Migalhas de Peso

A arbitragem em âmbito público e a irrecorribilidade da sentença arbitral, compatibilidade?

Aponta-se os limites objetivos e subjetivos, as vantagens da arbitragem e a escolha do legislador em manter a regra da irrecorribilidade da sentença arbitral para a arbitragem administrativa.

17/5/2023

De origem privada, a arbitragem é uma das formas alternativas de resolução de litígios que nos últimos anos vem se destacando em vários seguimentos. A chamada arbitragem temática encontra-se terreno em outros ramos do direito, nomeadamente: consumidor, família, trabalho, ambiente, societário, administração pública.

A escolha desse método pauta-se nos limites subjetivos e objetivos indicados nos artigos 1º e 2º da lei de Arbitragem brasileira, lei 9.307/96, adiante indicada como LArb. O critério objetivo indica quais são os conflitos que podem ser levados a um tribunal arbitral e o subjetivo diz respeito a capacidade dos sujeitos em celebrar a convenção arbitral, consubstanciando “um verdadeiro limite material à autonomia privada das partes, restringindo a celebração de convenções de arbitragem”1.

Os debates relacionados a arbitrabilidade subjetiva envolvendo o poder público encontram-se superados, desde 2015, com a reforma da LArb operada pela lei 13.129/15, a qual aponta expressamente essa possibilidade. Assim, a Administração pública direta e indireta poderá valer-se da arbitragem para a solução dos conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis2.  

Atenção, não são todos e quaisquer litígios que poderão ser levados à arbitragem, o legislador indica, na segunda parte da regra acima, que os litígios autorizáveis são aqueles de natureza patrimonial disponível, que abranjam matérias suscetíveis de serem contratualmente fixadas, em outras palavras, “a natureza patrimonial e disponível do direito que atende a lei deixa fora de sua aplicac¸a~o os chamados direitos indisponíveis”3.

O atual panorama da arbitragem administrativa brasileira é de crescimento4, desdobramentos da mudança gradual de aceitação dos meios alternativos de solução de controvérsias dos quais a arbitragem se destaca por ser um método que apresenta maior confidencialidade, alta especialização técnica dos julgadores, celeridade e definitividade da sentença arbitral.

O que torna a arbitragem “uma forma de exercício da função judicial tão digna como o exercício de igual função pelos tribunais do Estado”5, dentre os métodos alternativos, é o que mais se aproxima do poder judiciário6, particularmente por sua natureza adjudicatória e a decisão final se revestir de força normativa “vinculativa para as partes, tendo precisamente os mesmos efeitos da sentença judicial”7, sendo vedado o reexame do mérito da decisão arbitral pelo Poder Judiciário8, cabendo exclusivamente a impugnação pela ação de nulidade9.

A opção pela arbitragem, por meio da “convenção validamente celebrada impede que o juiz estatal adentre no mérito das controvérsias cuja resolução caiba em seus limites”10. A ausência recursal da sentença arbitral, em um país conhecido culturalmente por sua alta litigiosidade11 e de regras processuais complexas, pode causar estranheza, principalmente diante da arbitragem com o Poder Público.

Não custa lembrar que o Brasil elegeu o sistema unitário da jurisdição, ou seja, “aquele que todos os tipos de litígios ou disputas, privadas ou públicas, estão sujeitos única e exclusivamente a uma jurisdição, à Justiça Comum”12.  Além disso, a posição da Administração Pública no sistema jurídico civilista, é de superioridade em relação a outra parte, por ter mais direitos e privilégios13, isso tudo reflete na lentidão dos processos14.

É claro que este sistema não é adequado para o procedimento arbitral, que é mais informal, célere e tem como objetivo assegurar a igualdade e a voluntariedade das partes na solução da controvérsia. Sobre o tema, o professor Gustavo Schmidt indica que:

O emprego de métodos alternativos para a resolução de disputas entre particulares e a Administração Pública torna mais equilibrada a relação entre as partes. Rompe com o dogma da verticalização das relações administrativo-contratuais, colocando as partes em pé de igualdade em matéria de solução de conflitos. E afasta, ainda, a incidência de privilégios processuais próprios da atuação da Fazenda Pública em juízo15.

