertemporal em questão, não se aplica à hipótese de cessão de crédito trabalhista a terceiro.
Isso não significa que a regra de direito intertemporal não será aplicada, ao revés, a norma é de extrema importância para a nova sistemática de classificação, tendo em vista as importantes e substanciais modificações inerentes à ordem de classificação.
Cita-se, à guisa de exemplo, algumas alterações:
(A) dentre os créditos concursais, (i) acabou com a classe dos créditos com privilégio especial (LRE, art. 83, inciso IV) e com privilégio geral (LRE, art. 83, inciso V), aglutinando-os na classe dos quirografários (LRE, art. 83, § 6º), e (ii) inseriu, como nova classe (abaixo dos subordinados), os créditos por juros vencidos após decretação da falência (LRE, arts. 93, inciso IX, e 124);
(B) dentre os créditos extraconcursais, (iii) desmembrou a primeira classe (LRE, art. 84, inciso I), ordenando-os em quatro distintas e novas classes (sujeitando-os, assim, a uma inédita ordem sucessiva de satisfação) (LRE, art. 84, incisos I-A a I-E).
Verifica-se que houve diversas alterações na classificação dos créditos e havia a necessidade de estabelecer critérios para a aplicação, o que fora feito pelo legislador.
Mas não há como aplicar a regra de direito intertemporal à hipótese de cessão de crédito trabalhista a terceiro porque, neste caso, a mudança ocorreu apenas na natureza do crédito e não na classificação. O crédito trabalhista continua sendo laboral, já que a lei estabeleceu que a alienação não implica em perda da natureza.
Vale citar, como exemplo, a doutrina pretérita às alterações do jurisconsulto e ex-juiz da 2ª vara de Recuperações Judiciais e Falências do Foro Central da Comarca de São Paulo/SP, Dr. Marcelo Barbosa Sacramone, eis que o jurisconsulto elucida com meridiana clareza que a cessão do crédito implicava em perda da natureza:
“A alteração da natureza do crédito se justifica, porém, em razão dos direitos dos terceiros. Ela decorre da perda do caráter alimentar do crédito em face do cessionário, que o adquire voluntariamente em razão de seu interesse pecuniário.”
Verifica-se, portanto, que o mens legis do art. 5º, §1º, II, da lei 14.112/20, regra de direito intertemporal, está jungido às alterações atinentes às exclusões de classes, criações de novas classes e desmembramento de classes, eis que estas hipóteses estão subsumidas à ordem de classificação dos créditos, e não a alteração da natureza do crédito, como ocorre na cessão de crédito vinculado à falência.
E isso porque, nota-se que a regra de direito intertemporal se restringe às alterações relativas à ordem de classificação do crédito, especificadas alhures, e não se estende àquelas que dizem respeito à natureza dos créditos.
Nessa intelecção, destaca-se trecho de contemporâneo acórdão prolatado pela colenda 18ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, que indica, com clareza, a atual situação dos créditos trabalhistas cedidos a terceiros, mesmo no contexto dos processos anteriores à lei 14.112/20:
“(...) a lei 14.112/20 revogou a previsão que alterava a classificação do crédito no caso de cessão (art. 83, § 4º, da lei 11.101/05), o que, tendo em vista o disposto no seu art. 5º, tem aplicabilidade imediata (...).
Ressalta-se que a ressalva da regra de direito intertemporal se restringe à ordem de classificação do crédito, e não à sua natureza.
Logo, o dispositivo legal no qual se fundou o juízo de origem [art. 83, §4º, da lei 11.101/2005] não mais integra o ordenamento jurídico, sendo de aplicabilidade imediata os efeitos de sua revogação às recuperações judiciais em curso.
Nesse sentido, observo que o resultado da ADIn 34.244, cujo julgamento pelo Plenário do STF findou em 17/4/21, na qual se discutia, dentre outros pontos, a (in)constitucionalidade do art. 83, § 4º, da lei 11.101/05, vai ao encontro do ora exposto, visto que, por maioria, a análise pela Suprema Corte restou prejudicada ante a revogação do dispositivo e sua aplicação imediata os efeitos de sua revogação às recuperações judiciais em curso.” (TJ/PR. 18ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento 0002788-34.2021.8.16.0000. Data do Julgamento: 11/6/21. Trânsito em julgado: 6/8/21)
Há de se registrar, ainda, que a manutenção da natureza do crédito beneficia diretamente o credor trabalhista, eis que aumenta a concorrência por seu crédito e proporcionalmente o preço a ser pago por ele, de modo a valorizar os créditos trabalhistas no mercado de ativos estressados.
Portanto, é certo afirmar que entendimento diverso à manutenção da natureza do crédito prejudicaria a quem lei decidiu proteger, qual seja, o detentor de direito trabalhista.
A caminho do fim, registra-se que o Supremo Tribunal Federal, ao debruçar-se no julgamento, em 22/5/20, do Recurso Extraordinário tombado 631.537, fixou tese relativa ao Tema de Repercussão Geral 361, na qual estabeleceu que crédito alimentício cedido não perde sua natureza, entendimento que se aplica, na íntegra, ao tema discutido.
O entendimento do STF se coaduna ao espírito da Lei Falitária, eis que os Ministros da Suprema Corte também sopesaram que, caso houvesse a alteração da qualidade do crédito, haveria perda de interesse na sua aquisição ou diminuição de seu valor, prejudicando, assim, os credores alimentares - justamente aqueles que a lei e a Constituição Federal mais buscam proteger.
Para que não haja dúvidas, frisa-se que embora tal julgado faça menção a precatório de natureza alimentar, a mesma lógica se aplica a qualquer crédito trabalhista, inclusive, aos atrelados a processos de falência, tendo em vista que o precatório alimentar nada mais é, afinal, do que um crédito trabalhista contra o Poder Público. E, se o raciocínio se aplica aos créditos trabalhistas contra o Poder Público, entende-se que também deve se aplicar aos créditos trabalhistas contra particulares.
Conclui-se que o art. 5º, §1º, II, da lei 14.112/20 é expresso em limitar a aplicação deste dispositivo às alterações sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial e sobre à ordem de classificação de créditos na falência, previstas, respectivamente, nos arts. 49, 83 e 84 da lei 11.101/05, e não sobre a natureza dos créditos, de modo que qualquer a premissa utilizada para sustentar suposta reclassificação do crédito trabalhista cedido a terceiro para a classe quirografária, por ocasião de celebração de cessão de crédito, não condiz com o texto legal e com a jurisprudência do STF.