Neste 19 de maio é comemorado o Dia Nacional da Defensoria Pública, conforme previsão da lei 10.448/02. A data, para além de celebrar a carreira das Defensoras Públicas e Defensores Públicos brasileiros, festeja também o mais amplo e eficaz modelo público de assistência jurídica, integral e gratuita, responsável por mais de 15 milhões de atendimentos somente no último ano.
Com assento constitucional apenas a partir de 1988, não por acaso em um contexto de redemocratização e reestruturação da sociedade brasileira, a Defensoria Pública e o art. 134 da Constituição, ao longo dos últimos 35 anos, sofreram importantes alterações, imprescindíveis para a ampliação do acesso à justiça e para a redução dos alarmantes níveis de desigualdade social.
Foi a partir das emendas 45/04 e 80/14 que a Defensoria Pública foi posicionada e reafirmada como a instituição, integrante do Sistema de Justiça, dotada de autonomia, responsável pela promoção dos direitos humanos e a defesa, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados.
É consabido que a história brasileira e sua estrutura social são atravessadas fortemente por graves violações de direitos humanos, o superencarceramento, a misoginia, o capacitismo, sexismo, lgbtqia+fobia e narrativas absolutamente controversas, como a da democracia racial.
Nesse contexto, a previsão, bem como a evolução do texto constitucional, legitima, além de impor à Defensoria Pública, uma atuação contundente, institucional, apta a servir como instrumento e expressão do regime democrático1, e a efetivamente atuar na promoção dos direitos humanos e do acesso à justiça para a população vulnerável e vulnerabilizada, para as minorias e para as maiorias minorizadas do país.
A Defensoria Pública, portanto, e é preciso sempre destacar, atua não apenas em uma perspectiva individual. Os serviços prestados à sociedade brasileira alcançam as diversas vulnerabilidades sociais, escapando da visão limitada e enviesada, presente em outros países, de que o acesso à justiça limitar-se-ia à vulnerabilidade financeira, expandindo o alcance dos serviços prestadas sob a perspectiva da vulnerabilidade organizacional e a jurídica.
É esse o modelo público de assistência jurídica, indispensável e efetiva, presente no Brasil que também é celebrado nesta data. Em um país de dimensões continentais, somente com autonomia, financeira e administrativa, além de amparo institucional, com estrutura e valorização, é que as defensoras e defensores públicos podem desenvolver seu trabalho em relação às multicitadas vulnerabilidades, enfrentando muitas vezes o próprio Estado e o Poder econômico2 nas comarcas mais diversas do país.
É absolutamente indispensável que esse modelo seja ampliado e preservado. Deveras, seja na atuação extrajudicial, seja na atuação coletiva ou individual, desde uma ação de alimentos contra pessoas públicas e/ou atores políticos, até o enfrentamento de irregularidades e ilegalidades praticadas por agentes de segurança pública, não há hipótese de atuação independente e efetiva de agente público que não seja pela Defensoria Pública.
Foi com o objetivo de garantir e impor ao Estado Brasileiro a presença da Defensoria Pública e desse modelo público de assistência jurídica em todo território, que a Emenda Constitucional 80/14, por meio da introdução do §2º do art. 98 do Ato das disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), estabeleceu o prazo de 8 anos (2022) para que as defensoras públicas e defensores públicos atuem em todas as unidades jurisdicionais do país.
Dados do IPEA demonstram avanços significativos desde a promulgação da emenda. A pesquisa, realizada nos anos de 2013 e, posteriormente, em 19/20, demonstrou que o número de comarcas atendidas passou de aproximadamente 750, em 2013, para cerca de 1.162, em 2020, ao passo que o número de defensoras e defensores prestando atendimento nestas comarcas passou de cerca de 4.500 para 6.235.
Em que pese os avanços, é inegável que, em 2023, descumprido o mandamento constitucional, resta caracterizada a mora do Estado Brasileiro com a Defensoria Pública, com o modelo público de assistência jurídica, integral e gratuita, e, em especial, com a população que depende das defensoras e defensores públicos para ter acesso à justiça, potencialmente 80% dos 213 milhões de cidadãos brasileiros, conforme dados do Ministério da Justiça.
Foi nesse contexto de ampliação que no último ano mais de 15 milhões de atendimentos foram realizados, 1 milhão a mais que no período que antecedeu a pandemia. Essa crescente retrata não apenas o empobrecimento da população, mas a confiança desta nos serviços da Instituição e na própria consolidação do modelo brasileiro de acesso à justiça.
Não resta dúvida que, diante dos avanços da Instituição desde o patamar constitucional alcançado em 1988, há muito a celebrar neste 19 de maio.
É imperioso, porém, na mesma medida da celebração, que o Estado, em mora com si próprio, seja confrontado com a estreita correlação entre o fortalecimento do modelo público de assistência jurídica, e a capacidade de atingir radicalmente os vícios estruturais de nossa sociedade, reconstruindo o país e viabilizando um acesso à justiça efetivo, livre de amarras políticas.
Nessa conjuntura, apenas a Defensoria Pública, defensoras públicas e defensores públicos, são capazes dessa reconstrução. Estamos prontos.
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1 Não há previsão semelhante em relação às demais funções essenciais à justiça, conforme registrado por FRANCO, Glauce. Critérios de Vulnerabilidade. Direitos Humanos e Defensoria Pública como expressão contra-hegemônica da democracia direta. In. FRANCO, Glauce; MAGNO, Patrícia (Orgs.) I Relatório nacional de atuação em prol de pessoas e/ou grupos em condição de vulnerabilidade. Brasília: ANADEP, 2015, p.29
2 ALVES, Cleber Francisco; GONZÁLEZ, Pedro. Defensoria Pública no século XXI: Novos Horizontes e Desafios. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2017. p. 10