 Diante dessas considerações, questiona-se se a regra da definitividade da sentença arbitral nos conflitos envolvendo o poder público é compatível com o sistema jurídico público. A resposta está na própria escolha do legislador em manter a lei geral da arbitragem comercial para a pública – realizando algumas especificações modulantes em 2015 –, deixando clara a inaplicabilidade do CPC à arbitragem.16

Percebe-se que o legislador nem sequer indicou a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil e dos recursos ordinários à arbitragem. Contudo, não se impede que existam leis especiais que tratem do tema – destaca-se, entretanto, que não foi encontrada nenhuma previsão até a presente data.

Além disso, a adoção do afastamento da definitividade da sentença arbitral seria suficiente para atingir “uma das razões para que se recorra a` arbitragem: a celeridade (e, do ponto de vista do legislador, o descongestionamento dos tribunais estaduais)”17.

O legislador andou bem ao afastar a aplicação dos recursos previstos no Código de Processo Civil (CPC) na arbitragem, seja ela privada ou pública, por manifesta incompatibilidade dos institutos18.

Portanto, a arbitragem é desenvolvida em instância única e a decisão promulgada será definitiva19, cabendo exclusivamente a impugnação pela ação de nulidade20. A irrecorribilidade da decisão arbitral, oriunda da arbitragem comercial, é compatível e adotada para a arbitragem administrativa, isso quer dizer que há o afastamento do Estado na revisão do mérito da sentença arbitral em âmbito administrativo21. Essa escolha estratégica do legislador tem se refletido no atual cenário da arbitragem administrativa, de avanço, reconhecimento e independência.

-----------------

1 FERREIRA, Olavo Augusto Vianna et. al., Lei Arbitragem comentada, 2ª ed., Juspodivm, São Paulo, p.96

2 Inteligência do artigo 1º, parágrafo 1º da Lei de Arbitragem. Lei n. Lei n. 9.307/96. BRASIL, Lei de arbitragem, Lei n. 9.307, de 23 de Setembro de 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm. Acesso em16 de jan. de 2023.

3 NETO, Antonio José de et al.. Direitos patrimoniais disponíveis e indisponíveis à luz da lei da arbitragem.1ª ed.  Rio de Janeiro. Mundo Jurídico, 2013. 49 p. Disponível em: http://rakuten.livrariacultura.com.br/imagem/capitulo/42144163.pdf#page=55. Acesso em 03 de ago. 2022.

4 Por exemplo a Lei de Licitações e Contratos Administrativos, aprovada em 2.021 pela Lei n. 14.133/2021, traz a indicação expressa, no artigo 152, dos meios alternativos de resolução de controvérsias: a conciliação, mediação, comitê de resolução de disputas e arbitragem em relação aos contratos celebrados entre a Administração Pública e os particulares. BRASIL. PLANALTO. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm. Acesso em 03 de jan. 2023. 

5 QUADROS, Fausto de. A arbitragem em Direito Administrativo in Mais justiça Administrativa e Fiscal. 1ª Ed. Wolters Kluwer, Coimbra, Portugal, p.111.

6 No entanto, “ocorre com uma roupagem diferente, uma marcha processual mais simplificada, na qual, ao invés de se valer de magistrados no ativo, conta com árbitros, que são especialistas na matéria, profissionais dos quais a lei exige alto nível de experiência”. GONÇALVES, Luciana Francisco Elmor. NEGRI, Sandra. Arbitragem tributária em Portugal: um novo paradigma para a justiça brasileira. Revista Humanidades e Inovação v.8, n.48, 2021. Disponível em WWW: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwjg8d-PtoP5AhV3gv0HHQfHBR4QFnoECAcQAQ&url=https%3A%2F%2Frevista.unitins.br%2Findex.php%2Fhumanidadeseinovacao%2Farticle%2Fview%2F5695%2F3099&usg=AOvVaw2Y7fD3xu2xGAOHQs0HJ4kk. Acesso em 01 de abr. dde 2023.

