No Brasil, as leis de cotas eleitorais sempre foram desenhadas para garantir que a desigualdade entre homens e mulheres não acabasse. Por mais estranho que essa declaração seja, as estruturas legais corroboram com essa tese.
Quando a lei de cotas foi criada, com a simples obrigação dos partidos separarem vagas para as mulheres na lista das candidaturas parlamentares, sem determinar orçamento, espaço de propaganda ou mesmo isonomia nos processos de decisão do partido, a Legislação introduziu uma pegadinha: os partidos agora teriam que reservar 30% da lista, mas em contrapartida passariam a poder criar uma lista de 150% do número de vagas, o que fez com que o estado de São Paulo, por exemplo, ampliasse em 3 vagas para homens após a cota de gênero.
Desde meados da década de 1990 até 2023, a lei de cotas eleitorais passou por várias mudanças para aprimorar sua efetividade, resultado de uma árdua luta dos movimentos sociais de mulheres. No entanto, cada avanço realizado encontrou resistência significativa em seu caminho.
Quando, em 2018, o Tribunal Superior Eleitoral consolidou o entendimento de que o fundo partidário e o fundo eleitoral de campanha deveriam ser utilizados proporcionalmente entre as candidaturas masculinas e femininas e, ainda, que os partidos teriam também que financiar igualmente as campanhas de candidatos/as negros, acreditou-se que os resultados, enfim, viriam e que o parlamento brasileiro ganharia formas mais próximas da realidade.
Ledo engano, desde então o que observa-se é uma imensidade de manobras para que as regras não se transformem em efetivo fomento de igualdade.
A tentativa de anistiar partidos políticos que não cumpriram a lei não é novidade. Em 2019 o governo Bolsonaro sancionou a lei 13.831/19, que perdoou os partidos que não aplicaram os recursos do Fundo Partidário para apoio a mulheres nos exercícios anteriores, representando a anistia de R$ 70 milhões, que poderia ter sido utilizado no incentivo de diversas mulheres, impulsionando suas campanhas e ocupação dentro das esferas partidárias e do cenário político como todo.
Já no ano de 2021, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 18/21 foi aprovada na Câmara Federal com 400 votos a favor. A proposta previa a anistia a partidos políticos que não cumpriram a obrigação legal de distribuir o financiamento público para candidaturas de mulheres e pessoas negras, seguindo o mínimo de 30% e o máximo de 70%, e que também não utilizaram os 5% de recursos destinados obrigatoriamente a programas de promoção e incentivo à participação política feminina em períodos não eleitorais.
As duas casas legislativas se reuniram em dois turnos cada uma e aprovaram, por maioria qualificada, a PEC, que se transformou na Emenda à Constituição 117/22.
A Emenda estabeleceu que a Justiça Eleitoral não teria o poder de impor sanções de qualquer tipo, como multas, suspensão do fundo partidário ou devolução de valores, às legendas que não cumpriram corretamente as normas de financiamento de candidaturas com proporcionalidade de gênero e raça em eleições passadas (art. 3º). Isso significa que a falta de investimento dos partidos em candidatas e pessoas negras até o ano de 2021 não seria penalizada.
Dois anos depois, em um novo governo, com uma narrativa mais plural e alinhada aos direitos humanos nos deparamos com a Proposta de Emenda à Constituição 09, de autoria do deputado Paulo Magalhães (PSD-BA) e outros, que tem como objetivo ampliar o período estabelecido pela EC 117 para a aplicação de sanções no caso de descumprimento das regras de destinação de financiamento público para garantir a diversidade de gênero e raça. A proposta busca estender a anistia partidária para as eleições de 2022.
A PEC contou com as assinaturas de 184 parlamentares de 14 partidos, incluindo PT e PL, as duas maiores bancadas da Câmara, assim como PSD, Republicanos, MDB, PP, Podemos, PV, Psol, União Brasil, PSDB, Avante, PDT e PSB.
