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Boa-fé objetiva e acordo de acionista: Breves considerações

Breves considerações sobre a aplicação da boa-fé objetiva aos acordos de acionistas.

19/5/2023

As relações entre os acionistas de uma sociedade estão na órbita do direito privado, sendo por ele regidas e, por isso, permitem a realização dos mais diversos ajustes1. Entre esses, tem especial destaque os acordos de acionistas, que poderão prever matérias específicas como a compra e venda de ações, eventuais preferências para adquiri-las, o exercício do direito de voto e do poder de controle2.

Como bem explanado pela doutrina nacional, os acordos de acionistas têm natureza jurídica de contrato, mais especificamente de um contrato parassocial. É o que ensinam, dentre outros, Gladston Mamede e Marcelo Barbosa Sacramone:

É lícito aos sócios acordarem entre si ações e/ou omissões, direitos e deveres, no que diz respeito ao exercício de seus direitos societários. Isso se faz por meio de um acordo de acionistas. O acordo de acionistas é contratação parassocial, vale dizer, convenção (contrato) que se compreende nas relações intestinas (interna corporis) da companhia, mas concretizada para aquém de suas regras universais, legais ou estatutárias, embora sem poder desrespeitá-las. É contrato que diz respeito à companhia e pode até vinculá-la, em certas matérias, bastando seja arquivado em sua sede. Definição de obrigações e faculdades entre os seus pactuantes, conforme tenham se ajustado3.

O acordo de acionistas é disciplinado no art. 118 da LSA, e se caracteriza como contrato parassocial, em que há a composição dos interesses dos sócios entre si, e cuja eficácia pode ser oposta à sociedade e a terceiros. A definição de parassocial foi introduzida por Oppo, para quem o acordo de acionistas deve ser definido como “os acordos estipulados pelos sócios (por alguns ou também por todos), fora do ato constitutivo e do estatuto, para regular entre si ou também nas relações com a sociedade, com os órgãos sociais ou terceiros, seus interesses ou uma conduta social”4.

Em se tratando de contratos, é certo que as suas disposições e a conduta dos sócios ali vinculados estão submetidas ao princípio da boa-fé objetiva, norteador do direito contratual brasileiro e positivado no art. 422 do Código Civil, segundo o qual “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé”.

Sobre a questão, Fernando Noronha discorre que o princípio oferece a visão de uma relação obrigacional complexa, onde importa não apenas a satisfação das obrigações pactuadas em contato e na lei, mas também a observância a certos deveres de conduta5. Esses deveres, comumente chamados de deveres anexos ou laterais, constituem deveres de cuidado, de respeito, de informação, de agir conforme a confiança depositada, de lealdade e probidade, de colaboração ou cooperação, de honestidade, de razoabilidade e de equidade.

Nesse sentido, os contratantes, nas fases pré-contratual, contratual e pós-contratual deverão guardar entre si o respeito aos deveres anexos da boa-fé objetiva, estabelecendo relações negociais probas, leais, honestas e cooperadas. A proteção legal decorre da compreensão da relação contratual como uma estrutura, um processo complexo, e não apenas como um mero conjunto de obrigações.

No campo societário, José Romeu Garcia do Amaral defende que a contratualidade das relações atrai a aplicação da cláusula geral de boa-fé sem que haja a necessidade de introduzir uma norma específica no regime das sociedades anônimas6.

Judith Martins Costa complementa ao defender que a vinculação dos sujeitos ao fim comum leva a um intenso grau de colaboração que, nessa modalidade, se torna estrutural7. Desse fim, que é unificador das manifestações individuais de cada sociedade, decorrem os deveres de lealdade, colaboração e contribuição entre os sócios que, ao fim e ao cabo, concretizam a boa-fé8.

Especificamente quanto aos acordos, a autora ressalta o impacto dos deveres de lealdade e de salvaguarda dos interesses dos demais acionistas na apuração in concreto da correção de uma determinada conduta e de legítimas expectativas que eventualmente tenham sido criadas9. A importância se estende à interpretação e aplicação das cláusulas contratuais, que sempre deverão ter como norte aquilo que não resulte em prejuízo para a companhia ou para os demais acionistas10.

Torna-se possível, por exemplo, a vedação a um determinado comportamento contraditório daquele que, com ato anterior, criou nos demais acordantes uma determinada expectativa de conduta. Ainda, a aplicação da supressio, com perda de direitos descritos no instrumento pelo seu não exercício no curso da relação contratual.

Conclui-se, por fim, pela necessidade de aplicação do princípio às situações específicas demandadas no caso concreto, notadamente diante da complexidade das relações societárias e de tudo aquilo que envolve o melhor interesse da companhia e as legítimas expectativas das relações travadas entre seus sócios.

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1 TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial. v. 1. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 228.

2 TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial. v. 1. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 231.

3 MAMEDE, Gladston. Direito Empresarial Brasileiro: Direito Societário. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 408

4 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Manual de Direito Empresarial. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 108.

5 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios: autonomia privada, boa-fé e justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 157.

6 AMARAL, José Romeu Garcia do. Dever de lealdade dos acionistas nas sociedades anônimas. 2020. 451 p. Tese de Doutorado – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2020, p. 135.

7 MARTINS-COSTA, Judith, A boa fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 384/385.

8 MARTINS-COSTA, Judith, A boa fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 385/386.

9 MARTINS-COSTA, Judith, A boa fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 391.

10 AMARAL, José Romeu Garcia do. Dever de lealdade dos acionistas nas sociedades anônimas. 2020. 451 p. Tese de Doutorado – Universidade Federal de São Paulo, São Paulo, 2020, p. 253.

Maria Clara Versiani de Castro
Advogada da área de Contencioso Estratégico do Coimbra, Chaves & Batista Advogados. Mestre em Direito, com ênfase em Direito Civil, pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Lavras. Pesquisadora no Laboratório de Bioética e Direito - LABB.

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