7 LEITÃO, Luís Menezes. A arbitragem e a mediação como formas de resolução de conflitos. CAAD Newsletter. n.1 Disponível em WWW: https://www.caad.org.pt/files/documentos/newsletter/Newsletter-CAAD_fev_2013.pdf. Acesso em 14 de jan. 2023.

8 Indicado expressamente no artigo 18 da LArb. BRASIL, Lei de arbitragem, Lei n. 9.307, de 23 de Setembro de 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm. Acesso em 16 de jan. de 2023.

9 Realiza-se nos termos indicados no artigo 33 da LArb. São oito as hipóteses de invalidação da sentença arbitral, taxativamente enumeradas no artigo 32 em seus incisos. BRASIL, Lei de arbitragem, Lei n. 9.307, de 23 de Setembro de 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm. Acesso em16 de jan. de 2023.

10 WLADECK, Felipe Scripes. Meio de controle judicial da sentença arbitral nacional, Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), Dissertação para obtenção do título de mestre em Direito Processual Civil, orientador: Prof. Dr. Carlos Alberto Carmona, 2013. Disponível em:  https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2137/tde-08092016-162943/publico/Versao_integral_Felipe_Wladeck.pdf. Acesso em 15 de jan. 2023, p.5.

11 O professor Gustavo Schmitt aponta que o problema na demora na solução dos litígios no processo judicial é nosso, há, no nosso país, uma cultura de judicialização dos conflitos. SCHMIDT, Gustavo da Rocha. Por uma nova cultura de solução de conflitos. Migalhas, 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/356142/por-uma-nova-cultura-de-solucao-de-conflitos. Acesso em 01 de abr. 2023.

12 OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Especificidades do processo arbitral envolvendo a Administração Pública. (2022) in Contraponto Jurídico: posicionamentos divergentes sobre grandes temas do Direito. Revista dos Tribunais. Ed. Thomson Reuters.

13 Essas prerrogativas afastam a igualdade das partes, porque estabelecem no Código de Processo Civil por exemplo: prazos diferenciados (art. 183); remessa necessária (art. 496); pagamento das despesas judiciais ao final do processo (art. 91); além de que quando vencida na demanda, a Administração adota o regime de precatório. Tal regime decorre da Constituição Federal de 1988, que prevê: “o pagamento devido pela Fazenda Pública, em virtude de sentença transitada em julgado, deve ser realizado, em regra, a partir da ordem cronológica dos precatórios (art. 100).” Essa regra foi mantida para a arbitragem administrativa. 

14 “Somente a título meramente ilustrativo é importante destacar a atual sobrecarga de processos que tramitam atualmente no Poder Judiciário, em recente pesquisa organizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) constatou-se a existência de mais de 100 milhões de ações judiciais pendentes de julgamento na Justiça brasileira. Destas, quase 24 milhões têm como parte o Poder Público e os números inflam ainda mais em grau recursal, com as causas que tem de ser submetidas ao reexame necessário”. OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Especificidades do processo arbitral envolvendo a Administração Pública in Contraponto Jurídico: posicionamentos divergentes sobre grandes temas do Direito. Revista dos Tribunais. Ed. Thomson Reuters, 2022.

15 SCHMIDT, Gustavo da Rocha. A arbitragem nos conflitos envolvendo a Administração Pública: uma proposta de regulamentação. Fundação Getúlio Vargas FGV Direito Rio, Dissertação, mestrado acadêmico em Direito da Regulação, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: < http://hdl.handle.net/10438/16218>. Acesso em 01 de abr. 2023, p.38.