No dia 14 de abril de 2023, o deputado Diego Coronel (PSD-BA), relator da PEC na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, votou a favor da admissibilidade da proposta. Ele justificou seu posicionamento argumentando que a anualidade eleitoral, prevista no art. 16 da Constituição Federal de 1988, exige que a aplicação de eventuais sanções pelo descumprimento das cotas pelos partidos políticos seja previsível do ponto de vista jurídico.
A CCJ conta com 55 membros e, no dia 16 de maio de 2023, a PEC foi aprovada por 45 destes, entre eles 7 mulheres.
Assim, na mais importante comissão da câmara, em que estão os partidos da situação e da oposição, os deputados e deputadas mais fortes de suas siglas, de forma transversal, coesa e em massa, votaram pela aprovação de uma emenda constitucional que visa, mais uma vez, impedir que as mulheres participem dos espaços políticos em pé de igualdade.
Desestabiliza qualquer democrata ver como o corporativismo masculino ultrapassa diferenças estruturantes de posição política na união dos homens brancos contra as parcas tentativas de dividir o poder.
Atualmente, a PEC foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados e será analisada por uma comissão especial. Caso passe, será encaminhada para votação no plenário.
Com sua aprovação, fica o entendimento de que os partidos políticos continuarão impunes, com a cumplicidade do Congresso Nacional, em relação à violência política institucionalizada contra mulheres e pessoas negras
Mais uma vez o Direito é chamado para fazer o trabalho sujo do sexismo e do racismo institucional, deixando transparente que a Lei está ao dispor dos poderosos. Se torna, então, questionável o valor das leis de cotas se não há a tentativa de implementação plena, ao sofrer um verdadeiro backlash, que afasta inclusive a possibilidade da Justiça Eleitoral punir os infratores.
Como muito bem disse Simone de Beauvoir: “nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida.”
E nós aqui, vigilantes, esperamos que o legislativo brasileiro tenha respeito pela esmagadora maioria da população e garanta às mulheres e às pessoas negras as oportunidades que lhe são direito.
Autoria da PEC 09/2023: Paulo Magalhães (PSD-BA)
Compõem A CCJC:
- Afonso Motta (PDT/RS)
- Aguinaldo Ribeiro (PP/PB)
- Alencar Santana (PT/SP)
- Alex Manente (Cidadania/SP)
- Alfredo Gaspar (União/AL)
- André Janones (Avante/MG)
- Arthur Oliveira Maia (União/BA)
- Bacelar (PV/BA)
- Capitão Augusto (PL/SP)
- Carlos Jordy (PL/RJ)
- Caroline De Toni (PL/SC)
- Cobalchini (MDB/SC)
- Coronel Fernanda (PL/MT)
- Covatti Filho (PP/RS)
- Dal Barreto (União/BA)
- Dani Cunha (União/RJ)
- Delegada Katarina (PSD/SE)
- Delegado Marcelo Freitas (União/MG)
- Delegado Ramagem (PL/RJ)
- Delegado Éder Mauro (PL/PA)
- Deltan Dallagnol (Pode/PR)
- Diego Coronel (PSD/BA)
- Dr. Victor Linhalis (Pode/ES)
- Dra. Alessandra Haber (MDB/PA)
- Duarte (PSB/MA)
- Eli Borges (PL/TO)
- Eunício Oliveira (MDB/CE)
- Fausto Santos Jr. (União/AM)
- Felipe Francischini (União/PR)
- Flávio Nogueira (PT/PI)
- Gerlen Diniz (PP/AC)
- Gervásio Maia (PSB/PB)
- Helder Salomão (PT/ES)
- Jorge Goetten (PL/SC)
- José Guimarães (PT/CE)
- José Nelto (PP/GO)
- João Leão (PP/BA)
- Juarez Costa (MDB/MT)
- Julia Zanatta (PL/SC)
- Lafayette De Andrada (Republicanos/MG)
- Luiz Couto (PT/PB)
- Marcelo Crivella (Republicanos/RJ)
- Marcos Tavares (PDT/RJ)
- Maria Arraes (Solidariedade/PE)
- Marreca Filho (Patriota/MA)
- Mendonça Filho (União/PE)
- Murilo Galdino (Republicanos/PB)
- Patrus Ananias (PT/MG)
- Paulo Abi-Ackel (PSDB/MG)
- Paulo Magalhães (PSD/BA)
- Pr. Marco Feliciano (PL/SP)
- Renilce Nicodemos (MDB/PA)
- Renildo Calheiros (PCdoB/PE)
- Roberto Duarte (Republicanos/AC)
- Robinson Faria (PL/RN)
- Rosângela Moro (União/SP)
- Rosângela Reis (PL/MG)
- Rubens Pereira Júnior (PT/MA)
- Rui Falcão (PT/SP)
- Silvio Costa Filho (Republicanos/PE)
- Waldemar Oliveira (Avante/PE)
- Yury Do Paredão (PL/CE)
- Zé Haroldo Cathedral (PSD/RR)
- Átila Lira (PP/PI)
- Sâmia Bomfim (Psol/SP)
- Tarcísio Motta (Psol/RJ)
Votaram SIM para a PEC:
- Capitão Augusto (PL-SP)
- Carlos Jordy (PL-RJ)
- Coronel Fernanda (PL-MT)
- Del. Éder Mauro (PL-PA)
- Delegado Ramagem (PL-RJ)
- Jorge Goetten (PL-SC)
- Julia Zanatta (PL-SC)
- Pr. Marco Feliciano (PL-SP)
- Robinson Faria (PL-RN)
- Rosângela Reis (PL-MG)
- Yury do Paredão (PL-CE)
- Pastor Eurico (PL-PE)
- Antonio Carlos R. (PL-SP)
- Alencar Santana (PT-SP)
- Bacelar (PV-BA)
- Flávio Nogueira (PT-PI)
- Helder Salomão (PT-ES)
- Gleisi Hoffmann (PT-PR)
- Rubens Otoni (PT-GO)
- Lindbergh Farias (PT-RJ)
- Rubens Pereira Jr. (PT-MA)
- Rui Falcão (PT-SP)
- Delegado Marcelo (UNIÃO-MG)
- Tião Medeiros (PP-PR)
- Julio Arcoverde (PP-PI)
- Lázaro Botelho (PP-TO)
- Aguinaldo Ribeiro (PP-PB)
- Covatti Filho (PP-RS)
- Cobalchini (MDB-SC)
- Juarez Costa (MDB-MT)
- Renilce Nicodemos (MDB-PA)
- Delegada Katarina (PSD-SE)
- Diego Coronel (PSD-BA)
- Paulo Magalhães (PSD-BA)
- Waldemar Oliveira (AVANTE-PE)
- Zé Haroldo Cathedral (PSD-RR)
- Lafayette Andrada (REPUBLICANOS-MG)
- Marcelo Crivella (REPUBLICANOS-RJ)
- Murilo Galdino (REPUBLICANOS-PB)
- Roberto Duarte (REPUBLICANOS-AC)
- Silvio Costa Filho (REPUBLICANOS-PE)
- Fausto Santos Jr. (UNIÃO-AM)
- Dr. Victor Linhalis (PODE-ES)
- Maria Arraes (SOLIDARIEDADE-PE)
- Gervásio Maia (PSB-PB)
Votaram NÃO para a PEC:
- Alfredo Gaspar (UNIÃO-AL)
- Kim Kataguiri (UNIÃO-SP)
- Mendonça Filho (UNIÃO-PE)
- Rosângela Moro (UNIÃO-SP)
- Gerlen Diniz (PP-AC)
- Gilson Marques (NOVO-SC)
- Deltan Dallagnol (PODE-PR)
- Tabata Amaral (PSB-SP)
- Sâmia Bomfim (PSOL-SP)
- Tarcísio Motta (PSOL-RJ)