16 Sobre esse tema, existem duas correntes. Uma defende a aplicação subsidiária das regras do CPC, mesmo que não haja previsão na cláusula compromissória e/ou compromisso arbitral. Aderem a essa corrente, dentre outros, Cândido Rangel Dinamarco, Maristela Basso, Humberto Theodoro Júnior. Em sentido oposto, a segunda corrente sustenta o afastamento da aplicabilidade do CPC à arbitragem administrativa, visto que, não há dispositivo legal, na Lei de Arbitragem ou no Código de Processo Civil, a autorizá-la, salvo o que trata de impedimento e suspeição dos árbitros serem os mesmos do Código de Processo Civil (artigo 14 da Lei de Arbitragem). São defensores dessa teoria, nomeadamente: Carlos Alberto Carmona, José Carlos de Magalhães, José Emílio Nunes Pinto, Oscavo Cordeiro Corrêa Neto. O Superior Tribunal de Justiça adere a essa última corrente com entendimento consolidado de que a Lei de Arbitragem (Lei nº 9.307/1996) prevalece sobre o CPC no que diz respeito aos procedimentos de arbitragem. FERREIRA, Olavo Augusto Vianna. A posição do STJ sobre a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil na arbitragem. Migalhas, 2021. Disponível em:< https://www.migalhas.com.br/coluna/observatorio-da-arbitragem/351833/a-posicao-do-stj-sobre-a-aplicacao-subsidiaria-do-cpc-na-arbitragem>. Acesso em 04 de jan. 2023.

17 CABRAL, Margarida Olazabal. A arbitragem no projeto de revisão do CPTA, revista jurídica Julgar, n.26. Coimbra, 2015. Disponível em WWW: < http://julgar.pt/a-arbitragem-no-projeto-de-revisao-do-cpta/ >. Acesso em 07 de ago. 2022, p.115.

18 Expressamente indicada artigo 18 da LArb, in verbis, “o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário. BRASIL, Lei de arbitragem, Lei n. 9.307, de 23 de Setembro de 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9307.htm. Acesso em 16 de jan. de 2023.

19 Não obstante, o afastamento recursal previsto na LArb não impede que, excepcionalmente, as partes estabeleçam recursos internos, ou seja, o reexame ocorrerá dentro da estrutura interna arbitral por outro tribunal arbitral ou árbitros (com novos membros escolhidos pelos contendores). Ainda, há a possibilidade de se valer do recurso semelhante aos embargos infringentes quando estiver diante de uma decisão não unânime, mas sempre internamente jamais externo. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei n.9.307/96, 3ª ed. ver., atual. e ampl, Atlas, São Paulo, 2009, pp.24,25.

20 Disciplinada nos termos do artigo 32 da Lei de Arbitragem brasileira.

21 Há leis específicas regulando a matéria em âmbito dos Entes Federativos (Estados, Distrito Federal e Municípios) e leis setoriais que mantiveram o mesmo preceito da LArb, o da definitividade da sentença arbitral, nomeadamente: no Decreto Federal n.º 10.025/2019, o tema recursal não foi indicado pelo legislador, de igual modo a Lei de Parceria Pública Privada, Lei n.º 11.079/2004; no Decreto n.º 46.245/2018 regulamenta a adoção da arbitragem no estado do Rio de Janeiro; no Decreto n.º 64.356/2019 dispõe sobre a arbitragem no Estado de São Paulo. 

Aline Manfrin
Advogada, mestranda em Direito Público pela Nova School of Law, Lisboa, Portugal. Pós-graduada em Direito Processual, Trabalho e Previdenciário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Você sabe o que significam as estrelas nos vistos dos EUA?

16/7/2024

Advogado, pensando em vender créditos judiciais? Confira essas dicas para fazer da maneira correta!

16/7/2024

Desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimilar a ocorrência do fato gerador a qualquer tempo, conforme entendimento do CARF

16/7/2024

A lei 14.365 e o papel do sócio gestor nas sociedades de advogados

17/7/2024

Será a reforma tributária simplificadora?

16/7/2024